Produção Literaria

DE REPENTE… ASSIS!- Charles Nascimento de Sá

Segundo o sociólogo alemão Maurice Halbwachs, em seu livro A memória coletiva, História e memória são elementos intrínsecos a um mesmo objeto: o ser humano. Falar da pessoa humana, individual ou coletivamente, requer atenção para o tempo, onde se debruça o olhar da história, e também para as lembranças, onde se insere a memória. Esses dois itens possuem a capacidade de dotar o indivíduo de características que lhes possibilitam entender a si próprio, seu grupo social e o momento por ele vivido. História e Memória são assim atributos que dotam o homem de sentido e lhe fornecem a base de sua identidade social.

Uma memória individual não é, sobre nenhuma circunstância, isolada ou fechada. Nela despontam elementos provenientes dos mais variados grupos que o indivíduo vivencia. Para construção e manutenção de nossas lembranças se faz necessário recorrer e/ou reportar-se à lembranças dos outros. Ao invocar recordações de outras pessoas somos obrigados a confiar inteiramente em seus apontamentos, pode-se recorrer também à conversação ou livros, porém, em todos esses casos, a memória ai é sempre emprestada.

Partindo do ensinamento de  Maurice Halbwachs volto minha memória para um texto que escrevi em 2017 quando retornava de Assis, no interior de São Paulo, para Itabuna. Em Assis estava cursando o doutorado em História na UNESP. Esse texto, que agora reproduzo com leves modificações e atualizações, foi meu agradecimento e reconhecimento pelo período vivido naquela cidade, pelas pessoas que se tornaram amigas e pela Instituição que me acolheu e tanto me ensinou.

XXX

No dia 28 de janeiro de 2016 me encontrava em Eunápolis, onde trabalho no Campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Já fazia alguns anos que tentava ingressar para o doutorado em História, diversos fatores pessoais, familiares e profissionais me haviam impedido até então. A partir de uma conversa casual com uma amiga tive um estalo de verificar se haveria seleção naquele mês em alguma universidade de São Paulo, sabia que na maioria dos estados o ingresso acontecia no final do ano.

Fui primeiro ao site da Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, por que estava lendo um livro publicado pela editora dessa instituição. Como lá não havia doutorado, apenas mestrado, decidi ir ao site da UNESP, pois havia terminado há pouco tempo a leitura de um livro dela também. Qual não foi minha surpresa ao colocar os termos “doutorado história unesp” no Google ver surgir à notícia de que o Campus de Assis estaria com inscrições abertas entre os dias 02 a 06 de fevereiro, exatos três dias para o começo.

Imediatamente verifiquei as linhas de estudo do programa e me deparei com contato do professor André Figueiredo Rodrigues, sem nunca ter tido contato com ele lhe enviei um e-mail com meu projeto em anexo. Para minha alegria, poucas horas depois ele respondia dizendo que havia gostado e que faria uma leitura mais atenta no sábado. No sábado, dia 30, recebo a resposta de professor André sugerindo algumas correções. Neste dia, e no domingo, tranquei-me no meu escritório e somente saí de lá quando todo o projeto já havia sido formatado segundo as indicações do professor.

Encaminhei o material para seleção e fiquei ansioso, aguardando o resultado da primeira etapa. No final de fevereiro minha inscrição havia sido aceita. Comecei então a procurar passagens para Assis. O melhor caminho seria por Marília. Vim para a região de Assis no dia 12 de março. Até então a única Assis que eu conhecia, de fotos ou leitura, era a de São Francisco, na Itália. Sem conhecer nada daquela região, a não ser o que se vê na televisão, nos jornais e livros, embarquei rumo ao desconhecido.

Aqui chegando tive logo uma boa impressão sobre a cidade. A avenida Rui Barbosa, sua principal via, onde se encontrava o hotel que me hospedei, é larga, comprida e com enorme variedade de lojas, em muito se assemelhando a nossa Cinquentenário. Passei à tarde de sábado e o domingo percorrendo ruas e avenidas da cidade.

Na segunda e terça fui ao Campus da UNESP para realizar a seleção. Lá houve de minha parte novo encantamento. O Campus é bem arborizado, os prédios são espaçosos e amplos. Lembrava em muitos aspectos minha instituição de formação, a UESC. Ao mesmo tempo, sendo eu oriundo da região Cacaueira, no sul da Bahia, estar em contato com fauna e flora sempre fora um elemento constituinte de minha identidade regional. Os funcionários e professores do curso se mostraram atenciosos, educados e prestativos nessa etapa.

Após a aprovação no doutorado viemos, eu e minha ex-esposa residir em Assis. Alugamos um pequeno apartamento próximo à SABESP na av. Marechal Deodoro de propriedade de seu Paulo e dona Rosângela, sempre a postos para viajar com seu motorhome. O movimento de carros, motos e gente, a quantidade e variedade de lojas foram logo um chamativo. Outro aspecto foi a enorme oferta de itens para casa. Em apenas um dia conseguimos comprar tudo para suprir nosso apartamento com o essencial para o período de um ano.

Como não viemos de carro, começamos a desbravar a cidade a pé. Percorremos ruas, praças, igrejas, avenidas. Conhecemos os supermercados daqui, sua variedade e produtos. Na Casa Norte, localizamos uma opção para adquirir produtos nordestinos (farinha de mandioca, jabá e outras guloseimas). Minha ex-esposa achou o comércio ótimo para compras. Eu, de minha parte, encontrei ali a livraria Poética. Na área da saúde, as opções eram muitas e variadas, destaco a clínica de Dr. Orlando, sua atendente dona Irene e a a clínica de Viviam para fisioterapia. A catedral de Assis e demais igrejas católicas são lindas.

