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DISCURSO DE RUY PÓVOAS NO LANÇAMENTO DO LIVRO O CANTO CONTIDO

Lançamento de livro O canto contido de Valdelice Soares Pinheiro

Coletânea organizada por Cyro de Mattos

Itabuna, 26 de março de 2015

Senhora Sônia Maron, DD Presidente da ALITA

Senhoras e Senhores Acadêmicos,

Senhoras, Senhores e Jovens,

Amigas e Amigos, aqui presentes ou representados.

Sejamos todos bem-vindos com a graça de Deus.

Permitam que lhes conte um itan, isto é, uma história nagô. Trata-se de

A CILADA CONTRA IKU

Contam os mais velhos que havia uma cidade que estava sendo castigada por epidemia. Era uma festa para Iku, que andava atarefado em levar tanta gente para fora deste mundo. Mas havia um homem que resolveu fazer diferente. Ele foi em busca de um conselho de Orumilá. Então, ele procurou um babalaô para fazer uma consulta, saber o que o Pai Maior tinha para lhe dizer. Não deu outra: o babalaô jogou o opelé e Orumilá respondeu direitinho ao que o homem queria saber.

Foi recomendado que o homem fizesse um ebó com certos objetos de segredo e seguisse todo o preceito. Também conseguisse um quati vivo e amarrasse o bicho acima da porta de sua casa. O homem voltou de lá muito confiante e foi providenciar os objetos necessários. Encomendou um quati vivo a um caçador e amarrou o bicho pendurado acima da porta, para que todo mundo visse aquilo.

Vai daí que Iku entendeu de fazer uma visitinha à família do homem. Foi chegando, todo enrolado em seu manto preto, porrete na mão, seguro de si, confiante no seu poder. De repente, ele suspendeu a cabeça e viu o bicho pendurado acima da porta. Disse para si mesmo:

Coisa boa! Vou ter até uma sobremesa…

Foi se aproximando, se aproximando… E o quati bem quieto, pendurado. E quando Iku estirou o braço para pegar o quati, o bicho deu um bote na cara de Iku. Todo mundo sabe que as garras de um quati cortam igual a navalha. Quando um caçador vai para o mato e que seus cachorros avistam um bicho desse, a primeira coisa que ele faz é chamar os cachorros de volta. Do contrário, o quati deixa os cachorros em pedaços. Pois bem: as garras do quati lanharam a cara de Iku. Com o porrete que levava, Iku tentou acertar o quati, mas errou o golpe e acertou na corda. O bicho se soltou e pulou na cabeça de Iku, que saiu em desabalada carreira pelo mundo a fora, prometendo tão cedo não voltar ali.

         Pois é: para espantar a morte basta reinventar a vida.

         Iku é a palavra nagô designativa para a Morte e pertence ao gênero masculino. Pois é: para os nagôs, a Morte não é feminina. É ele. E o que nos ensina o itan narrado agora? Simples assim: para espantar a morte basta reinventar a vida. E todos sabem: a simplicidade é o último degrau da sabedoria. Vale, então, por isso mesmo, revisitar Mateus 10: 16: “Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas.” Sonho maior de todos os viventes é, pelo menos, adiar a morte. Ou como querem os nagôs, espantá-la.

Justamente isso estamos fazendo aqui e agora: espantando a morte, isto é, reinventando a vida. Justamente agora estamos amarrando nosso quati e pendurando o bicho acima da nossa porta. Isso, porém, ainda não é o bastante. É necessário que todo mundo veja isso.

