Produção Literaria

ALITA 10 ANOS- Silmara Oliveira

Animai-vos povo Bahiense! 

Como palavras da noite escolho duas: animar e conspirar.

Faço referência ao título do livro Animai-vos povo Bahiense! A conspiração dos alfaiates, dos organizadores: Carlos Vasconcelos Domingues, Cícero Bathomarco Lemos e Edyala Yglesias.

O tempo é para animar-se, acelerar em alta a vibração no nosso entorno. Aproveitar o nosso lado psicológico – a alma, a mente e o coração, constantes na sede do nosso pensamento – para tomar posição altiva, já que adentramos o outono, estação que traz frescor e conforto visual na atmosfera. Somos quarenta acadêmicos, quarenta rotações de alegria por esta noite de felicitações à casa que nos une e, estamos vivos.

Se olharmos para os lados, há cinzas que recobrem, não só este nosso país, mas também, a terra inteira, A Terra em pandemia como já escreveu o poeta Aleilton Fonseca; se olharmos para trás, passos dados em estradas por vezes planas, por vezes, tortuosas, mas, se nos dignarmos a encarar o futuro, haveremos de ver luz brilhante no túnel, não no fim, nele inteiro, porque o que esta academia apurar ao longe, em idade muito avançada, certamente, sobreviverá.

O Tempo é para conspirar contra os maus augúrios dos últimos dias com a pandemia se alastrando, sem freios, pelo planeta, respirar em conjunto contra as desilusões de quando um sonho comum parece desvanecer, e tivemos que lutar para afastar alguns descompassos aqui na nossa academia. Aparecerão outras fissuras, é o comum da vida, mas fazemos parte de um sodalício que aniversaria dez anos de idade, a ALITA é, pois, uma criança, e estamos dando testemunho da nossa conspiração contra adversidades à sua infância.

Disto tratamos ao agradecer o companheirismo que em hora necessária nos tem acorrido em união e prontidão às ocorrências. Conspirar em sentido construtivo tem sido providência, a exemplo da água, que se desvia de obstáculos; animar tem sido a alma que eleva nossas ideias, vontade, emoção e caráter, em sentido de animus, formando nossa identidade alitana.

Estamos hoje numa expectativa de boas aventuranças, afinal, reunir em torno desta agremiação, um conjunto especial de pessoas com propósitos afins, de congraçamento com a arte e a literatura, colaborando, cada um à sua competência, nos torna confiantes para pautar projetos que, por sua vez, pretendem atrair de forma especial, leitores e atores sociais, que sintam nesta entidade os pés e a cabeça no futuro, sem esquecer a nossa origem.

E falar da origem, do começo da literatura, no território do cacau, requer de nós rememorar os pilares que fundamentam a profundidade de tais escrituras. Geográfica, ambiental e socialmente: uma imensidão de mar, a mata, paisagens virgens e densas em abundância de tons verdes, sua derrubada, índios como donos, animais em grande quantidade e tipos; homens que ambicionavam terras, populações que se formaram; o cacau trazido e disseminado por homens e juparás, implantado; o comércio que chegou, comunidades localizadas, para depois, a sociedade plena.

 Até aqui tudo muito simples no modo de dizer, mas ao mesmo tempo complexo como tem que ser. E para essa fala de complexas tensões sociais, grandes mestres. Mencionar seus nomes é como despertar o passado, dia após dia, em suas páginas de romances, contos e crônicas da vida narrada, poemas. Trazer em lufadas de memória amores e guerras, caminhos e fendas, tiroteios e correrias, banhos de rio e crianças ao peito, prostitutas e rezas, lautas mesas e fome, frio e sede, danças e mortes.

Entramos a chamar nominalmente, Adonias Filho, Jorge Amado, Jorge Medauar, Sosígenes Costa, João da Silva Campos, Ildázio Tavares, Euclides da Cunha, Telmo Padilha, Cyro de Mattos, Ruy do Carmo Póvoas, Valdelice Pinheiro, Hélio Pólvora, Maria de Lurdes Netto Simões, Sione Porto, Marcos Santarrita, Ceres Marilyse, James Amado, Firmino Rocha, Augusto Mário Ferreira, Natan Coutinho, Aleilton Fonseca e outros mais novos de temática mais renovada, sobre os aspectos humanos e sociais.

Enquanto escrevo, observo um caracol no meu quintal, no alto da velha caramboleira, me pergunto: mas como? Saído do chão e vigiado por Júlia, minha filha, que vive a tomar conta do destino dos caracóis do quintal, imediata analogia tracei entre a ALITA e o caracol. Pequenino ser, tão lento e tão no alto, no topo da árvore.

Sinto isso da Academia de Letras de Itabuna e penso que, pacientemente, traçamos um caminho que pode chegar a alturas.

A favor, tem edições de revistas, palestras, rodas de leituras em escolas, lançamento de livros, atividades culturais, é uma academia com empatia para com a identidade da Consciência Negra. Atividades que, possivelmente, serão acrescidas de outras com perfil mais moderno e de alcance em mídias digitais, atreladas ao mundo virtual.

São passos que devemos transformar em movimentos mais dinâmicos, com maior capacidade de abrangência. Lembrando que o lugar da academia será sempre o da cultura, primordialmente, no cuidado com a produção da escrita e da leitura. E é com esta perspectiva de bons ventos soprando ao nosso favor, que saudamos a Academia de Letras de Itabuna nos seus dez anos de existência e desejamos muitos, muitos, muitos anos de vida.

Parte II

Nesta noite de festa e celebração estou convicta de que a sabedoria é aliada da calma, da fé e da esperança. Por algum tempo esperamos pela posse de alguns convidados, agora membros acadêmicos, gratos confrades, de espírito livre e ações de intelecto ativo.

Assim foi com o confrade Alessandro Fernandes de Santana, convidado pela confreira Sônia Carvalho de Almeida Maron, o confrade Sílvio Porto, indicado pela Confreira Sione Porto, a confrade Joana Angélica Guimarães da Luz, a convite de quem vos fala neste momento, o confrade Wilson Caitano de Jesus Filho, por indicação de confrade João Otávio Macedo, a confreira Reheniglei Rehen convite de Cyro de Mattos,  e Charles Nascimento de Sá, por Janete Ruiz, alguns com mais, outros menos tempo de convite, todos confrades e confreiras empossados.

Agora reunidos, estaremos em condições de trabalhar em prol dessa região tão agastada por tantas faltas. Longe que estamos das condições de desenvolvimento econômico tão promissor, como de fato aconteceu tanto na vida real, quanto retratada na vida ficcional, pelos já mencionados escritores.

Nosso papel, enquanto alitanos, cada um em seus postos de trabalho e atuação social, devemos sempre pensar de modo a conduzir nosso grão de areia para esse construto por meio da literatura. Como chegaremos aos mais novos? Qual a chave de acesso para melhor aproximação com a comunidade local?

Questões fáceis de responder quando reunidas três importantes universidades: Universidade Estadual da Bahia – UNEB – acolhendo o confrade Charles Nascimento de Sá, Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – Alessandro Fernandes Nascimento e Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB – Joana Angélica Guimarães da Luz, mais Sílvio Porto, Wilson Caitano de Jesus Filho e Reheniglei Rehen, pessoas de espírito e conhecimento, que há pouco juraram pelo bem da ALITA e seus objetivos.

Em nome de todos os alitanos, parabenizo e saúdo os novos acadêmicos para que imbuídos do sopro que anima a vida, possamos realizar o que se deseja e espera de uma academia de letras. Sejam todos bem-vindos.

Tenho verdadeira admiração a homens e mulheres quando se juntam em agremiações para realização de grandes feitos, assim como pedra angular que norteia e edifica a construção que se pretende, considero cada homem e cada mulher que edificou a Academia de Letras de Itabuna. Minha consideração especial aos fundadores, à sua dedicação diuturna para afirmação da solidez desta academia. A cada alitano que cumpre seu papel com empenho e dedicação a nossa gratidão, nosso amor e carinho.

 Ressalto que deposito minha fé em todos que estejam dispostos a acalentar o sonho de dignificar com trabalho e criatividade uma produção acadêmica que para além de dez anos, miremos para o alto e para frente, na composição social da intelectualidade que nos legou Adonias Filho, a quem tomo para exemplo, patrono desta academia, intelectualidade que é herança de um tempo, transformada em patrimônio da região cacaueira.

É com imensa alegria e esperança nos dias futuros da ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA que os convoco, nobres confreiras e confrades a conspirar em favor de nós mesmo, alitanos.

Animai-vos povo alitanos!

 Silmara Oliveira

Presidente

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PRAÇAS DO CENTRO DE ITABUNA – SIGNIFICADOS/FUNÇÕES- Lurdes Bertol Rocha

Ao se pensar em praça, vêm à mente imagens de bancos, flores, árvores, pessoas conversando, descansando, passando, olhando o tempo que foi, que é, que virá. Algumas pessoas olham ensimesmadas na direção de um tempo que ficou em algum lugar do passado. Mas, na praça desfila também um mundo menos romântico: mendigos fazem dela sua cama; hippies tecem suas bijouterias; raizeiros apregoam e vendem suas poções mágicas; ambulantes expõem seus produtos; floristas vendem suas flores. A praça é, também, em alguns momentos, o templo de eventuais cultos religiosos, o púlpito de pregadores de promessas eternas e do fogo do inferno, o palco de malabaristas, o palanque de políticos. Pode ser ainda o lugar da degradação humana: jovens usando drogas, crianças cheirando cola, mendigos implorando por um pedaço de pão. Resumindo, pode-se dizer que a praça é o placo onde se apresentam os mais diversos eventos da vida urbana.

As praças têm significados específicos no cenário urbano: umas indicam o marco inicial de uma área urbana, outras representam fatos que marcaram a história do povo do lugar, outras ainda sinalizam para feitos de um determinado político ou homenageiam uma personalidade internacional, nacional ou local.