Fiquei estupefato com a quantidade de carros que havia em várias garagens no bairro em que passamos a residir. Minha ex-esposa sempre brincava que éramos os únicos assisenses a pé. Em nossas caminhadas diurnas deparamo-nos com excelentes opções de lanche: Sodiê, Santo Onofre, Cecica, Café do Urso (onde Jonas está sempre pronto para ensinar tudo sobre um bom café), Cantina D. Beja, Quiosque do Shopping, a sorveteria Icy Cream.

As noites, deparamo-nos com uma variedade de restaurantes: Art Sushi, Garoa Paulistana, Cachaçaria, Hippo pizza (minha esposa é louca pela pizza de berinjela e pelo coquetel de morango com vinho), pizzaria Veritá, onde Jean nos atendia fazendo-nos sentir em Nápoles, hamburguerias Boca Nova e House 630; Casa do Chopp. Temos ainda as padarias: Pão Quente e Mini Pão quente, além da Florença. Não posso me esquecer do cinema e das diversas opções de fast food. Como baianos ainda nos deparamos com uma barraca de acarajé, sendo esta administrada por um casal de itabunenses que há quinze anos adotou Assis como sua cidade.

Sem contar as opções gastronômicas é possível fazer caminhadas matutinas ou em outros horários no parque Buracão. Poder imergir na fauna desse local e em todas as opções que ele apresenta: academia ao ar livre, onde fazia meus exercícios, espaço para crianças e o salão de exposições. O espetáculo das jabuticabeiras no final do ano é esplêndido. Os ipês e sua coloração de amarelo, rosa, roxo e branco dotam as ruas e passeios e um cenário poético. Às tardes nada como ir para a praça da catedral ler um bom livro, curtir a brisa nesse horário o que auxilia a suportar o calor. Também o frio foi outro fator que gostei. Fui criado em um povoado chamado Jacarecy, pertencente ao município de Camacan, na região Cacaueira. Lá, nos meses de maio a agosto o frio é capitaneado por uma chuva fina, constante, gélida. Em Assis o frio era seco, cortante, bom para entrar embaixo de uma coberta.

As aulas na UNESP me permitiram contato com novos colegas, dentre os quais, cito Cíntia, Luigi, Bruno, Jorge, Fernando, Eduardo, Edivaldo, Luís, Augusto, Esther, Thiago, João, Abner e Matheus. Fiz novas amizades e pude desfrutar da inteligência e produtividade dos docentes do curso. Sem contar a solicitude dos responsáveis pela secretaria do curso de História, Lino e Marcos, nas resoluções dos problemas que nós estudantes apresentamos. Destaco com carinho, as aulas de professor Beired, Lúcia, André, Germano e Fábio. Fiquei sentido por não poder ter tido aula com os outros docentes.

Toda essa variedade de itens, gente e coisas me encantou. Como católicos ficamos fascinados com a paróquia Santa Cecília e as homilias de padre Neto, desde já um dos mais queridos servos que temos conhecido. Suas homílias falavam ao coração e à alma. Suas brincadeiras aliviavam um pouco as dores de se viver nesse mundo. A fé aqui vivenciada também me chamou a atenção: na Semana Santa, fiquei profundamente tocado pela enorme quantidade de famílias e jovens que se dirigiam à Igreja.

Por fim, mas não concluindo, pois muitos são os sentimentos que me atingem ao lembrar e escrever sobre Assis, devo destacar a tranquilidade, o prazer e a segurança que era poder caminhar pelas ruas da cidade, seja durante o dia ou a noite. Itabuna está entre as dez mais violentas cidade do Estado da Bahia e entre as vinte mais violentas para juventude no Brasil, são cerca de dez assassinatos por mês no município. Furtos e roubos, de tão comuns nem são mais informados na delegacia de polícia. A insegurança e a incerta de quem vivia em uma cidade de quase 240.000 habitantes, cedeu lugar à segurança de se morar em uma cidade com 120 mil habitantes bem tranquila.

Por estas e várias outras questões me identifiquei com Assis. Com sua gente, com a fala tão carregada nos “erres”, música, comida, risadas, economia. Sentia, porém, falta do abraço, tão constante na Bahia, dos dois ou três beijos que damos sempre que vemos um colega ou um amigo. Dos aspectos mais efusivos da cultura baiana quando comparados a certo retraimento da cultura caipira do interior paulista. Ainda assim o que ficaram foram o carinho e o reconhecimento das qualidades e do acolhimento de Assis e de sua gente. Desconhecida a cerca de sete anos atrás, hoje é parte inequívoca de meu coração, de minhas andanças, de minha Memória e de minha História.

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QUAL A COR DA CASA DA ESPERANÇA? – Por Ruy Póvoas

         Aqui, não pretendo evitar que o leitor de A casa da esperança não era verde, o novo romance da Professora Margarida Fahel, tenha o prazer de suas próprias descobertas. Por isso mesmo, apenas tomarei algumas percepções do leitor que gosta de romances. Eles se constituem verdadeira cancelas escancaradas, estradas amplas que nos levam a revisitar memórias, até mesmo aquelas há muito tempo adormecidas.

         Se a casa não era verde, qual a cor da casa, então? Os teóricos da Literatura se debruçam sobre a obra de arte literária munidos de um farnel de conceitos e categorias, a partir dos quais a obra é posta sob compreensão, interpretação e análise. Correndo por fora de tal grupo, há o leitor comum que se deixa levar apenas pelo sentimento, pela emoção, pela sensibilidade.