Mas em que, amigas e amigos, o itan sobre o quati se encaixa neste evento acadêmico, do lançamento de um livro, que é uma coletânea de poemas de Valdelice Pinheiro, que nos deixou desde1993? É porque ela acreditou sempre que, para espantar a morte basta reinventar a vida. Ela construiu-se, e propiciou aos que viveram ao seu redor, num viver de prudência igual às cobras e de simplicidade igual aos pombos. Eis aqui, então, a concretude de tal viver: O canto contido. Trata-se de um livro que é uma coletânea coordenada pelo escritor e poeta Cyro de Mattos. Os poemas foram recolhidos dos dois livros que Valdelice publicou em vida: De dentro de mim (1961), Pacto (1977), além de poemas dispersos. Nessas fontes, o coordenador bebeu e traz para nós esse canto contido. Milagrentos, milagreiros e milagrosos, Cyro de Mattos, Sônia Maron, a ALITA, o Laboratório LIDI, a Giostrieditora, a FTC, a família Pinheiro, no seu campo de atuação cada qual fez com que todo mundo veja isso, conforme nos ensina o itan.

Este não é o momento para as análises literárias acadêmicas. É momento de degustação, de vida, porque Iku foi espantado, banido para longe, bem longe. Fiquemos, pois, com o legado poético de Valdelice. Melhor do que descrever como se faz um bom prato é degustá-lo. Poemas arrebatadores, versos que nos fazem caminhar pelos meandros de nós mesmos em busca do encontro consigo mesmo, com o outro, com a vida, com Deus que, afinal, é tudo isso. Por isso vale a pena rever duas de suas magistrais produções:

RETRATO

O canto contido

no centro do corpo,

o pranto pasmado,

perdido de dor,

o gesto partido

nos dedos sem fé,

o peito matado

nas ânsias do amor.

E os pés sem caminho

marcando,

sem passo,

um destino sem traço,

sem voz

e sem cor.

PACTO

Poeta, vamos fazer um pacto?

Vamos praticar o gesto que traduz o poema,

que tira o poema da palavra

e o coloca no ato, e o faz pedra,

ou faz da palavra o gesto e o ato?

Vamos entrar no grande salão vermelho do rei

e entregar nossas vestes douradas, nossas plumas,

nossas rodas, nossos pecados?

Vamos enlouquecer, nus, pelos caminhos,

os pés descalços, as mãos vazias,

repetir a festa do primeiro dia

e reinaugurar a razão?

Vamos chegar na praça e dividir o pão,

dividir o amor, dividir a mão, dividir o sorriso,

o gesto, a palavra, a cor?

Vamos reencontrar o Homem perdido?

Vamos recuperar o ritmo e o Paraíso?

Vamos ser no gesto e na palavra pensamento

e ato sem tempo, sem espaço, eternos?

Vamos quebrar esse campo de força

que separa poema e ato, verso e matéria?

Se os donos do mundo, prefeitos, governadores, presidentes, primeiros-ministros, reis e assemelhados assumissem tal desafio e firmassem o pacto proposto por Valdelice, certamente o Reino do Céu se estabeleceria sobre a terra. Mas podemos, é bem verdade, cada um de nós, a seu modo, num movimento de vaivém, ora na condição de indivíduo, ora juntando-se coletivamente, construir pequenos pedaços de paraíso. Se agirmos assim, o divino fará o resto.

Muito obrigado.

Ruy Póvoas

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DE ITABUNA – Janete Ruiz de Macêdo

*Janete Ruiz de Macedo

A modernização das cidades condicionou um processo de destruição do patrimônio histórico-cultural, levado a cabo pela ação humana e legitimado, muitas vezes, por conceitos de progresso e desenvolvimento que tendem a excluir a fruição cultural das comunidades.

Esse processo tem afligido sobremodo os povoados e vilas que surgem inopinadamente, crescem em processo acelerado e, rapidamente, tornam-se cidades para em seguida transmudarem-se em polos regionais, a exemplo de Itabuna.

A cidade foi expandindo o seu corpo, a início tortuoso, de casas de tetos de zinco em ruas de areia fina que margeavam o rio para mais tarde tornar-se o concreto e argamassa e espraiar-se ao longo do rio Cachoeira, galgando colinas, avançando, abrindo espaço através dos campos que a circundam.