Além de se apresentarem com significados específicos, as praças têm, também, funções definidas, que vão se forjando com o uso que os cidadãos fazem delas ao longo do tempo.  Existem as praças que são um local de descanso, de fazer nada, de jogar conversa fora, enfim, de ver “a banda passar”. Outras são utilizadas para passagem, para esperar o transporte que as leve a algum lugar para onde queiram ir. Há as praças que servem de ajuntamento de pessoas que fazem trocas de objetos, vendem artigos adquiridos de forma um pouco enviesada: são as chamadas “ilhas do rato”. Existem praças que são parque infantil, onde as crianças, acompanhadas de algum adulto, ou acompanhadas de si mesmas, divertem-se nas gangorras, nos túneis, nos balanços. E há as praças de onde partem as reivindicações sociais, os protestos, as manifestações políticas, religiosas, as passeatas apregoando as qualidades políticas de um candidato a alguma coisa. As praças, em geral, são o lugar onde os “sem teto”, ao abrigo da abóbada celeste, descansam seu corpo cansado, para, em seguida, sair à procura de algo que, para eles, não está em lugar algum. Mas, as praças podem ser, também, o palco de ritmos e instrumentos, de música que enleva e que diverte.

Toda cidade tem sua praça, por menor que seja. É na praça, ou nas praças, por ser um espaço público, que as pessoas transitam livremente, chegam e saem à hora que querem, sem que sejam molestadas, pois a praça é do povo. Lugar de ajuntamento, de passagem, de comércio informal, de discursos, de pregações religiosas, de apregoar virtudes de raízes e simpatias, do mendigo, do sem-teto. Lugar de todos. Lugar de ninguém.

Algumas praças ficaram famosas e adquiriram status de signo-símbolo, como por exemplo, a praça de São Pedro, em Roma, a praça de São Marcos, em Veneza, a praça da Sé, em São Paulo, a praça da República, no Rio de Janeiro, a praça do Pelourinho, em Salvador, a praça Dom Eduardo, em Ilhéus, a praça Olinto Leone, em Itabuna, entre tantas outras.

No centro de Itabuna, algumas praças ostentam um passado que ficou na memória da cidade e cujo significado precisa ser desvendado (praça Firmino Alves). Outras servem de descanso para pessoas que esperam transporte para voltar a seu bairro (praça José Bastos). Outras ainda se constituem em pontos de concentração para caminhadas de manifestações reivindicatórias (Jardim do Ó). Há praças que oferecem lazer nos finais de tarde e nos finais de semana (praça Olinto Leone). E há as que são um largo, servem de estacionamento e passagem (praça Adame).

Em síntese, as praças do centro de Itabuna, consideradas como signos importantes são as praças Santo Antônio, Adami, Olinto Leone, José Bastos, Otávio Mangabeira (mais conhecida como Praça Camacan) e Jardim do Ó.

*Texto do livro da autora, “O centro da cidade de Itabuna: Trajetória, Signos e Significados”. Editus.

 

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O HUMANISMO EM JORGE AMADO (UM HUMANISTA NAS TERRAS DO CACAU)- Margarida Fahel

Começo esta fala, particularmente endereçada aos estudantes deste colégio, dizendo também da minha particular emoção, de alegria, de muita saudade e, até, de certo orgulho, por fazê-la neste estabelecimento de ensino que tive a honra profissional de implantar nos idos de 1983, na condição de Diretora. Lembro-me bem de sua inauguração, dos primeiros passos para organizá-lo e fazê-lo funcionar. Um esforço conjunto de um grupo de professores idealistas, vice-diretores, supervisora educacional, orientadora educacional, coordenadora pedagógica e um grupo de apoio comprometido. Àquele momento, era Superintendente Regional de Educação a profa. Edehilda Rodrigues de Oliveira, ainda hoje uma dileta amiga.

Na minha jornada como educadora, apesar da imensa gratificação pela minha carreira como Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, por algumas décadas, que me rendeu honras e alegrias, os anos em que aqui estive, dirigindo este estabelecimento, estão gravados em minha memória, em face da importância do trabalho que aqui realizamos todos.

De modo que volto aqui hoje com uma certeza: aqui vivi anos de trabalho profícuo, de alegrias, de esforço, de união, voltados para o ideal de uma vida melhor e de um mundo mais justo e mais bonito e que, não tenho dúvidas, só se realiza pela educação. Essas palavras iniciais procuro justificá-las em função do tema desta conversa, como verão.

Portanto, meus agradecimentos a Ceres, ilustre confreira, pela escolha deste local para a minha fala, demonstrando sua sensibilidade e carinho comigo. Peço-lhes registrarem meu mais profundo desejo de que esta casa de educação seja uma difusora da paz, alegria e conhecimentos ou, lembrando a nossa inesquecível poeta Valdelice Pinheiro, que aqui também seja “um campo de paz.”.

Assim dito, dirijo-me ao tema desta conversa de hoje e que despretensiosamente denominei de “O Humanismo em Jorge Amado”.

Inicio-a, pedindo licença para ler um trecho do crítico Hermes Rodrigues Nery, da apresentação da obra “Conversando com Jorge Amado”, de Alice Raillard:

“Sua literatura, fruto dessa experiência pessoal, genuína, que tudo quis recolher e contar, absorvendo com desmesurada intensidade o sabor da vida, em suas múltiplas e amplas perspectivas, é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

“Toda uma vida dedicada ao Brasil, expandindo a nossa cultura pelo mundo afora, das tradições, do ritmo, do fluir do nosso sangue mestiço, dos negros, das mulheres cativantes, da sedução da Bahia, de tudo isso escreveu (…) denunciando as insensibilidades das elites políticas em relação a tantos problemas que fazem sofrer o nosso povo, entre eles a miséria.” (Esta apresentação foi escrita em 1990).

Reputo como absolutamente verdadeiras as palavras de Rodrigues Nery e sobre os pontos levantados haverá momento de tratá-los, mas, neste prólogo, tomo como fundamento para o início de conversa a afirmação do crítico, segundo a qual a literatura de Jorge” é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Parto do expresso porque desde os meus primeiros estudos sobre a obra de Jorge Amado, e já há bastantes anos, senti-me extremamente seduzida por um sopro, assim chamo, que, para mim, perpassava tudo que dele lia: uma atitude amorosa, compassiva e humana sobre os seres que habitavam sua ficção e um latente desejo de compreensão de suas realidades. Os aspectos estritamente ligados à urdidura ficcional, especialmente os mais formais, nunca me preocuparam de maneira especial. Não que não sejam importantes e passíveis do interesse crítico, mas não era exatamente o elemento de sedução ao meu olhar. Foi o fabuloso contador de histórias, como ele próprio gostava de rotular-se, com uma presença narrativa marcante e os sentimentos dele emanados que provocaram não apenas a minha admiração, mas a necessidade de estudá-lo e conhecê-lo com maior profundidade.

A obra de Amado, suas histórias nascidas das realidades conhecidas e vividas pelo autor, como ele próprio sempre quis dizer, a profusão de personagens retirados da engrenagem social de um tempo, de uma época, dos lugares caminhados, esteve sempre a levantar questionamentos que desembocavam quase rotineiramente nas questões sociais, políticas e econômicas, é fato, mas que não se limitavam a expô-las e denunciá-las. Sempre me pareceu que Jorge Amado intentava algo mais, ou através disso. Sempre me pareceu que o lirismo que envolvia todo o seu fabuloso mundo ficcional não era apenas uma lufada romântica para amenizar realidades tão dramáticas, na maioria das vezes.

A obra à qual me referi no início desta fala, de Alice Raillard, revela Jorge através dele mesmo, e revelando-se ele como um incrível e lúcido conhecedor do seu tempo, de sua época, de sua terra e de sua gente. Jorge Amado tem uma clara e vívida compreensão de sua obra, de sua evolução como ficcionista e do sentido maior de sua atividade de escritor. Ele tem uma consciência clara e precisa, desculpem a redundância, do sentido e missão de sua atividade literária. Relembro aqui palavras de outro grande escritor baiano, ainda em plena atividade inventiva, o nosso João Ubaldo Ribeiro, amigo dileto de Amado, quando disse com exatidão: “… Devemos a Jorge Amado a abertura da consciência literária no Brasil. Ele foi um pioneiro cheio de esplendor e obstinação. É um homem indissociavelmente ligado não somente à história da literatura, mas também à cultura brasileira. Foi escolhido pelas fadas, ou por quem quer que seja. Jorge atravessou toda a literatura brasileira, praticamente desde a Semana de Arte Moderna, e atravessou-a com uma obcessão que, pode-se dizer, chega ao sublime, o sentimento de uma missão. De forma incrível. Ele ajudou a introduzir o Brasil na modernidade.” Coloco essas coisas porque elas me levam ao foco proposto, verão.

Jorge analisa a fase inicial de sua obra, basicamente protagonizada pelos romances “O País do Carnaval”, “Cacau” e “Suor, fase de nítido engajamento político- ideológico, em que esteve preso aos ditames da estética e ideologia marxistas. Ele diz compreendê-la, além disso, em função do momento em que as escreveu, pouco mais que adolescente. Segue interpretando o seu “progredir” enquanto ficcionista e como criador de personagens quase heroicos, agora realmente representativos de sua terra: a princípio, a Cidade de Salvador da Bahia, como era então chamada, cidade que o abrigou e o fez crescer em suas ladeiras e suas ruas estreitas de então; daí emergiram as grandes figuras de vagabundos, meninos de rua, marginalizados, trabalhadores do cais da Bahia, pescadores e prostitutas, uma plêiade de personagens que ainda oscilam entre a realidade e a magia. De sua paixão pelo povo e sua realidade, explodiram os personagens da terra grapiúna, a sua terra, a civilização do cacau, da qual também fazemos parte.Daí surgiram, na pena mágica de Jorge Amado, os quase lendários coronéis, os jagunços, as prostitutas do Bataclã, as senhoras aprisionadas, os amores impossíveis, o sangue derramado nas roças de cacau. De lá e de cá –Salvador da Bahia e Terras Grapiúnas- as obras que encantaram o mundo: Dona Flor e Seus Dois Maridos, Jubiabá, Mar Morto, Os Pastores da Noite, Capitães de Areia,Tieta do Agreste; Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Tocaia Grande e Gabriela, Cravo e Canela, citando somente algumas das obras do grande Jorge.