         Então, pelo viés do sentimento, da emoção e da sensibilidade, qual é a cor da casa da esperança? Ora, faz parte de nosso imaginário tomar a cor verde como símbolo da esperança. Para a nossa psique, no entanto, de um ponto de vista individual, a esperança pode ser simbolizada por um perfume, uma música, uma paisagem, ou outros materiais também.

         E o que faz a Professora Margarida Fahel? Como se estivesse na Torre de Belém, em Portugal, aprecia surfistas cavalgando ondas gigantescas. E não satisfeita por porta-se assim, ela mesma toma sua prancha e vai à busca de alguns deles.  Surfando nas ondas da intuição artística, a autora quer ouvir os diálogos travados entre eles. E ela mesma termina se tornando uma dialogante também.

         Seus personagens “surfistas da vida” falam de amores, de dores, de rejeição. De uma busca sôfrega para desvendar seus passados. A Professora Margarida quer que seus personagens, eles mesmo digam de si e o do outro. Extremamente cuidadosa com os detalhes, assumindo conscientemente um olhar interpretativo sob um prisma neorromântico, até mesmo os poás são apanhados quando ela detalha a vestimenta de uma de suas personagens.

         Munida de uma gentileza sem igual para registrar os altos e baixos da vida de cada herói que pulula as páginas do aludido romance, tudo é tecido generosamente. De uma coisa, no entanto, a autora não nos poupa: a presença do anti-herói. E ele nos é mostrado em carne osso, sentimentos ruins, portando uma Sombra descomunal. E apesar de Jung já ter nos advertido para “maior a luz, maior a sombra”, é Nogueira, o grande antagonista que emerge das sombras. E por isso, Nogueira provoca dores, sofrimentos, lágrimas, insônias para os demais personagens, atingindo a todos direta ou indiretamente. É isso justamente o que acontece quando a vida nos envolve, até mesmo à nossa revelia, com pessoas que se querem controladoras do destino dos demais.

         Ao tempo, porém, que Nogueira destila raiva e rancor que brotam das profundezas de seu ser, isso também faz com que as demais criaturas de Margarida Fahel não percam a esperança de, um dia, a grande luz resplandecer nas trevas. Claro que essa saga custa muito caro. E à medida que a busca de cada personagem vai acontecendo, também nos damos conta de que história de cada um só poderá ser compreendida quanto juntada à história dos demais.

         São múltiplos os narradores desse romance, a partir da própria autora. Não raro, precisamos de redobrada atenção para saber o dono da voz que narra aquele ou outro acontecimento. Uma bela construção artístico-literária, não tenhamos dúvidas.

         Na maciez do estilo de Margarida Fahel, a preferência para apreciar que seja do bom e do melhor. E isso faz com que seus leitores nem sintam ódio ou raiva por Nogueira, muito embora não concordem com ele, em momento algum da narrativa.

         E tudo vai se avolumando, cada personagem segurando um fio da narrativa, até que todos eles – exceto Nogueira, é claro – se reúnem para uma refeição. É o momento de se colocar os acontecimentos em pratos limpos. É a ocasião de se entender por que A casa da esperança não era verde. Afinal, cada um de nós pintamos a casa de nossa esperança da cor que a vida a construiu para nós.

         Para além da cor da casa da esperança, fica o entendimento de que somente sentados em torno da mesa da vida, poderemos narrar fragmentos de nossa história para que os demais possam entender nossas buscas e nossas escolhas. Na junção dos fragmentos, se dará a compreensão: é preciso que a história de cada um se faça luz para superação da sombra, não apenas a de cada um de nós, mas a da coletividade também.

 

Ruy Póvoas

Itabuna, abril de 2022

 

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A CASA DA ESPERANÇA NÃO ERA VERDE – UM LIVRO DE AMOR, ESPERANÇA E PERDÃO- Por Tica Simões

 

Margarida Fahel oferece ao leitor, nesse seu terceiro livro, um tema necessário e inquietante. Num discurso provocador, pelo sutil trato de um ponto de vista múltiplo, é tecido um suspense de amor, no estilo neo-romântico que marca  a sua  produção ficcional.

A narrativa foca a vida de Olavo, uma criança deixada aos cuidados de um  abrigo de orfandade. O  livro apresenta instigante prólogo, onde a autora revela o seu processo criador motivado por sonho/ sonhos e por sensações que passou a ter, sempre que via uma criança. Depois, refere as coincidências e sincronicidades , como ela própria admite, ao tomar conhecimento de histórias reais de crianças abandonadas ou colocadas em orfanatos…  E esse bem achado prólogo se “casa” com o epílogo –  entrelaçando o real e o ficcional –   quando personagens transformam esperança em “realidade”, através do Orfanato Casa da Esperança.

A narrativa ficcional se resolve em fluxos das lembranças dos vários personagens que vão surgindo. Impulsionam a história sentimentos expressados pelos personagens:  Amor (Ir Alzira, Olavo, Julieta, Isabel, Joana, Laura, Camila, Alfredo, Jacinta… ) e ódio (Dr Nogueira).

 Numa estrutura de círculos concêntricos, que se vão alargando a cada voz, pequenos núcleos acrescentam a narrativa, todos convergindo ao mesmo núcleo dramático central. Sem obediência a um tempo cronológico, a história vai-se compondo como uma colcha de retalhos.  A verossimilhança é construída através do crescente suspense, legitimado pelo foco narrativo múltiplo; um intrincado foco que, muitas vezes, leva  o leitor a se perguntar: afinal quem está falando?

