Discurso de Recepção à Acadêmica Heloisa Prata e Prazeres na Cadeira 14 da Academia de Letras de Itabuna
Por Cyro de Mattos
Destaco esses versos do enorme poeta Francisco Carvalho:
homem não é de pedra
nem de areia
homem é o que mora
no que semeia
Associam-se os versos citados ao percurso realizado pela conterrânea Heloísa Prata e Prazeres, fazendo lembrar quando ainda era uma sementinha das letras até se tornar árvore frondosa com frutos reluzentes. Ela retorna agora como boa filha à sua morada primeira, procedente do universo do ensino mesclado com as letras, despontando no que semeou e colheu por toda a sua trajetória de vida.
A Academia de Letras de Itabuna sabe hoje o quanto se engrandece com a chegada às suas hostes dessa conterrânea com biografia rica, que acaba de ser empossada na cadeira 14, antes ocupada pela confreira Sônia Carvalho de Almeida Maron, de saudosa memória. Uma mulher itabunense singular substitui outra mulher itabunense de vida marcante. Bom saber que a cadeira 14 tem como patrona a poeta Valdelice Soares Pinheiro. Que combinação valorosa o tempo nos apresenta com essas três mulheres valorosas, nascidas em mesmo chão grapiúna, de outrora ricas plantações de cacau.
Filha de Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata, nossa confreira Heloisa Prata e Prazeres é casada com Jamison Pedra, um festejado criador de gente e vida na arte da fotografia. Heloísa e Jamison são pais de Letícia, Ana e Daniel. Avós de João Filipe, Samuel, Olívia, Pedro e Leonardo. Ela é irmã do poeta Renato Prata, também membro efetivo da Academia de Letras de Itabuna.
A douta conterrânea mantém até hoje fortes laços afetivos com suas raízes. Criatura afável, veio ao mundo nesta terra de importantes artistas desde que os pais, migrantes sergipanos, para aqui se mudaram no apogeu da lavra cacaueira e fixaram residência na antiga Rua da Jaqueira, hoje avenida Félix Mendonça. Ali, o migrante sergipano, usando a roupagem do sonho e da vontade, buscando criar a família com trabalho e dignidade instalou um estabelecimento comercial de frente para o rio Cachoeira.
A menina conviveu na infância com a paisagem agradável que emergia do Cachoeira, naqueles idos um rio com águas claras, fontes puríssimas, peixe em abundância. Um rio manso no estio, virado bicho de outro mundo quando descia nervoso nas águas turbulentas da cheia. Um rio com seus habitantes ribeirinhos, de caracteres próprios, que lhe davam vida no visual cheio de cantos e cores: o pescador, o tirador de areia, a lavadeira, o aguadeiro e o canoeiro. De lá, de uma das margens de seu querido rio, a menina avistava o entorno da Mata Atlânica, que despontava do verde milenar, bem longe, com a serra do Macuco apontando para o azul dos céus sem fim.
Em Itabuna, fez o curso primário no Colégio da professora Alzira Paim, uma mulher que contribuiu na pequena cidade, ainda tropeçando nas pernas, para o crescimento do fluxo escolar em seus primeiros passos, como dessa maneira também procederam as professoras Lúcia Oliveira, Noide Hage, Lindaura Brandão e o professor Chalupe. A adolescente transferiu-se para Salvador onde cursou o ginasial no Colégio Severino Vieira e o clássico no Colégio da Bahia (Central). Aprovada no vestibular de Letras, graduou-se em Linguas Vernáculas com Inglês pelo Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
Seu currículo é vasto e rico na estrada do saber. Licenciada em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1969); Bacharela em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1972); Mestra em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia (1980); Doutora em Literaturas Românicas pela Universidade de Cincinnati, Oh, EUA (1986). Vê-se assim, sem esforço, numa síntese de seu percurso nas Letras, que possui larga experiência neste campo do conhecimento humano, atuando com ênfase nos seguintes temas: poesia portuguesa, poesia brasileira, poesia moderna, literatura latino-americana e literatura norte-americana. Seu desempenho na área do ensino universitário e execução de projetos culturais é esplêndido. Ressalte-se que criou e organizou o Núcleo de Referência Cultural da Fundação CulturaI da Bahia.