Na verdade, o defensor dos marginalizados, dos injustiçados, dos bêbados e vagabundos não foi plasmado, assim creio, pela ideologia comunista. Havia, sim, em Jorge, um ser profunda e humanamente tocado pelas fraquezas humanas e pelas dores sociais. Um ser capaz de entender os sentimentos humanos e, especialmente, um homem capaz de entender que um povo particularmente singular emergia desse caldo cultural baiano. Mesmo o leitor mais ingênuo percebe que o escritor, mais que apenas criador, ama seus personagens , os compreende, protege-os, além de defendê-los.

Um olhar mais arguto, portanto, percebe que Jorge sempre pretendeu mais do que contar as histórias que viu e viveu.Atualmente, novos paradigmas críticos estão aí e melhor podem explicar a obra amadeana. Na verdade, a própria Antropologia, e leia-se no Brasil Roberto Da Matta, já havia tomado em estudo a obra amadeana, vendo-a, especialmente Dona Flor e Seus Dois Maridos, como representativa de um caráter nacional. Ele alonga seus estudos a Gabriela, Cravo e Canela, e passa a mostrar a obra de Amado como bem mais significativa do que ingenuamente ou preconceituosamente se imaginava. Passa a vê-la como uma obra de caráter relacional, ou seja, que se objetiva a partir do entendimento de uma sociedade que se desenvolve pela via de estruturas sociais que se rivalizam, mas que precisam relacionar-se para subsistirem. A obra “A Casa e a Rua,” de Da Matta, atribui longas páginas à análise do romance de Amado. Diz ele: “… a sociedade brasileira é relacional. Um sistema no qual o básico, o valor fundamental, é relacionar, misturar, juntar, confundir, conciliar”. E aí, ele diz já se dirigindo à obra de Jorge: “… no caso da obra de um escritor como Jorge Amado e da tomada de um dos seus trabalhos como paradigma para os problemas da sociedade brasileira, (…) essas ideias parecem ser um belo ponto de partida”. Da Matta afirma, pois, categoricamente, sobre a narrativa de Amado: …” É impressionante, diz ele, que nenhum crítico tenha percebido essa chamada “guinada” do autor como um modo de enfrentar os temas não oficiais da sociedade brasileira”. “Em Gabriela, (Lançada em 1958) Jorge mistura a obra literária com a vida diária e com as instituições permanentes dessa sociedade”. Aparecem, então, não os temas estritamente históricos, os acontecimentos políticos, mas a presença “do outro mundo” e, particularmente, a presença da mulher, seja a prostituta ou a senhora. Surge a comida como elemento articulador das relações sociais. Os personagens assumem o papel das amizades, de um mundo marcado pelas relações afetivas. Atualmente, o campo dos Estudos Culturais permite revisar a crítica sobre essa obra, revelando-a como capaz de responder a questionamentos da Etnografia, ou seja, vê-la como reveladora de uma raça num determinado contexto geográfico. Uma pesquisa rápida revela atualmente um bom número de dissertações de mestrado e teses de doutorado que têm como foco a obra de Jorge Amado, levando-a, pois, aos estudos acadêmicos, admirando-a enquanto, basicamente, seu valor estético- literário e vendo-a em amplitudes outras, a partir de sua importância cultural, enxergando nela uma possibilidade de entender este país tão singular e esta não menos singular gente brasileira. Cito, aqui, para os mais interessados, estudos nessa linha, muito atuais:

1-O Brasil Best Seller de Jorge Amado- Literaturas e Identidade Nacional, de Ilana Seltzer Goldstein, da Editora SENAC, S.P(Tese de doutoramento em Antropologia Social).

2- Dissertação de Mestrado: Jorge Amado e a Identidade Nacional-Diálogos Políticos-Culturais, de Carolina F. Calixto.

3- Artigo: Retrato de certa Brasilidade, de Clarice Cohn.

4- Ensaios: Estudos Culturais: Propedêutica, Rivalidades e Perspectivas, de Luciano Rodrigues Lima.

Tal leitura da obra amadeana leva-me a caminhar um pouco mais na perseguição ao tema proposto e , vendo-a através do desejo do autor de entender e explicar sua gente e sua terra, pontuo a importância de grifar alguns elementos substantivos que, a meu entender, caracterizam essa singular gente baiana e mesmo brasileira e que estão expressos nos personagens magnificamente criados.

O primeiro deles, o sentimento de fraternidade. Enfatizo o termo, aqui, para vê-lo na acepção específica da mensagem do escritor: o desejo de unir um povo fruto de raças tão distintas, nascido de circunstâncias histórico-sociais tão discrepantes. Uni-lo pela dança, pela música, pela derrubada dos preconceitos religiosos e sociais. Uni-lo pela alegria e pela esperança. Falando a respeito, a escritora Alice Raillard expressa: “… Uma obra que poderíamos chamar de fraterna- o que, sem dúvida, está em parte ligado a seu brilho extraordinário – dirigido pela ideia de liberdade- noção da qual Jorge tomou consciência desde muito cedo e que orientou a sua obra e seu engajamento.”

Peço-lhes, então, que acrescentem este segundo termo, liberdade, como mais um elemento estruturador do tema aqui perseguido. Seus personagens, o escritor os quer livres e os constrói ou os retoma do contexto real da vida com essa finalidade. Ele entende que somente livres os indivíduos se apresentam genuínos, em suas grandezas e em suas fraquezas, em suas desgraças e suas alegrias. Os grandes personagens da obra amadeana, quer sejam os femininos, Gabriela à frente, Tieta, Dona Flor, Teresa Batista; quer sejam os personagens masculinos : Balduíno, Quincas Berro D’água, Pedro Arcanjo não se enquadram num modelo social estratificado, exatamente porque souberam viver aquilo que realmente eram em sua humanidade.

Veja-se, exemplificando isso, que a famosa Gabriela, talvez mesmo o seu personagem mais admirado e sedutor, não encantou os milhões de leitores apenas por ser bela, rústica e sensual. O que primordialmente a todos seduziu foi a ideia do amor sem condições, sem amarras: o amor pelo próprio amor, sem interesses medíocres ou como estratégia de segurança, de conforto ou ascensão social.Gabriela não ambicionava ser “senhora”, ter joias, vestidos, chapéus ou sapatos caros, sequer roças de cacau ou palacetes na cidade.Por isso, não precisava casar.O amor de Nacib lhe bastava e isso ela já tinha.Gabriela queria ser livre para não usar sapatos apertados, para dançar no Terno de Reis, para soltar pipa com a molecada.Ou seja, livre para ser ela mesma.Pode-se contestar isso, vendo-a como uma visão romântica de Jorge Amado, mas, se perguntarmos o que movem os desejos, a resposta óbvia será: os interesses.Interesses de domínio, de poder, de posse.Contra isso, Jorge criou Gabriela: livre, pura, íntegra.

Falando de Tocaia Grande, uma das mais significativas obras de Jorge em relação à civilização do cacau, o autor enfatiza a sua preocupação com o ideal da liberdade do homem: “… Creio que Tocaia Grande é um livro em que a ação corresponde exatamente à minha preocupação com a liberdade do homem. É um livro contra as ideologias. Contra a ideologia que é, creio – eu o disse em O Menino Grapiúna – um dos males fundamentais do nosso tempo”.

Outro aspecto encontrado na construção ora buscada revela-se na presença inequívoca do otimismo, da alegria e da esperança. Os romances de Amado, apesar das dores e sofrimentos, da violência, da crueza de determinados fatos e temas, são romances de fé na vida, numa explosão de força e de alegria de existir. Seus personagens caminham para frente, a esperança anima a luta e promove a mudança. Esse otimismo, aliás, o próprio escritor o reconhece e dele tem absoluta consciência. Falando de Gabriela, ele afirma: ”… Gabriela é um livro muito otimista sobre a vida – aliás, toda a minha obra é, eu não sou um pessimista, é uma das razões que faz com que eu seja pouco amado pela crítica, justamente porque não tenho este sentimento masoquista da vida a que eles são afeiçoados. É um livro otimista…”

O otimismo, a alegria de viver, a esperança vão contribuir com outro elemento que enxergo fundamental para o alcance do tema aqui tratado e diretamente vinculado ao sentido da obra de Jorge: “o encontro e a caracterização da identidade brasileira”. Tal identidade ele busca revelar, paulatinamente, em sua vasta obra, partindo do reconhecimento de caracteres que unem o povo brasileiro, particularmente o baiano: e ele o apresenta como um povo efusivo, generoso, jovial, de riso largo, sempre voltado para a festa, a dança, os cheiros e os sabores, capaz de transformar dores em risos. O aprofundamento dessa oposição, dores e risos, o levará, a partir de Gabriela, a inserir o humor em sua narrativa. Este aspecto acentua a ascensão ficcional do escritor e a capacidade de dar agora a sua obra um avesso, uma plurissignificação ainda não realizada de modo tão eloquente. O próprio Jorge, falando do humor, explica: …”é a capacidade de rir da besteira humana, da imbecilidade, e de condenar, por meio do riso, as injustiças, as feridas, toda a feiura, toda a ignomínia da vida numa sociedade desumana”.

Alcança-se, então, uma nova leitura da obra do escritor baiano, vendo-a essencialmente comprometida com a caracterização de um povo, de uma gente, de suas histórias, de sua história e, num conceito mais elástico, de uma civilização: a civilização do cacau, violenta e sofrida e a civilização da Salvador da Bahia. A Salvador daqueles menos favorecidos: os malandros, os marinheiros, os meninos de rua, os moradores do cais, os pescadores, as prostitutas, o “povo de santo”, a gente do povo, enfim.

Assim, mais uma vez, valho-me do próprio Jorge para comprovar o aqui revelado: ”… O Brasil é um país muito especial, muito… específico, por sua mistura de raças. Aqui se deu um fenômeno extraordinário: tudo que nos trouxeram os negros… A cultura negra nos deu um caráter diferente, um caráter quase feérico… O sentido da festa, os ritmos do nosso carnaval… O povo do Brasil é um povo extraordinário que luta, não perde a esperança, segue em frente na pior das condições.”