O ousado processo de repetição de muitos fatos – porque contado por visões diversas – vai, passo a passo, também compondo a história.  E digo processo ousado porque, com a estratégia das repetições, a autora corre o risco de cansar o leitor menos atento… É que, a cada fala (personagens diferentes, épocas diferentes, ambiências diferentes, focos narrativos diferentes), é acrescentado mais um fio, somado mais um detalhe, revelado mais um segredo …  tudo convergindo para o núcleo central, a história de Olavo.  Depois, nas interrupções, o contar e recontar, instalam mistério e provocam o suspense… Além do recontar, semanticamente as repetições são intensificadas  pelo discurso romântico na descrição dos personagens…Assim, nos vários capítulos, interrupções da cronologia da mesma história, em outros  pequenos núcleos, vão “costurando” os segredos a serem desvendados e alimentando a curiosidade do leitor, fazendo crescer o suspense…

Dessa forma, como a vida, a narrativa vai acontecendo… e a  sua  estrutura pode ser percebida, até mesmo por reflexões colocadas na boca  de personagens, como Joana: “A vida vai desfiando seus fios numa roda que ninguém vê e fusos que somente ela maneja” (p.210).  Há um narrador onisciente, pois a história é narrada com ponto de vista em terceira pessoa, mas os segredos que tecem o suspense são revelados pelos personagens em fluxos de consciência ou diálogos diretos e indiretos. Mas pelas pistas do texto,  o leitor vai se perguntando: quem conta a narrativa? Não é um personagem privilegiado? “É a voz de Julieta que vem à minha lembrança neste pedaço de sua história […] está em mim, como das muitas vezes que a ouvi, na varanda daquela casa […] datada de 1913.” (p.121). Lembrança de quem? Por vezes, o narrador conclama a atenção do leitor, lembrando Machado de Assis, em Memória Póstumas de Brás Cubas. E  fica a dúvida no leitor: quem?  É que, vez por outra, o relato deixa escapar uma primeira pessoa, dona do discurso, como na p. 79: “Só nós, eu que lhes conto a história  e você, leitor atento, sabemos que era ele”

O capítulo 26, a ceia das verdades, parece  amarrar as pontas da história;  preenche lacunas… Esse capítulo, além disso, se realiza em metaficção, quando desvenda estratégias do discurso, fazendo a ficção falar do processo ficcional: “E Isabel toma então a palavra, ela, vizinha e amiga. A pintora que, até ali ninguém daquilo sabia, pintava também com as palavras. É esta que até aqui lhes falou incógnita. Mas assim fingirei estar: como se fosse outro o contador.” (p.243). Será?   E o repetir, repetir,  intriga o leitor. Ele pensa: já conheço esse relato, mas de outro ângulo. E  sente-se parte envolvida, aquele que conhece outras perspectivas e as complementa também.

Afinal, a voz que encerra o livro surpreende, quando é uma voz incorpórea… Voz ou energia, pergunta-se o leitor? É mesmo o que sugere  o título do capítulo: De onde virá a minha voz? “Decidi eu mesma contar este último capítulo” (p.257) Quem? Margarida Fahel, a autora conhecedora de Jung, a que recebeu os sonhos?, pergunta-se o leitor, curioso. E, outra vez, o  autor lembra a estratégia machadiana.  Mas essa voz, em primeira pessoa que se anuncia personagem, Julieta, será também a da autora tomada pela energia através do sonho???? A dúvida metafísica instala-se: “Estarei contando de onde me encontro agora?” (p. 257) . E a voz narradora (em outro plano?) levanta questionamentos metaficcionais: “revendo Isabel, minha vizinha de tantos anos, me ocorreu a interrogação: será que é ela que escreve a história?” . A voz-narradora retoma os personagens que contaram as suas versões da história e, suscitando mais uma vez  o mistério, refere “uma brisa por ali chegada […] tão leve, tão carinhosa, entra sorrateira, ninguém sabe de onde chegada…” (p.260)…  Nesse último capítulo, as dúvidas sobre o narrador parecem se esclarecer quando, por mistérios metafísicos, a voz se declara: “Tudo isso vi e escrevo. Uma fresta de futuro […] ou estou ali, em algum tempo invisível […] por alguma abertura de tempo e espaço?” (p.260). É a fala de Julieta, a mãe que já morreu!! Morreu??   A sua voz estará na autora, através dos sonhos??  Estará em outro plano?   Instala-se, agora, uma inquirição metafísica, que  faz lembrar Pessoa:  “Há metafísica bastante em não pensar em nada/ O que penso eu do mundo?”.

O epílogo retoma o prólogo. Se o prólogo constata, o epílogo mostra ações possíveis de esperança para a casa (ou as casas) que não é verde; mas o título do livro, sutilmente, diz querer a  metáfora.   E o vento sopra suave… em energia circulante…

O livro finda, mas fica a inquietação filosófica do pensar o mistério do mundo e da vida. Quem somos? Para onde vamos?

Na sutileza do discurso, ocupando-se do ser, Margarida Fahel busca também explicação para o SER, busca explicação para a vida e seus mistérios…

Ilhéus em abril de 2022

Maria de Lourdes Netto Simões

 

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Ô VLADIMIR PUTIN – Cyro de Mattos

 

Não escutas o passarinho em dia

De bemóis, ao contrário das fronteiras?

Nessa terra que é nossa casa, abrigo

De lágrima na passagem dos anos?

 

No prazer de estar nela, onde moramos.

Nesse mistério dos que vêm e vão

Com os saberes da grande mãe que dá

Seus filhos à luz, deitando-os no berço

 

Uterino, após a morte. Decerto

De paz o final perfeito. Assim fomos

Feitos, enfim juntos, adormecemos.

 

Deixe que nos leve a trama da vida,

Revele-se no esplendor da mãe terra.

No lado azul de versos com sentido.

 

Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Suíça e Dinamarca.Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros.