Ela pertence à Academia de Letras da Bahia. Tradutora, autora de quatro livros de poesia e dois de ensaio. Sobre um de seus livros de poesia, Casa onde habitamos, em ensaio que incluí no meu livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia, nós dissemos o seguinte:
“Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor consiste na boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa-nos ver que aqui estamos diante de uma construção poética segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema, que diz de emoções chegando da memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser. Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro, a boa referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de experiências, revelações tantas perante a existência. “
Aos seus predicados de natureza intelectual, ajuntem-se os hábitos da criatura prestimosa, como apanágios de seu caráter, a leveza, a sinceridade, a solidariedade e a gratidão. Com ela se aprende que a vida tem sentido se marcada com o entendimento e o saber que inaugura momentos positivos advindos do diálogo constante entre os seres e as coisas. A vida reveste-se de esperança e se propaga com afeto nas circunstâncias e propósitos das relações que circulam com seriedade sob o enleio do difícil gesto do viver.
Consta na programação do evento de hoje uma leitura de poemas de Heloisa Prata e Prazeres. Peço permissão para me antecipar a essa singela homenagem que lhe vão prestar no final com a leitura de alguns de seus poemas por alguns de nossos confrades e confreiras. Quero ler alguns poemas de nossa lavra, os quais também servem como homenagem que presto à estimada confreira Heloísa Prata e Prazeres.
Com todos os sons de minha alma lírica, vou ler esses poemas.
Soneto das Nuvens
Lá da balaustrada olhava as nuvens,
acima do rio carregando gente
e diversas coisas. Antes que a noite
chegasse, ofereciam viagens.
Mostravam castelos, cada gigante,
um velho barbudo em pé no tapete.
De calção, peito nu, lá no pátio,
ficava vendo-as no azul do céu.
Como elas que voltavam, voltaria
pra brincar com os amigos de infância
quando já fosse um homem? Só havia
um jeito de regressar ao passado,
rindo a mãe disse, sonhando acordado.
Um homem com o menino conversando.
Soneto da Infância Minha
Os quintais frutíferos. Houve afoito
amanhecer, de galho em galho, rosto
de suor molhado deixando as tardes
que inventavam mentiras de verdade.
Inúteis, mas importantes. Lonjuras
alcançavam as puras aventuras
bebidas no nascedouro da vida
com gosto de fruta amadurecida.
Tomava banho na lua de prata,
na rua onde dorme agora, quieta,
a minha turma. A vida não prendesse
meu pássaro, infância minha, não desse
ponto final nas vagas amorosas,
onde corri nas horas primorosas.
Águas do rio Cachoeira
Descendo em adeus,
Entressonho e lágrima
Que emerge do coração
Sem fontes puríssimas.
Nas águas sem escamas
Já não há o ribeirinho
Com o vento de manhã doce.
Vômitos e excrementos
No funeral das águas
Eliminaram a paisagem clara.
Houve a expressão livre
Do sol lavando as faces,
A vida se desvendava
Com a magia das cores.
Viver era a aventura
Desenhada pelas mãos
De quem tudo nos dava
Sem querer nada de volta.
Sem mergulhos agora,
Competente abundância,
Espumas se escondem
Tingidas de vergonha.
De que serves enfermo
Sem brilho nas escamas,
Sem teus cachos de água
Que sempre inventavas?
Confreira Heloisa Prata e Prazeres, a poeta Cecília Meireles, contemplando a sucessão dos seres humanos no discurso do tempo, assim nos fala:
E, atrás deles, filhos, netos
seguindo os antepassados,
vêm deixar sua vida caindo
nos mesmos laços.
A cadeira 14 estava vacante durante bom período. Esperava por alguém de seu timbre intelectual, de alma cativante, de pensamento reflexivo e sensitivo que ilumina a parte obscura da matéria. Há tempos ela vos pertence de fato. Sua antiga ocupante, a magistrada e juíza de Direito Sônia Maron, lá na sua nova morada, erguida em outras dimensões cósmicas, certamente está dizendo que não há outra mulher que dignifique mais a cadeira 14 neste segundo momento do que a competente pedagoga e talentosa escritora. A confreira Sônia Maron certamente está sorrindo de alegria, nessa noite festiva, com a feliz escolha da Academia de Letras de Itabuna.
Ilustre conterrânea, todos nós, membros da Academia de Letras de Itabuna, que gostamos de chamar com carinho de alitano uns aos outros, uníssonos em uma só corrente de abraço afetivo estávamos esperando a vossa chegada. Como expectantes de esperança aguardávamos para vos aplaudir com a beleza que se entreabre na parição da flor, e mais, com o encanto mágico do vento que é chegado ameno para se fixar na memória como sonho.
Professora, doutora, escritora, poeta Heloisa Prata e Prazeres, grapiúna nessa linda floração das letras, nesta cadeira que vos pertence agora de direito e, ao mesmo tempo, na sua realidade existencial, sentai-vos.
E porque sois também uma alitana, estimada por vossos pares, ficai vós à vontade, com a permanência de vosso brilho. Obrigado.