Ao lermos alguns manuscritos de Jorge, o Jorge crítico literário, o Jorge historiador, o Jorge misto de historiador e antropólogo, que muitos estudiosos desconhecem, percebemos claramente essa intenção do autor de Gabriela: caracterizar sua gente, o povo baiano, que ele tanto amou. A acadêmica Ilana Goldstein, em sua tese de doutoramento O Brasil Best Seller de Jorge Amado, diz:

“Ao fazer um balanço dos muitos manuscritos em que Jorge Amado faz o papel de crítico de arte ou crítico literário, percebe-se que, em geral, seu critério de julgamento ao analisar uma obra é o grau de baianidade e brasilidade das obras em questão. Ele valoriza artistas e intelectuais que se reapropriam da cultura popular, (…) por causa da “mistura de sangues.” A partir da Bahia –o “coração do Brasil”, por Jorge Amado- emergem representações da identidade nacional brasileira: seríamos uma nação mestiça na qual as contribuições mais importantes viriam dos africanos e portugueses; um país em que os artistas se aproximam do povo e onde a cultura popular “penetra pelos cinco sentidos”; nosso povo seria resistente e otimista, a alegria vencendo a tristeza”.

A preocupação e intenção de Amado com essa representação da identidade em sua obra é tal que se pode comprová-la, até mesmo, no trato dado à língua e nos temas ligados ao sincretismo religioso, este, aliás, sempre enfático em Jorge Amado. Num discurso de agradecimento, ao receber o título de doutor honoris causa, em Lyon, na França, ele proferiu: “… nós nascemos num grande leito de amor, onde as raças se cruzaram e se misturaram”. E ele não está a falar aí apenas da mistura “das três matrizes básicas da nossa nacionalidade” (o português, o africano e o indígena), mas referia-se, também, ao fato de elas terem se somado, no decorrer do tempo, “a imigrantes japoneses, semitas, eslavos, latinos, e anglo-saxões, num duro processo que prossegue e se amplia (…), uma civilização mestiça, novidade no mundo. ”A presença dos libaneses e sírios, por exemplo, na comunidade da civilização do cacau, é vista com a extrema simpatia do autor, como se vê através do personagem Nacib. Na verdade, Nacib e Gabriela são os protagonistas da obra Gabriela, Cravo e Canela. Jorge Amado sempre reiterou que esse romance era a história de amor do turco Nacib e da mulata Gabriela. Nós, pobres leitores enxergamos ali tantas e tantas coisas…

Gostaria de frisar, ainda, que Jorge Amado, em sua consciência de escritor missionário e também visionário, como dele é dito, tornou-se o antropólogo e historiador de sua gente. Apaixonado pela Bahia, em seus manuscritos ele conta a fundação da cidade de Salvador da Bahia, alternando versão de natureza factual, histórica e versão de natureza mítica. Quero demonstrar, com essa alusão, que a “verdade” da obra de Jorge, de sua ficção, é uma verdade que extrapola o nível do realismo no que comumente o enquadram, para ser o porta-voz da alma, dos costumes, das tradições e das crenças de uma gente especial, que se fez a partir de uma cultura branca, europeia (o português), da religiosidade cristã e de uma cultura negra, da riqueza de seus orixás, preferencialmente, e que depois se alargou, se enriqueceu, em função dos imigrantes aqui chegados. Dessa forma, uma base antropológica serve de assento, intencionalmente, à obra amadeana.

Assim, ouso afirmar que Amado, longe de enxergar o homem através de um estreitismo ideológico, no que estaria ligado aos postulados marxistas, presentes no início de sua obra, o vê em sua condição de ser social, por uma ótica antropológica também, como acabamos de sinalizar, entendendo-o em sua complexidade humana, existencial e racial, fugindo a um determinismo redutor. Vê-se nos personagens criados, assim como na visão do narrador, a expressão de uma certeza maior: a de que os seres humanos não precisam apenas de pão, de casa, de bens materiais que os sustentem e protejam, mas necessitam da alegria, da festa, da bondade, da amizade, da generosidade, do amor, enfim. E, acima de tudo, precisam ser livres para pensar e fazer escolhas. Pensar é transgredir e na transgressão está a força dos personagens amadeanos. E, em razão de tudo isso, a presença da poesia e da magia se instala em Jorge Amado, envolvendo a obra e os seres que a habitam. Essa poesia está impressa na beleza que Jorge confere aos seus personagens, na ternura com que os trata. E, aí, destacam-se os papéis femininos. Mesmo em romances em que os personagens são construídos a partir de um contexto de brutal violência, como é o caso de Tereza Batista, os sentimentos bons e puros continuam latentes e resgatam sua personagem. Tereza opta pela vida e pela esperança através do filho desejado.

Dessa forma, Jorge ergue sua multidão de seres, envolvendo-os num halo de fantasia, algumas vezes, magia e heroísmo, num processo que lembra o realismo fantástico. No entanto, e pode parecer paradoxal, em face da precariedade de suas vidas, na visão do criador, eles são, antes de tudo, humanos: vítimas ou algozes, oprimidos ou opressores, mas, sempre, capazes de sofrer, sentir, chorar, amar, alegrar-se e ter confiança no futuro.

Desaguamos, então, no questionamento óbvio: é Jorge Amado um humanista?O escritor que criou os cruéis e temidos coronéis do cacau- aqueles que construíram uma civilização adubada com sangue- o romancista que cantou prostitutas e vagabundos, que demonstrou o outro lado das histórias de heroísmo das tocaias grandes… É ele um humanista?

Teríamos que indagar, inicialmente: que é ser um humanista?Que é o humanismo, então?Numa acepção bem simplificada, humanismo seria a corrente filosófica que estuda a ética e a natureza humana, entretanto, várias outras acepções são comumente conhecidas: o termo tornou-se corriqueiro no campo dos estudos estéticos e literários, vez que rotulou todo o movimento literário e intelectual do Renascimento (Séculos XV e XVI). Tal movimento teve sua inspiração no mundo greco-romano, numa visão filosófica segundo a qual o homem era o centro de todas as coisas. Daí a denominação “humanismo” para essa concepção do mundo e do homem. Como decorrência, humanista é o seguidor do “humanismo”. Aprofundamentos sobre o tema nos levariam a várias correntes e classificações do humanismo (marxista, cigiloso, renascentista, positivista contiano, logosófico e universalista, para alguns), mas não me parece necessário discuti-los neste instante.

Desvinculando-se o termo dos rigores clássicos, ou mesmo de uma conotação de natureza estritamente estética, ele ganhou foros mais livres e amplos e passou a qualificar pessoas preocupadas fundamentalmente com a felicidade do ser humano, com aqueles elementos que lhe conferem humanidade, particularmente os sentimentos, as fraquezas e grandezas de sua condição. O conceito se estende, ainda, a todos aqueles que acreditam que a jornada do homem sobre a terra deve constituir-se na busca de valores que elevem essa condição humana, tornando a sociedade dos homens uma sociedade mais justa, mais feliz, mais igualitária. São aqueles que creem no bem, nos valores humanos: na generosidade, na alegria e no amor. São os que creem, trabalham e lutam por um mundo melhor.

Para mim, está vividamente clara essa intenção e esse propósito em Jorge Amado. Aliás, é o próprio Jorge que diz: “… hoje tenho a impressão de que o mais importante em minha obra é o humanismo, a relação com o homem, o criador da humanidade.” Por isso, falando de Charles Chaplin, o maravilhoso cineasta inglês, criador do imortal Carlito, o doce palhaço, Jorge afirma:…”mais do que qualquer outro artista do nosso tempo, Chaplin contribuiu para o melhoramento da humanidade.” Falando sobre um chamado humanismo brasileiro, afirmou Jorge, em um dos seus manuscritos: “… é a luta contra o preconceito, o ódio e o racismo. A apartheid é o anti-humanismo, pois que separação extrema entre as etnias; o povo brasileiro representa o verdadeiro humanismo, os sentimentos mais nobres e profundos, por se originar na fusão interétnica, portanto plena de amor e tolerância”.

Literalmente consciente, pois, de sua missão de romancista, de usar sua palavra a serviço de um mundo mais belo, Jorge ainda afirma: “(…) O romance é uma história que se conta. A história de um indivíduo, uma classe, um lugar, um grupo de pessoas, um casal, um louco, um filósofo, um guardador de porcos, não importa, mas é uma história de algo ou de alguém, de fatos, individuais ou coletivos, uma história que se conta a partir do que se sabe sobre o ser humano. É o que penso.” Indiscutível, pois, a preocupação de Amado com a natureza do ser humano, vendo-o como o grande centro de todas as coisas e de sua própria história.

Acredito estar imaculadamente clara, em todos os seus romances, a paixão de Jorge pelo ser humano. Por isso, ele quis cantá-lo em suas dores e sofrimentos, em suas lutas e superações, em suas alegrias e amores, em seus erros e em suas virtudes. Sem julgá-lo ou condená-lo. Apenas, compreendendo-o em sua humanidade. Essa paixão pelo homem, por sua liberdade, pela bondade, pela amizade e lealdade fez dele um apologista da igualdade de crenças, do respeito à individualidade, da compaixão ante o sofrimento, ante os abandonados e esquecidos.

Creio, portanto, e gostaria de enfatizar esta afirmação, que mais importante do que estudar a obra de Jorge Amado pela urdidura ficcional apenas, ou pelo pitoresco e dramático de suas histórias, será obrigatório desvelá-lo, ainda mais, naquilo que ele tem de mais grandioso, a meu ver: a sua mensagem de um novo tempo, de um tempo de respeito a cada pessoa, independente de suas crenças, de seus papéis sociais.

Vivemos num pais, infelizmente, ainda indiscutivelmente violento, no qual, inclusive, a violência parece banalizar-se. Vivemos num estado violento, a Bahia. Vivem todos aqui, em Itabuna, numa das cidades mais violentas do Brasil, em sua faixa populacional. Imprescindível, pois, ler Jorge e acreditar, como ele, num tempo melhor, a partir do que cada um pode fazer. Então, fecho esta conversa, voltando à minha citação inicial, retomando as palavras do crítico citado, Rodrigues Nery- lembram-se?- falando da obra de Jorge e que me parecem tão atuais em sua sabedoria:

“Sua literatura é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Otimistas e esperançosos à moda de Amado, poderemos, talvez, dizer agora, parodiando o próprio Nery: Um povo que não desiste de se encontrar, mas com muito, muito, muito ainda por fazer!