 

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POEMAS DE CYRO DE MATTOS

Historinha da preguiça
Cyro de Mattos

Nasceu, comeu, dormiu.
Cresceu, comeu, dormiu.
Pariu, comeu, dormiu.
Ao ouvir falar em trabalho
teve um mal súbito.
Na mesma árvore
pendeu e morreu.

 

 

Crença
Cyro de Mattos

Entendo ser real
Estar na relva
Com o meu canto
Sedento de amor.
Neste rumor secreto
Verde minha palavra
De brotar em cada um.
Se não sou semente
Dos sonhos que beijei
Cantando na chuva,
Lá dentro trancado,
Cúmplice do eterno
Riscado num instante
Direi não sou de fato
E no caos desencanto-me.

 

 

BICHOS
Isca

Quando vem à tona
como se arrisca.

Gambá

Com o seu spray
fedorento
afugenta o inimigo.

Leão

O e l é t r i c o n o a r
até o vento corre.

Hiena

Gargalhada da fome
amedronta até a morte.

Procurado

Procura-se cão pequinês,
é algo fenomenal,
nunca fez pipi
na cama do casal.

Papagaio

De cadeia ao pé
Humanamente bêbado.

Paixão

Com tanta saudade
da bailarina foca,
o solitário camelo
foi morar no gelo.

Caranguejo

Falou tano dos outros
que perdeu o pescoço
e caiu dentro do poço.

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CHUVA DE JANEIRO – Cyro de Mattos

Depois que o marido faleceu perdeu o interesse pela vida. Vivera com ele trinta anos de casada e soubera que o calor do corpo aquece o amor. Quando se é idosa, a experiência de vida diz que esse calor do corpo some, ainda mais quando o seu homem já não está mais ao seu lado para consumar o ato mais prazeroso da vida.

Os dois filhos estavam casados, viviam no exterior. Ela morava em um apartamento de quarto e sala. Passava com a aposentadoria de professora estadual. Todos os dias seguia para a pensão onde fazia a refeição do almoço. Sentava em uma mesa reservada para ela no canto da sala.  Lá viu pela primeira vez o homem de cabelos brancos que olhava para ela. Tinha um brilho diferente nos olhos.  O olhar dele se repetiu nos outros dias, deixando-a sem jeito. Ficou assustada quando ele se levantou de sua mesa e pediu permissão para fazer-lhe companhia durante a refeição.

Disse que era um viúvo aposentado, fora funcionário do Banco do Brasil. Um dia convidou-a para passear no parque. A princípio relutou, mas diante da insistência dele outras vezes, resolveu aceitar o convite.  Conversaram sobre a vida, seus momentos entre o alegre e o triste, foram se tornando íntimos.  Num ponto concordaram, viver sozinho, sem ter ninguém como companhia, era ruim. Deram uma volta no jardim, sentaram no banco embaixo da árvore frondosa. Jogaram migalhas para os pombos e para os peixes na lagoa.

Na tarde fresca, um vento morno passava no rosto dela em finura de  lenço e leveza de carícia. Um casal de namorados, em cada beijo que sorvia nas bocas ávidas, revelava que a vida era boa e bela, assim no calor que se estendia por toda a extensão da pele só podia ser dado valor a ela. Ele fez questão de levá-la até o prédio onde ficava o apartamento dela. Na entrada do pequeno edifício olharam-se em silêncio antes de cada um querer dizer algo ao outro, que eles mesmos já sabiam o que era e que pulsava como uma chama que lampeja dentro. Talvez um convite para conhecer o apartamento de perto por ele. Convite dessa natureza seria impossível, embora houvesse no rosto de cada um deles o olhar cintilante de brilho.

          Ele disse:

– Muito obrigado.

Ela disse:

– Obrigada digo eu.

Despediram-se com leve aperto de mão.

Era janeiro e ainda não havia caído a chuva de verão.

Daquela vez quando terminaram de fazer o passeio pelo parque, ele a convidou para conhecer o apartamento dele. Era também um quarto e sala. Ela perguntou quem fazia a arrumação e o asseio. Respondeu que havia contratado uma faxineira. Vinha duas vezes na semana fazer a faxina. Notou que certas coisas não estavam no lugar devido. Fez a arrumação com esmero.  Limpou a poeira na mesa e nas duas cadeiras. Deu brilho em alguns objetos domésticos. Um pouco cansada foi tomar um banho no chuveiro de água quente. Vestiu o roupão que pertenceu a ex-mulher dele.

Ela sorriu quando ouviu o convite para ir se deitar com ele.

Então vieram os primeiros beijos. O ato para que alcançasse o auge exigia concentração e esforço. E aconteceu o máximo quando o prazer de ambos ao mesmo tempo precipitou a vertigem. Souberam que ainda restavam um pouco neles daquilo que motiva a vida. Era preciso de agora em diante aproveitar bem antes que não restasse mais nada. Foram alguns anos de convívio harmonioso, decorrente da união sem atrito entre o espírito e o corpo, que acordava rejuvenescido, embora no estado de fuga repentina em cada vez que o ato se consumava dentro algo precioso ia ficando longe nos seus contornos definidos.

Quando ocorreu aquela primeira vez em que dormiram juntos, ela lembrava agora, acordou no final da tarde. Movimentou-se no quarto com cuidado, não queria interromper o sono tranquilo dele. Foi até a janela.

 E, cheia de vida, ficou olhando cair pelo vidro a chuva de verão.

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COLO-COLO: UMA LIÇÃO INESQUECÍVEL! Por Marcos Bandeira

 

O Colo Colo nasceu de um sonho de idealistas que buscaram inspiração no time chileno com o mesmo nome e nas cores do Boca Junior, um dos times mais apaixonantes da Argentina. A saga de vencedor que seu hino entoa brotou do coração de todos aqueles que lutaram e construíram sua história nos gramados baianos.

