POEMAS- Cyro de Mattos

Versículos
Cyro de Mattos

Reparem
O beija-flor,
De Deus
Aviãozinho,
Frescurinha
De ventilador.
No corrupio,
No frufru,
Alegrinho
Quando vê
A suave flor.
Amar e beijar
Essa a vida do ar.

Do espírito
Maligno,
Impiedoso,
Invejoso,
Esfacelador,
Deus vos livre
Desse bicho
Horrendo
Com seu jeito
Pervertido
De machucar
O que é belo.

Cruz-credo!
Da cegueira
Do espiritado,
Do espinho
Que fura
E não cura
Deus vos livre.

Da empáfia
Do indigno
E seu veneno
Estejam atentos.

 

Soneto de Luís de Camões
Cyro de Mattos

Falarei aos que param pra escutar
do Amor, que é fogo a arder sem se mostrar,
também do desconcerto de Fortuna:
quanto mais se dá mais soberba engana.

Sôbolos rios que vão, desses danos
chorarei onde a mudança dos anos
consiste em nos prender com triste sombra
e em desfiar os corações com sobra.

E tu, terra estranha, vasta de ser
por mares nunca dantes navegados
contarei de mágoas e esperanças.

 

 

Trova de Amigo
Cyro de Mattos

Eu vivo Itabuna,
Itabuna vive em mim,
Nunca pensei ser grande,
Tudo fica é mesmo aí.

Quem quiser se engane,
Ache até que é um deus,
Na cidade dos pés juntos
Onde estão os sonhos seus?

Tudo cabe nas gavetas,
Essa fome não sossega,
Já pensou quanta soberba
Ela engole mais e mais.

Procure ter mais juízo,
Não se julgue um porreta
Nas asneiras do que faz,
Quem te avisa aqui jaz.

 

 

Quadrinhas
Cyro de Mattos

Ingratidão tira afeição,
Pior se feita pelo irmão,
Sendo a vida boa e bela,
Uns não dão valor a ela.

O ímpio com certeza
Faz a beleza ficar feia,
Põe as amargas na pança,
Rancor grande na veia.

A soberba é farto vício,
O duro orgulho também,
Bebe e lambe essas drogas
Quem nunca gosta do bem.

Sem justeza o audaz vivente,
Descontente chuta o menos,
Sua cegueira não permite
Ter remorso, volte atrás.

Deus o livre do pequeno,
Sua presença mal lhe faz,
Com os comparsas comilões
O seu arroto vale mais.

 

 

INFÂNCIA
(ao sublime e inspirador Carl Gustav Jung)

Ilha que brilha
num mar de alegria,
ciranda de cores,
maré cheia.
Soprando a vela,
o verde é ternura,
o branco no céu
compõe o carrossel.
Pintando a criança
– peixinho dentro d’água –
o azul silencioso.
E esse sol que escorre
em minha lágrima.

*
CANÇAO DE NINAR

(ao inspirador e sublime Sigmund Freuf)

Adormecendo,
diz o neném:
Papai me ama,
mamãe também.

Azul de amor,
sonha a criança.
No berço meirgo,
que é o seu pódio,

ela boceja,
abrindo os olhos:
Ô revoltado,

quem te pariu
foi a inveja,
a mãe do ódio.

*
O IDIOTA ÚTIL

( a Lacan e seus discípulos)

Cara emburrada de anjo sem asas,
sem jardins, sem quintais.
O cão fareja:
“Ou não teve infância,
ou não teve pai”

*
Se você nega a infância, nega a vida
Audrey Hepburn

A BELEZA É A PRISÃO QUE NOS LIBERTA
(ao mais do que sublime e inspirador Sir Roger Scruton)

Mimo do céu, infância alada:
lua, rosa e borboleta.
Azul, azul-celeste,
igual ao girassol, gira o planeta.
Conto de fada, encanto:
lua, crisálida; sol, pirilampo.
Entre os astros da flora recende o amor-perfeito,
floresce a sensitiva, voam pavões,
canta a cigarra, a lua se deita.
Enquanto a borboleta beija a flor da correnteza,
As Três-Marias,
pétalas de um trevo na haste de um cipreste,
refletem à luz do dia:
– Pequenino bem-te-vi, desenvolvendo tua pena,
não perca o sentido da vida,
não menospreze a Beleza,
bondade e consolação
que nos afirma na alegria
e nos conforta na tristeza.

BL, o decano da Geração Prefácio, Verba Pública e Privada, autor de Flores de Ocaso, o único livro publicado sem nenhuma nota em todos os jornais de Salvador, agradece a leitura.

 

O Comilão
Cyro de Mattos

Era um comilão incorrigível. Não passava um dia em que não comesse por quatro vezes um prato fundo com uma comida apetitosa. Insaciável, constante. Quando não tinha dinheiro para fazer uma merenda no restaurante, que constava de um prato fundo com a iguaria farta, vestia a roupa maltrapilha, de pés descalços, saía para a rua, pedindo, clamando aos transeuntes por um dinheirinho para comprar alguma coisa, estava se esvaindo de tanto passar fome.
– Um dinheirinho, moço, ainda não comi hoje.
Apertou a barriga com uma cinta de compressão para não dar na vista que estava com a pança estufada, armazenada de comidas várias.
O bigodudo homem sisudo respondeu:
– Dou-lhe dinheiro grande pra comprar um prato fundo de comida, se você morder essa pedra e mostrar que está de fato faminto.
Arregalou os olhos, a proposta vinha em boa hora da fome impiedosa. Prontamente mordeu a pedra como se fosse um pedaço de carne, bem temperado, refogado no arroz gostoso. Voou da boca dentes para todos os lados. Cuspiu sangue, deu um grito lancinante. Ficou chorando, ui, ui, quebrei meus dentes, meu Deus, me socorre, que vou dar um troço!
De agora em diante passou a ser um comilão mais comedido, sem farsa nem artimanha.
Fazia apenas duas refeições modestas, diariamente. Não queria correr o risco de perder a dentadura nova, paga em dez prestações, com sacrifício do que recebia da aposentadoria modesta.

 

 

Não há estrela no céu
Cyro de Mattos

Havia sido aprovado no concurso do Itamaraty para a carreira diplomática. Sonhara muito tempo com isso. Desejara começar a exercer a carreira na Alemanha. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel. Foi nomeado como adjunto do Consulado do Brasil em Frankfurt.
Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, a perfeição na vida. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas.
No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM JUDEU PORCO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo com inteligência e trabalho.
Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Sou o adjunto do Consulado Brasileiro!” O grupo largou a moça contrariado, melhor dizendo, revoltado com aquele brasileiro querendo defender uma judia, se metendo onde não lhe cabe.
Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil.
O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que iria invadir a Polônia, os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.
Estarreceu o mundo a Noite do Cristal quando lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas foram queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.
Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.
As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em sua natureza ariana com as botas de ferro de soldados impassíveis?
Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas.
No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria saudosa.

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