Obrigada a todos!

Margarida Cordeiro Fahel

Professora Titular de Literatura Brasileira (Aposentada) da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC.

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COMENDA SÃO JORGE DOS ILHÉUS- Tica Simões

Discurso de Tica Simões no recebimento da Comenda São Jorge dos Ilhéus, em 28 de junho 2018.

E uma honra receber a Comenda de São Jorge dos Ilhéus, a mais alta condecoração do Município, neste dia do seu aniversário. Agradeço a indicação do meu nome pela Secretaria Municipal da Cultura, na pessoa do Sr. Pawlo Cidade e o seu acolhimento, pelo Governo Municipal, através do seu Prefeito, Sr. Mário Alexandre Correia de Souza.

Como é sabido, sou nascida em Salvador, mas tornei-me grapiúna por escolha, desde 1964. Nessas terras do cacau, casei com Henrique Simões, tive dois filhos e netas (e ali está a minha netinha Juliana). E ganhei mais uma preciosa família, em Itabuna.  Na Universidade Estadual de Santa Cruz, vivi a maior parte da  minha vida. Tenho a felicidade de dizer que fiz parte do grupo fundador daquela instituição ao lado de tantos valentes idealistas, como a sua primeira reitora eleita Renee A Nogueira, aqui presente. Ali fiz pesquisa, ensino e extensão.

Henrique e eu elegemos Ilhéus como lugar para viver: por sua história, sua beleza, sua gente amiga.
A proximidade dos 500 anos de Ilhéus fez com que nos juntássemos àqueles que têm o olhar voltado para o futuro deste município, que queremos promissor. Nesse sentido, enquanto integrante de um grupo que visa a contribuir para uma Ilhéus cidadã – a Agenda 34 – , tenho publicado algumas reflexões. E aqui, pela oportunidade, volto à pergunta que sempre se impõe: Que Ilhéus queremos e teremos em 2034?

Esta solenidade, sem dúvida, significa a valorização pública de atos de cidadania.  Aproveito, então, a oportunidade para, dentre as várias reflexões possíveis sobre o tema, focando a minha área de ação, rapidamente, ressaltar a importância de políticas culturais que conduzam à realização de ações de educação e cultura, através do desenvolvimento sustentável.
È um desafio e uma grande responsabilidade pensar a cultura, considerando  a sua importância para o desenvolvimento deste Município.
Dizendo isso, quero ressaltar a diferença desta cidade devido à sua singularidade: ser situada na biosfera berço do Brasil; possuir rica expressão histórica, artística e literária; e estar num litoral de beleza singular e de especial atrativo turístico.

Ao pensar na relação entre cultura e ações públicas, penso uma política que enfatize o ponto de vista local sobre a mundialização dos fluxos culturais, recorrendo a diferentes saberes. Também penso em ações que valorizem e abarquem a formação de memórias, a constituição de identidades e a representação cotidiana de sujeitos urdidos pelas interações simbólico-comunicativas. Tenho em conta o perfil deste Município, em consideração de espaços de mediações como, por exemplo, a cultura e o turismo; portanto, entendo empreendimentos que, embora considerando o mercado, não submetam a cultura ao turismo massivo.

Essas rápidas ideias visam somente suscitar reflexão sobre ações que, garantindo a cidadania, alcancem os 500 anos do Município de Ilhéus. A reflexão quer manifestar uma expectativa otimista; e a ideia é muito mais relacionada ao tipo da gestão, ao jeito do caminhar…

Esta medalha que agora recebo, e agradeço, significa para mim compromisso e laço com esta encantadora cidade.
Obrigada.

Tica Simões
Ilhéus, junho de 2018.

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JOÃO UBALDO RIBEIRO: UMA REFERÊNCIA- Sione Porto

Por Sione Porto

Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos. (Trecho do discurso de posse na Academia Baiana de Letras).

À exceção de Nélson Rodrigues, Fernando Sabino e Millôr Fernandes, o escritor e jornalista João Ubaldo Ribeiro foi um dos maiores cronistas, crítico/sátiro, da literatura brasileira.

Não queria ser lembrado com um mito, e sim companheiro de pessoas comuns e humildes, a exemplo dos velhos conhecidos com que se encontrava nas manhãs ensolaradas e nas tardes amenas na Ilha de Itaparica, Bahia, onde nasceu em 23 de janeiro de 1941, local em que se refugiava nas férias de janeiro e ali escreveu boa parte de uma das mais importantes obras: Viva o povo brasileiro (1984), considerada obra máxima, um clássico da literatura, romance histórico, conteúdo da ocupação portuguesa – Estado Novo e a Ditadura, trama passada também em outros cenários como o Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, no período de 1647 a 1977.

Era comum ver o mago literário João Ubaldo Ribeiro no bar e restaurante Tio Sam, no Leblon, tomando o seu chope em tulipa, onde jogava fora conversa fiada e distraída, com velhos conhecidos daquele bairro carioca, onde residia, e seus admiradores, sempre solícito, com seu vasto bigode já grisalho e sorriso largo, idêntico ao seu pai, o ilustre professor Manoel Ribeiro, sempre aos sábados, domingos e feriados.

A influência do cotidiano brasileiro e do sociopolítico foi retratada em toda sua vasta produção literária, deixando um legado inexorável para os amantes da literatura e estudantes que tentam ingressar nas universidades brasileiras – uma referência.

O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro revolucionou a literatura, com seu jeito crítico, sátiro, espirituoso, social e jornalístico.

O seu grande saber jurídico foi adquirido através do incentivo do seu pai Manoel Ribeiro, o qual era advogado, professor, jurista, político (deputado estadual em Sergipe, vereador e procurador de Salvador), além de ter feito parte da cúpula da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado baiano.

Não obstante bacharel em Direito, João Ubaldo lecionou Ciências Políticas em Salvador (BA), mas não quis seguir carreira de advogado, como o pai e o irmão Manoel Ribeiro Filho, renunciando a tudo para se tornar um escritor.

Multifacetado, amante da liberdade e das coisas simples, obteve sucesso, tornando-se um grande romancista, além de escrever livros infantis, com sabedoria e ironia, estilo singular, encontrando também em sua obra o lado lírico, telúrico e pornográfico, como no romance A casa dos budas ditosos, publicado em 1999, que inclusive foi proibido em alguns estabelecimentos.

Conheci indiretamente João Ubaldo Ribeiro através de seu pai Manoel Ribeiro, quando tive a honra de ser sua aluna, em 1980, no curso de Direito Administrativo da UCSAL (Universidade Católica de Salvador). Embora mestre rígido, exigente e sério, apresentava um humor inigualável, causando uma empatia mútua entre professor e aluna.

Criado esse elo carinhoso com o mestre Manoel Ribeiro, fumante inveterado e apreciador de um bom uísque, passamos a manter conversas sobre literatura, filosofia, economia e história, daí o seu desejo que eu viesse a conhecer o filho João Ubaldo, o qual teria afirmado o desejo de conhecer esta então estudante, a quem seu pai dedicara um carinho diferenciado, em razão de, com membro do Diretório Acadêmico da UCSAL, em 1979, termos lançado a coletânea de poema Poejusto, como também de lhe ter ofertado o meu primeiro livro editado, Mulher: poesias inéditas (1979), cujo prefácio foi do professor de Direito Internacional Público, seu conterrâneo Jayme Messeder de Suárez, exemplar esse que vi carregando várias vezes e ter me dito, pessoalmente, que o poema de folhas 29, tinha muita identificação com o seu pensamento, o que me deixou muito feliz e lisonjeada, com a certeza que está bem guardada em sua biblioteca.

Nas conversas entre aulas, aconselhava-me a seguir na carreira literária e me orientava ao hábito da leitura como aprendizado.

O desejo de Manoel Ribeiro em que eu conhecesse seu filho não foi realizado por outras circunstâncias, além de o mesmo morar em outro estado, com várias viagens pelo mundo afora. Todavia, como o destino tem os seus desígnios, através do encontro de Tadeu Ribeiro, sobrinho de João Ubaldo, com meu filho Maurício Pimenta, no Colégio Anchieta, pude manter contato com a família Ribeiro.

Traduzir João Ubaldo Ribeiro como cidadão comum é muito simples. Trabalhou na Prefeitura de Salvador como office-boy, até chegar à vaga da cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras (ABL), antes ocupada por Carlos Alberto Castelo Branco.

Do mesmo modo, citar suas obras é perda de tempo, porque todos as conhecem. Mas vale destacar que muitas delas inspiraram outras artes como o cinema (Sargento Getúlio, 1983; Tieta do Agreste, 1996; Deus é brasileiro, 2003), a televisão (O sorriso do lagarto, 1991).

Todas e quaisquer homenagens ao grande escritor são justas, como as feitas no carnaval carioca, pela escola de samba Império da Tijuca, no desfile do ano de 1987, e o Bloco Areia, ano passado, além de lhe ser concedidos prêmios de tamanha importância, como o Prêmio Camões, em 2008.

Por tudo isso, Viva o povo brasileiro na pessoa de João Ubaldo Ribeiro, o grande, senão o maior brasileiro em seu gênero.

 

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A GRANDE ARAPUCA- Marcos Bandeira

A expressão “arapuca” ,segundo o dicionário Larouse Cultural origina-se do tupi e traduz “ armadilha para apanhar pássaros pequenos, formada por pauzinhos cada vez mais curtos, dispostos e amarrados em forma piramidial”. É assim – como passarinhos – que estão sendo tratados os motoristas que transitam em algumas vias da querida São Jorge dos Ilhéus, cidade belíssima que atrai a cada ano milhares de turistas de todo o Brasil, fascinados por sua prodigiosa história e pelos encantos proporcionados por suas paisagens e praias maravilhosas.