Fundado em 1948, sagrou-se campeão baiano de profissionais no dia 28 de maio de 2006 no Barradão, contra o poderoso Vitória. A cada jogo do Colo Colo naquele campeonato, irradiava-se a vibração de seus atletas, a emoção da torcida, a esperança de uma boa participação e ao mesmo tempo a sensação experimentada por alguns de que o time já teria chegado longe demais.

É de louvar-se naquele campeonato a inesquecível habilidade e o compromisso do presidente José Maria Almeida de Santana, o Joseph Marie, que diante de gritantes adversidades soube liderar e construir um elenco de vencedores: a sua determinação, competência e paixão conquistaram a confiança de seus atletas com pequenos e significativos gestos, quando por exemplo, ofereceu um Natal digno aos jogadores que mesmo possuindo vínculo com o clube, ainda não recebiam salários.

Grandiosa foi a sua liderança ante o desalento dos atletas após uma cansativa viagem de ôni

bus quando sofreram uma derrota, substituindo um sermão por um churrasco, no propósito de fortalecer os laços daquela família de vencedores e transformando o time bom num time campeão. Inesquecíveis, a tranquilidade de Marcelo e suas portentosas defesas, a eficiência dos laterais Alexandro e Wescley nos aspectos defensivo e ofensivo, a qualidade técnica do zagueiro Rodrigo, a consistência de Sandro e Melqui na frente da zaga, a regularidade de Juninho, o talento de Jânio com seus dribles curtos e chutes de fora da área, a maturação de Gil, responsável pela maioria das articulações das jogadas e por vários gols de bola parada, a versatilidade de Jamaica e o encantamento do futebol de Ednei, artilheiro nato, que partia para o zagueiro, no estilo “Romário” dos bons tempos e que tinha como poucos, a tranquilidade necessária diante do arqueiro e qualidade apurada no arremate final.

Sem dúvida, o maestro Ferreira foi o melhor técnico da Bahia na época: pessoa simples, educada, estrategista e líder, sempre teve o time na mão, fazendo as correções no intervalo do primeiro para o segundo tempo e as alterações no momento certo e com a pessoa certa. A cada vitória, a cada avanço na tabela de classificação, o resgate da autoestima dos ilheenses carentes de uma grande conquista manifestada por sua frenética torcida utilizando bandeiras e camisas, transformou-se numa verdadeira “febre amarela ilheense”.

Mesmo apresentando um excelente futebol e tendo conquistado o 1º turno no Barradão contra o Vitória, o Colo Colo sempre foi visto com desconfiança por alguns jornalistas da capital, os quais, indiferentes, se referiam ao Vitória como o melhor time do campeonato e que a conquista do Colo Colo teria sido um acidente. Também a arrogância, a inquietude e a prepotência do técnico Arturzinho do Vitória contrastavam com a humildade, simplicidade, serenidade e competência do técnico Ferreira que enfrentou o Vitória por seis vezes e não perdeu nenhuma partida, ganhando três, duas delas na própria casa do adversário e conquistando títulos.

Aquela conquista do Colo Colo sob a liderança do grande técnico e o empenho incondicional de cada atleta servem até hoje como uma lição inesquecível a ser aplicada em qualquer atividade humana em grupo ou individual, pois a vitória final será sempre o resultado das perdas e ganhos das batalhas travadas ao longo de uma jornada: é preciso planejar, ter espírito de união, acreditar em si próprio, aglutinar forças em torno de um objetivo comum, liderar sem precisar utilizar o poder desmesuradamente, olhar além do horizonte, ter olhos de tigre, perseverar, respeitar o adversário sem se apequenar, ter serenidade para superar as adversidades mesmo que tudo pareça perdido e acima de tudo saber perder, pois a vida é feita de perdas e ganhos.

A conquista do Colo Colo no campeonato baiano de 2006 não foi somente de Ilhéus, mas de todo o interior da Bahia, por fazer acreditar que se pode construir uma equipe vencedora. Na verdade, essa conquista poderia servir de lição ao Bahia e ao próprio Vitória, pois assim, sem escamotear seus verdadeiros estágios, fariam seus dirigentes refletirem e repensarem seus projetos e reestruturarem seus elencos para retornarem à 1ª Divisão do Campeonato Brasileiro.

Grande admirador do Colo Colo e acompanhando quase todos os jogos, experimentei grandes emoções percebendo gradativamente a evolução da equipe e testemunhando o triunfo definitivo do time contra o Esporte Clube Vitória ao sagrar-se campeão baiano de 2006 no Barradão. Naquele dia glorioso, a convite do presidente da Federação Baiana de Futebol, tive acesso ao gramado do famoso estádio, dando a volta olímpica com a equipe do Colo Colo.

Ex-atleta do Colo Colo, aprendi a grande e inesquecível lição cravada na memória e na história do clube: um campeão não se faz de véspera e nem ocorre por acidente, como admitiu depois, o próprio técnico do Vitória, mas se constrói com muita luta, união, abnegação, respeito, competência, perseverança, simplicidade e serenidade. Aprendi que é preciso tempo para se formar uma equipe e que esta precisa de um líder que motive e incentive seus comandados extraindo o que de melhor cada um deles possa oferecer na certeza de que não há vitória sem luta, perseverança, humildade e respeito ao adversário, requisitos indispensáveis a um grande campeão.

*Marcos Bandeira – Juiz de Direito aposentado, advogado, professor de Direito da UESC, membro da Academia de Letras de Itabuna e ex-jogador de futebol do Colo Colo

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ELZA SOARES- Cyro de Mattos

Morre Elza Soares aos 91 anos

            Arrebatava a plateia com seu ritmo musical diferente, que arranhava a garganta e brincava com o som. Vi de perto em minha juventude quando deu um show de espetáculo cantante ao se exibir com uma voz esplendorosa no Cine Teatro Itabuna e no Clube Social de Itabuna. Sua voz era puro jazz na garganta inflamada, no melhor proveito, improviso e efeito. Uma desordem musical causando harmonia impetuosa e prazerosa.

            Uma mulher negra, que veio da pobreza, na favela com a lata d’água na cabeça, no morro ainda adolescente subia e descia, não se cansava, noite e dia.  Em condições precárias cantava para enganar a difícil dureza da vida e foi se descobrindo com uma entonação musical que só ela tinha, cheia de malabarismos vocais.

            Voz das vozes, flor do samba que expandia alegria para quem a ouvisse, contagiando a todos com aquele timbre musical forte. E assim com seu jeito de cantar versátil ganhou o mundo, nos lugares mais distantes mostrou que o Brasil é grande quando beneficiado com criaturas como Elza e outras do mesmo naipe.

            Que mulher incrível com sua entonação musical! Eu só acreditava porque estava vendo, como era que ela fazia aquilo com a voz? Só podia ganhar o mundo, com indiscutíveis méritos e receber os beijos merecidos da glória.

            Trouxe no coração Garrincha, o gênio de pernas tortas, a alegria do povo com os seus dribles incríveis. Quando o craque já não mais valia para o futebol, como mulher corajosa deixou que se fosse no jogo adverso da vida. Amparou seu menino grande, aquecendo o corpo do campeão mundial de futebol com a febre do amor, adoçando o seu coração quando o sentia com a cor triste da manhã e a incerteza da noite.

            Notável exemplo de vida. Acredito que tenha ido para o lado de lá, na sua viagem sem volta, cantando e sambando. Levou Elza, na sua chegada do lado de lá, meu beijo gravado no lado de cá quando eu a ouvia cantar e ficava com uma vontade assanhada para sambar. Não somente eu, mas quem gostasse de viver com o ritmo delirante do samba.

Elza Soares morre aos 91 anos; cantora faleceu de causas naturais
*Cyro de Mattos é escritor e poeta, premiado no Brasil e exterior.

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TRÊS POEMAS DA LUA- Cyro de Mattos

Moça bela

Em luares de relva
Na rede embala-me
Nudez tão pura.
Bafeja meu rosto,
Veste-me de sonho.
Para o céu me leva
No colo que flutua

Lua, ó lua,
Moça bela,
Toda nua.

O menino e a lua

O menino sonha com a lua
acima da nuvem escura
fazendo descer para o rio
uma comprida luaranha.

O menino sonha com a lua
no céu de estrelas, cintilante,
aquele pedaço da frente
ele abocanhou na crescente.

O menino sonha com a lua
chamando-o pra brincar no areal
deixado pela grande enchente.

Lá ele cata muita prata,
depois é levado pro céu
no colo da lua risonha.

A cidade e a lua

Toda ela iluminada
flutua no colo da lua
que lhe trouxe rosas.

Ó encantos! Ó perfeições!
Carícia e frêmito de sonho.
Suspiros de ternura.

Brilha cantiga da beleza,
a cidade no eterno pervaga,
perfumes a noite exala.

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SOBRE “A SOMBRA NO ESPELHO” O SECRETO ARQUIVO DE ENIGMAS- Tica Simões

 Sobre

A SOMBRA NO ESPELHO

O secreto arquivo de enigmas

O olhar de Tica Simões

Um livro para leitores curiosos…

Esta obra sobre afrodescendência intriga especialmente pela repetição especular que ocorre na estória e a multiplicidade de focos do discurso. A estória, em abismo, contém outras narrativas dentro de si, provocando a reflexividade literária. O discurso faz narrador dentro de narrador, um gestando o outro. O engendramento ficcional autotextual[1], enquanto reduplicação interna, se resolve em processo de  mise en abyme[2]: “um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos”[3].   Embora possa se configurar somente no nível do enunciado, esse processo em abismo pode ocorrer, de forma mais complexa,  abrangendo a enunciação, como é o caso deste livro de Ruy Póvoas. Por que utilizar estórias dentro de estórias? E vários focos de discurso? Qual a intenção do autor?  Como ele se beneficia disso para a produção do texto literário?  São perguntas (enigmas?) a serem respondidas (ou não) no caminhar da leitura…

A estratégia em abismo é insinuada desde o título, A sombra no espelho. Que sombra? Por que espelho? Uma identidade cindida? Ou uma chamada para narciso? E o narciso seria o personagem ou o autor? Mas qual autor? Já, aí, um abismo anunciando uma questão de estrutura. Será a intenção de RP criar um jogo capaz de produzir, no leitor, uma sensação de estar entre espelhos, contemplando suas inúmeras reflexões? Ou faces?? Se o título sugere o olhar  a si mesmo, “a circunstância do não dito”, a epígrafe Orixá metá  aponta crença. E o subtítulo – O Secreto arquivo de enigmas –  anuncia um jogo interminável de “segredos” a descobrir? Prevê abismos contidos no secreto arquivo  a ser relatado? A primeira epígrafe já promove a dúvida: “o que se diz nem sempre é tão importante”.

Em sintonia, os paratextos: agradecimentos, dedicatória, epígrafes abrangem as  áreas ligadas à busca de si mesmo, da análise do discurso e do religioso nagô.