O texto de uma lei, consoante o entendimento do jurista Humberto Ávila não passa de um ponto de partida para que o intérprete construa a norma que vai incidir sobre determinado fato social. O consórcio entre o texto e contexto é que vai gerar a norma aplicável a determinado fato concreto . Com efeito, quando se trata de disciplinar o trânsito, impõe-se admitir que o legislador buscou teleologicamente a proteção e a segurança das pessoas, enfatizando o caráter preventivo da legislação, no sentido de aumentar a segurança no trânsito, promover a educação para o trânsito e assegurar a mobilidade e acessibilidade com segurança de todas as pessoas da comunidade. Logo, ao sancionar o infrator buscou a lei precipuamente fazê-lo refletir sobre o ato culposo ou doloso praticado, aplicando-lhe a multa ou outras sanções prevista na legislação de trânsito. Destarte, a sanção aplicada em decorrência da violação de alguma regra de trânsito deve ter o caráter retributivo – o infrator deve sofrer alguma restrição em seus direitos pelo mal praticado –, por exemplo, pagar a multa, e também deve ser revestido do caráter educativo e preventivo, para fazê-lo refletir e evitar que reincida, servindo de prevenção geral para os demais membros da comunidade, como a dizer, se alguém praticar fato similar sofrerá uma resposta coativa do Estado. Daí, porque em se tratando de leis de trânsito, muitas cidades no Brasil, antes de colocar em prática determinada regra de trânsito na cidade, promovem com certa antecedência uma campanha educativa de conscientização para os condutores de veículos, como está acontecendo atualmente em São Paulo, que está tentando conscientizar os condutores de veículos automotores da preferência que deve ser dispensada aos pedestres, quando estão atravessando a faixa branca nas ruas. Tudo isso constitui educação para o trânsito. Após o esgotamento da campanha educativa tem início a fiscalização rigorosa, todavia, antecedida de uma ampla mobilização de consciência da população. Assim, o resultado alvitrado pela lei certamente será alcançado, pois o objetivo não é punir por punir.

Na cidade de Ilhéus ocorre precisamente o contrário. Os motoristas, principalmente, turistas e oirundos de cidades vizinhas estão sendo surpreendidos pelas centenas de multas de trânsito que estão sendo autuadas pela Secretaria de Transporte do Município. O que chama a atenção é que centenas de pessoas estão sendo autuadas sem saber o motivo ou sem ter a sensação de que esteja infringindo algum dispositivo legal, ou seja, sem que tivesse agido com imprudência, imperícia ou negligência, muito menos com dolo em violar qualquer regra de trânsito, pois simplesmente são surpreendidos como passarinhos que caem inocentemente numa arapuca. Alguns deles, ao trafegar numa via que antecede a uma rodovia, onde 60 ou 70 km pode ser considerada uma velocidade razoável ou compatível com o trecho,entretanto, sem que houvesse sinalização suficiente ou adequada, são autuados porquanto uma placa “tímida” colocada estrategicamente bem próximo do “pardal” indica que a velocidade máxima não poderá ultrapassar 50km/h. Qual o sentido educativo de tais multas? A quem está servindo essas multas? A resposta é simples. Esse tipo de multa não tem qualquer caráter educativo e só contribui para afastar os turistas e pessoas de cidades vizinhas da cidade de Ilhéus. O objetivo é simples: arrecadar por arrecadar, punir por punir. Pode até servir imediatamente aos cofres do município, mas mediatamente poderá se transformar num desserviço á população ilheense e a todos que visitam ou passam por Ilhéus.

O que se observa é que o Estado policialesco tenta sobrepor-se ao Estado Democrático de Direito, no qual são assegurados aos cidadãos os direitos e garantias individuais. Não somos simples súditos de um Estado autoritário que passa como um rolo compressor sobre os direitos dos cidadãos. A nossa CF de 1988 estabelece no seu art. 5º que “ Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.O grito do cidadão Ilheense, Marcio Madureira, que colou no fundo de seu carro “ Visite Ilhéus e ganhe uma multa” não deve ser desprezado, pois ele representa a voz de centenas ou milhares de motoristas que caíram nessa arapuca que a Secretaria de Trânsito espalhou por Ilhéus, escondida em várias partes da cidade.

Na verdade, contra o arbítrio do Estado, termo aqui empregado na sua acepção lata -, compreendendo as várias esferas de poder – município, Estado, União e Distrito Federal -, cabe ao cidadão bater ás portas do Poder Judiciário para fazer valer os seus direitos. Pode-se adiantar que além da falta de sinalização adequada em alguns lugares, a autuação dessas multas padece de alguns vícios que ferem de morte o princípio da legalidade e da proporcionalidade. Portanto, se você está inserido nessa situação, tendo sido surpreendido por essa forma absurda e arbitrária de aplicação de multa, constitui um advogado ou se não reunir as condições mínimas para constituir um advogado sem prejuízo do sustento próprio ,procure a Defensoria Pública para fazer valer os seus direitos junto a Vara da Fazenda Pública de Ilhéus, competente para apreciar os pedidos de violação a direito individual perpetrada pelo Município Ilheense. O Poder Judiciário é a última trincheira que o cidadão dispõe contra a arbitrariedade do Estado. Não somos passarinhos para cairmos em arapuca, somos cidadãos e o município de Ilhéus deve respeitar esse direito fundamental, que nos diferencia como seres humanos.

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A AVENIDA CINQUENTENÁRIO – CORAÇÃO DA CIDADE DE ITABUNA- Lurdes Bertol Rocha  

Até a década de 1960, as casas comerciais da hoje Avenida Cinquentenário eram muito simples, não havendo preocupação com o visual. Eram bazares onde se encontrava de tudo um pouco. Mas, também, era nesta avenida que as decisões mais importantes eram tomadas pela classe dirigente, os desfiles cívicos passavam, os comícios políticos arrebanhavam seus eleitores, os carnavais tinham seu palco e sua festa. 

A Avenida Cinquentenário continua sendo considerada o coração econômico da cidade, local de compras, de bancos, do comércio em geral.

Durante a semana, no horário comercial, a avenida está sempre muito movimentada: congestionamento de carros, pedestres acotovelando-se nas calçadas disputando espaço, clientes de bancos, pessoas que vão às compras, enfim, um vai-e-vem de cidadãos que buscam resolver seus problemas ou os dos outros. No entanto, esta movimentação ocorre mais no trecho compreendido entre a Praça Camacan e a Rua Adolfo Maron, próxima ao Banco Bradesco onde, principalmente em época de festas como o Natal, pedestres, ambulantes e motoristas disputam cada pedaço de chão. Observando-se as pessoas de um lado a outro na avenida, tem-se a sensação de que andam sempre apressadas, na azáfama de descobrir o sentido da vida, correndo na direção de seu infinito.

A Avenida Cinquentenário, coração econômico da cidade, esteticamente deixa a desejar. Como já foi uma rua onde a maioria das edificações não passava do segundo pavimento, a parte superior era residência e a parte inferior era ocupada por algum tipo de comércio. A maioria das famílias não reside mais em cima das lojas. Hoje as construções desta avenida, em sua maioria, ainda são de dois ou três pavimentos, poucas têm de quatro a seis andares. Somente os edifícios Cabral, Benjamim de Andrade e São Judas têm mais de cinco andares. Em toda a extensão da avenida, as construções formam um verdadeiro muro. Não há espaço entre elas. A parte superior das casas, em sua maioria, tem aspecto sombrio, desleixado.

A parte inferior das casas comerciais, também, em sua maioria, são apenas portas abertas que dão para os produtos a serem comercializados. Isto fica bem visível ao se andar pela avenida pela manhã, antes da cidade acordar. O que se observa, então, é uma fileira de edificações de um lado e do outro da avenida, coladas umas nas outras, no meio de um emaranhado de fios e cabos, postes escuros e poluídos com propagandas das mais variadas espécies. Pode-se dizer que a avenida não apresenta um aspecto dos mais agradáveis, faltando, aos comerciantes, preocupação com o visual de seus estabelecimentos.

Avenida Cinquentenário – foto antiga

A Avenida Cinquentenário, na atualidade é uma avenida de tumulto, feia, de notória especulação imobiliária e financeira,

inchada, confusa, envergonhada. (…) A cidade tinha (…) lojas com suas vitrines bonitas, suntuosas, bem decoradas. Era uma atração todas as noites. (…) Hoje é um núcleo de desempregados, de camelôs, de pedintes, de mendigos. É nossa vergonha” (Jornal Agora, 28 de julho a 2 de agosto de 1997. Edição especial, p. 7). 

À noite, nos feriados e nos finais de semana, toda esta movimentação cessa. A avenida fica praticamente vazia: poucos carros, alguns pedestres andando despreocupadamente pelas calçadas. A calma e o sossego imperam. Tem-se a impressão de que os responsáveis pela azáfama da semana estão dormindo ou se mudaram. As casas comerciais ficam fechadas, a não ser que seja uma data especial como Natal, Dia dos Namorados, Dia das Mães, quando tudo continua em atividade. Os jovens que, durante a semana, andam em grupos ou solitários pela avenida, não são vistos, pois, normalmente, vão às praias de Ilhéus e, a partir do ano 2000, com inauguração do Shopping Jequitibá passaram a fazer deste equipamento urbano seu ponto de encontro.

As calçadas da Avenida foram refeitas no governo do prefeito Capitão Azevedo, como presente entregue à cidade em 28 de julho de 2010, por ocasião de seu centenário. Ficaram mais largas, com piso tátil para deficientes visuais, alguns bancos ao longo do percurso e caqueiros com plantas. Contudo, o novo calçamento, feito de tijolos intertravados, não oferecem conforto para se caminhar nelas, principalmente para as mulheres, quando estão de sapato de salto.

Além disso, as pedras do calçamento estão se soltando, os vasos com plantas, em muitos lugares, transformaram-se em depósito de lixo, pois, não há cuidado por parte dos transeuntes nem dos lojistas, que não têm a cultura do cuidado com os equipamentos públicos.

Na verdade, o que falta à Avenida Cinquentenário é o charme da arborização, do jardim, de edificações de bom gosto arquitetônico, da conservação das construções antigas e a preocupação, principalmente por parte dos lojistas, de tornar seu estabelecimento um ambiente convidativo, agradável, com fachadas de bom gosto, mantendo assim a tradição de ser a rua mais importante para o comércio da cidade.

De qualquer forma, pode-se dizer que a Avenida Cinquentenário “(…) além de ser um lugar por onde se passa ou se deixa de passar [é] uma rua [que] está carregada de história, está carregada de memória, está carregada de experiências que o sujeito teve, que seu grupo teve e que a história de seu grupo naquele espaço teve [e tem]” (ROLNIK, 1992, p. 28).

*Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Sergipe (2006). Licenciada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Teófilo Otoni (1974), Pós-graduação lato sensu em Geografia Humana (FAFITO) e Desenvolvimento e Gestão Ambiental (UESC). Mestrado em Geografia, na área de Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal da Bahia (2001). Professora titular da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, desde 1988. Pesquisadora na área de Geografia com ênfase na Fenomenologia, Semiótica, Geografia Humana e Cultural. Atua nas disciplinas de Metodologia e Prática de Ensino em Geografia.

Texto revisado, baseado na dissertação de Mestrado.

Avenida Cinquentenário – foto atual

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DISCURSO DE POSSE- Silmara Santos Oliveira

Academia De Letras De Itabuna Em 27 De Novembro De 2012

Senhores acadêmicos e convidados,

Dois são os escritores que trato, extraordinariamente, nessa noite: Adonias Filho, pela sua cidadania natural de itajuipense – e devido a ser hoje, 27 de novembro, a data de aniversário de seu nascimento – e Sosígenes Costa, patrono que nomeia a cadeira de número 02 da Academia de Letras de Itabuna – ALITA, que ora passo a ocupar.

Literatura… Quem melhor que ela, para trazer à tona o valor humano e sua realidade vivida? Seja na palavra romanceada com personagens históricos nos quais nos vemos em sua largueza, nos gestos maiores de liberdade e absolvição, benevolência e redenção ou inversamente, na condenação, no movimento mesquinho e apequenado da alma daquele que julga, que se imiscui – e detona a pólvora, seja na poesia, terreno sagrado do poeta. O poema segundo, Octavio Paz é “língua dos escolhidos… Palavra do solitário.”

É a literatura que trata desse complexo tesouro chamado “vida”. E para que possa existir, ela reclama o escritor, o trabalhador das palavras que labora pensamento e forma. O autor é uma espécie de “raio-X” da alma humana e, ao elaborar personagens que comovem ou assustam possibilita ao leitor, burilar a sua própria alma. No eixo dessa literatura, o homem. A órbita humana rege o papel da literatura e do escritor, aquele que anima e dá o sopro inicial a palavra que põe a circular o sentimento vário da pessoa e seu entorno.

É nesse sentido, que Adonias Filho pertencente à Academia Brasileira de Letras, patrono do Memorial e da Academia de Letras de Itabuna movimenta sua escrita, preenchendo-a com personagens bravios e assombrosos, porque o faz à guisa da tragédia e dos conflitos maiores do indivíduo humano. Adonias localiza e ressalta, em grande parte deles, o verniz da Mata Atlântica do Sul da Bahia, realçando-os com o tingir do sangue na fundação dessa terra.

Trabalha cada palmo e légua dessa gleba advinda do zoneamento das capitanias com o tema da implantação da cultura do cacau, inscrevendo como o fruto maior da natureza, o próprio homem em cuja humanidade reside céu e o inferno dantesco, a um só tempo. Seu discurso e seu ser político sinalizam a gravidade das ações praticadas pelos habitantes que fundaram essa região com o ceifar de vidas nas demandas da lida diária nas brenhas da mata fechada.

De seus romances, desfilam dezenas de personagens agigantados pelo destemor, na conquistas de terras e manutenção de suas famílias. Cajango e seu tio, Inuri, em Corpo Vivo; Tari Januária, Zefa Cinco, Lina de Todos e Zonga em, As Velhas;Jerônimo, Abílio, em Memórias de Lázaro e Paulino Duarte, em Os Servos da Morte, para citar apenas alguns poucos. Homens e mulheres, com apenas um sentido: a defesa da vida. A escrita adoniana é fomentada pela memória do menino e alçada pela liberdade, como bem o disse em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras:

Seria imperdoável não mover o tempo… 

O menino está deitado na terra, sombras nas roças de cacau, os homens cortam os frutos. O agreste de Ilhéus, Itabuna e Itajuípe… A saga é violenta, guerra e ódio, também piedade e amor a carga humana pesa como o chão das árvores. Ouviu, o menino ouviu.”

Um escritor de muitas histórias, o Adonias Filho.

Adonias e Sosígenes, vizinhos na geografia e em universos semelhantes na arena do tempo, alinham-se em pensamento e escrita, no que tange ao problema de fundação das terras regionais. Ambos escrevem suas memórias de menino, experiência correlatas no tempo cronológico, Sosígenes nascido em 1901 e Adonias, em 1915, vivenciaram paisagens ainda intactas que tornaram robustas as suas escritas. A terra, o cheiro, o som, os animais, sabores e cores permearam suas mentes, particularizando a aldeia de cada um, em seus cantos e contos.

O patrono da cadeira de nº 02, o poeta Sosígenes Costa nasceu em Belmonte, na Bahia, terra de águas doces e salgadas e amplas paisagens, propícias à contemplação e à inspiração, geradoras de obras como o poema Iararana, que significa “Uma falsa Iara”, uma arquitetura regional sobre como esta região foi colonizada. Claro que sua observação de historiador não se reduziu apenas aos fatos. Antes, mesclou-se ao sentimento poético, ou, ao contrário, o pulsar da poesia se fez maior na atitude narrativa.

Iararana dá conta da colonização brasileira, da miscigenação primitiva na mata brasileira e da invenção de um mito de origem para o surgimento do cultivo do cacau na região” (Malafaia. 2008, p.145).

José Paulo Paes, escritor e crítico literário de grande magnitude, considerouIararana, o “mais extenso, o mais ambicioso e o mais sustentável dos poemas narrativos de Sosígenes”. Dentre outros estudiosos de sua obra, presentes aqui, o escritor Cyro de Mattos e Prof. Aleilton Fonseca, prefaciado por Jorge Amado, é festejado pela crítica por sua linguagem diversificada e paisagens imagéticas pinçadas da natureza exuberante.

Para ilustrar essas imagens, apresento um pequeno trecho de Iararana,

… Mas a alma lá do mato

Me chamou me sossegou:

Não corra meu filho

Que eu sou teu avô,

E em contou a história

E me deu esta flor.

Me levou pela mão

Para o tempo do onça.

Assisti essa história

Do tempo do onça

No tempo em que o rio

Não tinha cacau

E nem frota-pão

Só tinha quiçare

Velame, cajá

Sosígenes gosta das cores de tons rubros, vermelhos lilases, róseos. E como são mágicos esses matizes, violetamente purpúreos, assim como os vitrais da Igreja Matriz da cidade de Itajuípe, transparentes e voláteis na sua penetrabilidade do ambiente. Além de tais cores, os sabores e cheiros de países por onde não andou, o que torna mais bonito e curiosa a sua obra, falar de paisagens não vistas, nem visitadas.

A poesia de Sosígenes celebra a diversidade temática e reúne elementos que vão da literatura clássica ao conteúdo tropical de mata fechada. Fala de deuses, da Grécia, do Japão, universaliza o local, aplica a fábula para engendrar o nacionalismo, utiliza como recursos, textos da bíblia. Portanto, Sosígenes é um tradutor da natureza fundada pelo ser aventureiro, nas suas viagens ao mundo dos pavões que se insurgem no descortinar do amarelo ensolarado.  E como é poderoso o sol para Sosígenes. A gradação do amarelo quente em seus diversos momentos do dia, completando a elegância das imagens e perfumes no poema:

Tornou-me o pôr-do-sol um nobre entre os rapazes

Queima sândalo e incenso o poente amarelo

perfumando a vereda, encantando o caminho.

Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.

A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo

e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.

Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo

de coral com portões de pedra cor de vinho.

O pavão vermelho

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

Ao adentrar no conjunto dessas obras primorosas devemos a esses escritores nas suas diversas formas regionais, nas palavras e articulações semânticas e sintáticas que construíram, o extrapolar de si as lembranças permitindo a nós, leitores, o vislumbre das nossas próprias reminiscências.

Adonias, hoje dia 27 de novembro, completaria 97 anos de idade, se vivo estivesse. É o escritor que Itajuípe homenageia e, agradecemos a todos pela delicadeza do deslocamento da ALITA para esta cidade, como prova de desprendimento e consideração ao seu patrono, bem como a todos que aqui estão presentes.

Nesta noite memorável, nossos agradecimentos mais uma vez aos presentes, a Academia de Letras de Itabuna, ao escritor Cyro de Matos pelo convite que me foi feito para ingressar nesta casa e aos amigos presentes com a satisfação de oferecer o que melhor de mim houver para trabalhar pelas letras e artes do Sul da Bahia.

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DISCURSO DE RUY PÓVOAS NO LANÇAMENTO DO LIVRO O CANTO CONTIDO

Lançamento de livro O canto contido de Valdelice Soares Pinheiro

Coletânea organizada por Cyro de Mattos

Itabuna, 26 de março de 2015

Senhora Sônia Maron, DD Presidente da ALITA

Senhoras e Senhores Acadêmicos,

Senhoras, Senhores e Jovens,

Amigas e Amigos, aqui presentes ou representados.

Sejamos todos bem-vindos com a graça de Deus.

Permitam que lhes conte um itan, isto é, uma história nagô. Trata-se de

A CILADA CONTRA IKU

Contam os mais velhos que havia uma cidade que estava sendo castigada por epidemia. Era uma festa para Iku, que andava atarefado em levar tanta gente para fora deste mundo. Mas havia um homem que resolveu fazer diferente. Ele foi em busca de um conselho de Orumilá. Então, ele procurou um babalaô para fazer uma consulta, saber o que o Pai Maior tinha para lhe dizer. Não deu outra: o babalaô jogou o opelé e Orumilá respondeu direitinho ao que o homem queria saber.

Foi recomendado que o homem fizesse um ebó com certos objetos de segredo e seguisse todo o preceito. Também conseguisse um quati vivo e amarrasse o bicho acima da porta de sua casa. O homem voltou de lá muito confiante e foi providenciar os objetos necessários. Encomendou um quati vivo a um caçador e amarrou o bicho pendurado acima da porta, para que todo mundo visse aquilo.

Vai daí que Iku entendeu de fazer uma visitinha à família do homem. Foi chegando, todo enrolado em seu manto preto, porrete na mão, seguro de si, confiante no seu poder. De repente, ele suspendeu a cabeça e viu o bicho pendurado acima da porta. Disse para si mesmo:

Coisa boa! Vou ter até uma sobremesa…

Foi se aproximando, se aproximando… E o quati bem quieto, pendurado. E quando Iku estirou o braço para pegar o quati, o bicho deu um bote na cara de Iku. Todo mundo sabe que as garras de um quati cortam igual a navalha. Quando um caçador vai para o mato e que seus cachorros avistam um bicho desse, a primeira coisa que ele faz é chamar os cachorros de volta. Do contrário, o quati deixa os cachorros em pedaços. Pois bem: as garras do quati lanharam a cara de Iku. Com o porrete que levava, Iku tentou acertar o quati, mas errou o golpe e acertou na corda. O bicho se soltou e pulou na cabeça de Iku, que saiu em desabalada carreira pelo mundo a fora, prometendo tão cedo não voltar ali.

         Pois é: para espantar a morte basta reinventar a vida.

         Iku é a palavra nagô designativa para a Morte e pertence ao gênero masculino. Pois é: para os nagôs, a Morte não é feminina. É ele. E o que nos ensina o itan narrado agora? Simples assim: para espantar a morte basta reinventar a vida. E todos sabem: a simplicidade é o último degrau da sabedoria. Vale, então, por isso mesmo, revisitar Mateus 10: 16: “Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas.” Sonho maior de todos os viventes é, pelo menos, adiar a morte. Ou como querem os nagôs, espantá-la.

Justamente isso estamos fazendo aqui e agora: espantando a morte, isto é, reinventando a vida. Justamente agora estamos amarrando nosso quati e pendurando o bicho acima da nossa porta. Isso, porém, ainda não é o bastante. É necessário que todo mundo veja isso.

Mas em que, amigas e amigos, o itan sobre o quati se encaixa neste evento acadêmico, do lançamento de um livro, que é uma coletânea de poemas de Valdelice Pinheiro, que nos deixou desde1993? É porque ela acreditou sempre que, para espantar a morte basta reinventar a vida. Ela construiu-se, e propiciou aos que viveram ao seu redor, num viver de prudência igual às cobras e de simplicidade igual aos pombos. Eis aqui, então, a concretude de tal viver: O canto contido. Trata-se de um livro que é uma coletânea coordenada pelo escritor e poeta Cyro de Mattos. Os poemas foram recolhidos dos dois livros que Valdelice publicou em vida: De dentro de mim (1961), Pacto (1977), além de poemas dispersos. Nessas fontes, o coordenador bebeu e traz para nós esse canto contido. Milagrentos, milagreiros e milagrosos, Cyro de Mattos, Sônia Maron, a ALITA, o Laboratório LIDI, a Giostrieditora, a FTC, a família Pinheiro, no seu campo de atuação cada qual fez com que todo mundo veja isso, conforme nos ensina o itan.

Este não é o momento para as análises literárias acadêmicas. É momento de degustação, de vida, porque Iku foi espantado, banido para longe, bem longe. Fiquemos, pois, com o legado poético de Valdelice. Melhor do que descrever como se faz um bom prato é degustá-lo. Poemas arrebatadores, versos que nos fazem caminhar pelos meandros de nós mesmos em busca do encontro consigo mesmo, com o outro, com a vida, com Deus que, afinal, é tudo isso. Por isso vale a pena rever duas de suas magistrais produções:

RETRATO

O canto contido

no centro do corpo,

o pranto pasmado,

perdido de dor,

o gesto partido

nos dedos sem fé,

o peito matado

nas ânsias do amor.

E os pés sem caminho

marcando,

sem passo,

um destino sem traço,

sem voz

e sem cor.

PACTO

Poeta, vamos fazer um pacto?

Vamos praticar o gesto que traduz o poema,

que tira o poema da palavra

e o coloca no ato, e o faz pedra,

ou faz da palavra o gesto e o ato?

Vamos entrar no grande salão vermelho do rei

e entregar nossas vestes douradas, nossas plumas,

nossas rodas, nossos pecados?

Vamos enlouquecer, nus, pelos caminhos,

os pés descalços, as mãos vazias,

repetir a festa do primeiro dia

e reinaugurar a razão?

Vamos chegar na praça e dividir o pão,

dividir o amor, dividir a mão, dividir o sorriso,

o gesto, a palavra, a cor?

Vamos reencontrar o Homem perdido?

Vamos recuperar o ritmo e o Paraíso?

Vamos ser no gesto e na palavra pensamento

e ato sem tempo, sem espaço, eternos?

Vamos quebrar esse campo de força

que separa poema e ato, verso e matéria?

Se os donos do mundo, prefeitos, governadores, presidentes, primeiros-ministros, reis e assemelhados assumissem tal desafio e firmassem o pacto proposto por Valdelice, certamente o Reino do Céu se estabeleceria sobre a terra. Mas podemos, é bem verdade, cada um de nós, a seu modo, num movimento de vaivém, ora na condição de indivíduo, ora juntando-se coletivamente, construir pequenos pedaços de paraíso. Se agirmos assim, o divino fará o resto.

Muito obrigado.

Ruy Póvoas

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DE ITABUNA – Janete Ruiz de Macêdo

*Janete Ruiz de Macedo

A modernização das cidades condicionou um processo de destruição do patrimônio histórico-cultural, levado a cabo pela ação humana e legitimado, muitas vezes, por conceitos de progresso e desenvolvimento que tendem a excluir a fruição cultural das comunidades.

Esse processo tem afligido sobremodo os povoados e vilas que surgem inopinadamente, crescem em processo acelerado e, rapidamente, tornam-se cidades para em seguida transmudarem-se em polos regionais, a exemplo de Itabuna.

A cidade foi expandindo o seu corpo, a início tortuoso, de casas de tetos de zinco em ruas de areia fina que margeavam o rio para mais tarde tornar-se o concreto e argamassa e espraiar-se ao longo do rio Cachoeira, galgando colinas, avançando, abrindo espaço através dos campos que a circundam.

Já vai longe o tempo que se podia ouvir o tilintar sonoro do peitoral festivo das madrinhas das tropas estimuladas pelo estalar agressivo do chicote, o apito estridente do trem que convocava aqueles que partiam para Mutuns ou Ilhéus ou ainda a rouca buzina das marinetes pertencentes à Viação Sul Baiana que desbravavam as estradas lamacentas das terras do cacau.

Os anos passaram depressa… O roncar estridente dos carros, ônibus, motos e caminhões, as buzinas insistentes, os agudos apitos a disciplinar o congestionado vai e vem, os sons intermitentes dos anúncios, as rádios e televisões enchendo o espaço e violentando o silêncio das coisas. Por toda parte o agitar constante, o comércio trepidante, a circulação de riquezas na pressa de crescer, de somar prosperidade.            

O frêmito de modernização percorre a sociedade itabunense, fazendo-a esquecer os traços definidores de sua identidade. Aos poucos seu patrimônio histórico-cultural vai sendo dilapidado, a estandardização de valores gerados pela massificação e globalização substituem as particularidades locais.

Algumas poucas vozes levantam em espasmos longínquos a bandeira do preservacionismo. Mas, defender patrimônio é, antes de tudo, conhecê-lo. E conhecer o patrimônio implica conhecer o percurso histórico em que ele se enquadra e fora do qual perde todo o significado.

A história é esse fio que busca fundamentalmente compreender e viver o presente através da observação do passado, permitindo-nos encontrar formas corretas de movimentarmo-nos no espaço e no tempo em que vivemos.

Não há dúvida de que as realidades patrimoniais são instrumentos preciosos para o estabelecimento do diálogo com o passado. Elas se impõem pela intensidade de sua presença concreta, colocam-nos em comunicação direta com ele. Qualquer racionalização do passado é  codificada por um sistema de referências dependentes da interceptação de vários discursos sobre as realidades vividas pelos nossos antepassados. Ora, o patrimônio assume o papel relevante e insubstituível enquanto referencial observável que permite obter respostas para muitas questões relativas às sociedades que nos precederam permitindo ao indivíduo confrontar-se com as realidades pretéritas e encontrar pistas para a compreensão do seu próprio tempo.

Onde estão esses referenciais em nossa cidade? O que foi feito dos nossos marcos identificadores?

Antes de prosseguir, seria interessante lembrar que a UNESCO tipifica os bens patrimoniais imóveis em: monumentos, conjuntos e sítios. 

Por monumentos entende-se não só as obras de arquitetura e composições importantes como também criações mais modestas, notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, técnico ou social, incluindo instalações e elementos decorativos que delas fazem parte, bem como obras de escultura ou pintura monumental. 

Os conjuntos são definidos como agrupamentos arquitetônicos, urbanos ou rurais, de suficiente coesão, de modo a poderem ser delimitados geograficamente, e notáveis, simultaneamente, pela sua unidade ou integração na paisagem pelo interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, técnico ou social.

Quanto aos sítios, são obras do homem e da natureza, espaços suficientemente característicos e homogêneos, igualmente notáveis pelo seu interesse quer histórico, arqueológico, artístico-científico, quer social.

O lato conceito de patrimônio legalmente consagrado está, portanto, muito longe da tradicional ideia de que só os grandes monumentos têm significado histórico. É hoje possível e desejável integrar no patrimônio cultural não apenas os produtos da cultura erudita, mas também a herança cultural popular, traduzida em inúmeras manifestações e objetos com que cotidianamente nos deparamos.

Pensando como a UNESCO, resta-nos ainda muita coisa a preservar e defender. É tempo de repensar Itabuna e este refletir passa antes de mais nada pela educação, pela sensibilização das jovens gerações, tornando-os cidadãos conscientes de sua identidade e defensores da memória coletiva regional.

Diante desta constatação e compreensão a Universidade Estadual de Santa Cruz não pode omitir-se na busca das raízes, da concepção e das formas de expressão da comunidade que a construiu e constrói e vem desenvolvendo o Projeto Levantamento do Patrimônio Histórico-Cultural da Área de Inserção da Universidade Estadual de Santa Cruz do qual apresentamos o relatório referente aos estudos desenvolvidos na cidade de Itabuna.

 *Janete Ruiz de Macedo é doutora em História, historiadora e membro da ALITA

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