Ruy Póvoas apresenta o livro, circulando entre o real e o imaginado. Fala da condição do povo nagô, com olhar sobre o social. Enquanto apresentador, diz que são quatro os narradores ficcionais:  Alcina, enquanto organizadora do texto; Ranieri, autor da estória; Marcelo, personagem/narrador; o Marotti, editor. Autotexto de enunciação, portanto. São, pois, esses narradores-personagens que promovem os abismos do discurso. Ao final da sua apresentação, RP instala dúvida no leitor, quando inverte o preceito e diz: “qualquer semelhança com a realidade será a vida  imitando a arte”.  Será isso o primeiro Enigma a desvendar?

Embora semelhando paratextos, “Três bilhetes” são falas de personagens; iniciam o processo ficcional. O primeiro bilhete é de Alcina que envia o livro do marido Ranieri para a publicação pelo editor Marotti.  O segundo e terceiro bilhetes são de Marotti,  para Luisa,  revisora do texto; e para Alcina, em resposta.  E por que um editor-personagem? Esses três bilhetes, então, promovem abismo de enunciação, chave dessa trama autotextual do afrodescendente Marcelo.

Em “Missão executada”,  prefácio ficcional, Alcina esclarece a história do manuscrito do marido. E conta como tratou todo o material recebido.  Fazendo isso, Alcina não se torna coautora? Afinal, como ela afirma, recebeu um material que “era uma verdadeira barafunda” e o organizou a seu critério e deu corpo ao texto! E o leitor pode-se perguntar: nesse trabalho, Alcina não terá dado uma especial base tonal ao texto?  Terá se imiscuído, dessa forma, no discurso da narrativa de Ranieri? E  outro possível enigma: O texto de Ranieri será autoficção?  As insinuações de Alcina alertam o leitor a se questionar sobre o discurso; de quem é o ponto de vista narrativo? Então, será todo o texto construído a partir de dúvidas?  Enigmas?

Ao assumir a narrativa (capítuloRompimento”), Ranieri já velho, mudado, relembra a infância e resolve criar Marcelo, a sombra no espelho, que assume o relato e fala para um bem-te-vi morto.  Morto o passado??

Entre vivências e sonhos (capítulos deSonho” ao “Chamado”),  Marcelo relata a busca de si mesmo, através dos vários processos terapêuticos. Inicialmente, devido à incompreensão sobre a sua condição mental; e o seu percurso, vida: doenças, psiquiatras…  Depois, leitura de búzios, astrologia, psicologia analítica, interpretação de sonhos… Serão autotextos da “sombra” de Ranieri?  O capítulo “Chamado” finaliza o arquivo de Ranieri, com a conclusão da narrativa de Marcelo que, finalmente, assume a sua religiosidade nagô. Fica, para o leitor, a compreensão da identidade, na solução da cisão da personalidade: luz e sombra.

A circularidade do texto leva o leitor de volta a Ranieri ou ao autor Ruy Póvoas, agora Babalorixá? A vida imitando a arte ou a arte imitando a vida? E aqui lembro as palavras de Mia Couto, na live de 20/5/2020, sobre os seus personagens: “sou sempre eu, alguma face de mim”.

Mas não acaba aí o texto ficcional; termina a estória, mas não termina a ficção. Alcina retoma a narrativa, em “Elegia”, provocando outros questionamentos ou…  abrindo, mais, o secreto arquivo de enigmas? Enigma 1: um livro é como um filho – a arte faz permanecer depois de morto. Enigma 2: a dubiedade de uma personalidade: ser um, sendo outro.

Enigma 3: entendimento da sombra; as “estranhezas” de Marcelo; o percurso dos vários caminhos; personalidade cindida ou uma questão espiritual?  Enigma 4: “Creio-te vivo, e morta te pranteio” –  o enigma maior:  vida e morte.

Os enigmas do discurso estão no texto integral de Ruy Póvoas: uma narrativa dentro da outra; um narrador puxado pelo anterior…

A mudança de Alcina, no primeiro texto confusa, buscando vencer uma sua lacuna de possível incompetência; no final, vitoriosa, tranquila, seria também um resgate do feminino, através da mãe de Marcelo, coitada, sempre culpada de tudo…  Porém, no fim, com a vitória de Marcelo, reconhecida e resgatada? Seria mais um enigma ligado ao feminino?

E mais: Ruy Póvoas cria personagens agnósticos (como também aconteceu no seu livro A Viagem de Orixalá) como forma de justificar e explicar os estudos de religião de matriz africana? São muitas as questões. E a enunciação, em discurso múltiplo, sustenta os enigmas: Ruy Póvoas, Alcina, Ranieri,  Marcelo, Marotti. ­­ Esses, apenas alguns dos abismos …  A circularidade discursiva insinua o eterno recomeço.

Se a principal razão da narrativa em abismo é traçar paralelos com a estória principal, cada camada pode ser encarada como uma releitura, ou um simbolismo do que o leitor acompanhará nos outros níveis. Essas camadas adicionam novos sentidos à estrutura e podem servir para suscitar enigmas, incutindo algumas ideias no leitor; acrescentam opiniões atuais às suas memórias do passado, os fatos apresentados mudam de forma: passamos a olhá-los de outra maneira. Nesta obra de Ruy Póvoas, essa estratégia é forma de enfatizar as buscas do processo terapêutico. Tal processo afirma, também, uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência autoral estética, que se evidencia através da redundância textual, e que reforça a coerência ficcional .

Ilhéus, outubro de 2020

MLNetto Simões

 

[1] DÄLLENBACH, Lucien . “Intertexto e autotexto”. In: Intertextualidades. Poétique, 27. Trad.: Clara Rocha. Coimbra, Almedina, 1979, p.53.

[2] Termo de André Gide.  In: 1893 ( Gallimard, Pléiade, 1948)

[3] DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur la mise en abyme. Paris, Editions du Seuil, 1977, p.64.

 

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