Já vai longe o tempo que se podia ouvir o tilintar sonoro do peitoral festivo das madrinhas das tropas estimuladas pelo estalar agressivo do chicote, o apito estridente do trem que convocava aqueles que partiam para Mutuns ou Ilhéus ou ainda a rouca buzina das marinetes pertencentes à Viação Sul Baiana que desbravavam as estradas lamacentas das terras do cacau.

Os anos passaram depressa… O roncar estridente dos carros, ônibus, motos e caminhões, as buzinas insistentes, os agudos apitos a disciplinar o congestionado vai e vem, os sons intermitentes dos anúncios, as rádios e televisões enchendo o espaço e violentando o silêncio das coisas. Por toda parte o agitar constante, o comércio trepidante, a circulação de riquezas na pressa de crescer, de somar prosperidade.            

O frêmito de modernização percorre a sociedade itabunense, fazendo-a esquecer os traços definidores de sua identidade. Aos poucos seu patrimônio histórico-cultural vai sendo dilapidado, a estandardização de valores gerados pela massificação e globalização substituem as particularidades locais.

Algumas poucas vozes levantam em espasmos longínquos a bandeira do preservacionismo. Mas, defender patrimônio é, antes de tudo, conhecê-lo. E conhecer o patrimônio implica conhecer o percurso histórico em que ele se enquadra e fora do qual perde todo o significado.

A história é esse fio que busca fundamentalmente compreender e viver o presente através da observação do passado, permitindo-nos encontrar formas corretas de movimentarmo-nos no espaço e no tempo em que vivemos.

Não há dúvida de que as realidades patrimoniais são instrumentos preciosos para o estabelecimento do diálogo com o passado. Elas se impõem pela intensidade de sua presença concreta, colocam-nos em comunicação direta com ele. Qualquer racionalização do passado é  codificada por um sistema de referências dependentes da interceptação de vários discursos sobre as realidades vividas pelos nossos antepassados. Ora, o patrimônio assume o papel relevante e insubstituível enquanto referencial observável que permite obter respostas para muitas questões relativas às sociedades que nos precederam permitindo ao indivíduo confrontar-se com as realidades pretéritas e encontrar pistas para a compreensão do seu próprio tempo.

Onde estão esses referenciais em nossa cidade? O que foi feito dos nossos marcos identificadores?

Antes de prosseguir, seria interessante lembrar que a UNESCO tipifica os bens patrimoniais imóveis em: monumentos, conjuntos e sítios. 

Por monumentos entende-se não só as obras de arquitetura e composições importantes como também criações mais modestas, notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, técnico ou social, incluindo instalações e elementos decorativos que delas fazem parte, bem como obras de escultura ou pintura monumental. 

Os conjuntos são definidos como agrupamentos arquitetônicos, urbanos ou rurais, de suficiente coesão, de modo a poderem ser delimitados geograficamente, e notáveis, simultaneamente, pela sua unidade ou integração na paisagem pelo interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, técnico ou social.

Quanto aos sítios, são obras do homem e da natureza, espaços suficientemente característicos e homogêneos, igualmente notáveis pelo seu interesse quer histórico, arqueológico, artístico-científico, quer social.

O lato conceito de patrimônio legalmente consagrado está, portanto, muito longe da tradicional ideia de que só os grandes monumentos têm significado histórico. É hoje possível e desejável integrar no patrimônio cultural não apenas os produtos da cultura erudita, mas também a herança cultural popular, traduzida em inúmeras manifestações e objetos com que cotidianamente nos deparamos.

Pensando como a UNESCO, resta-nos ainda muita coisa a preservar e defender. É tempo de repensar Itabuna e este refletir passa antes de mais nada pela educação, pela sensibilização das jovens gerações, tornando-os cidadãos conscientes de sua identidade e defensores da memória coletiva regional.

Diante desta constatação e compreensão a Universidade Estadual de Santa Cruz não pode omitir-se na busca das raízes, da concepção e das formas de expressão da comunidade que a construiu e constrói e vem desenvolvendo o Projeto Levantamento do Patrimônio Histórico-Cultural da Área de Inserção da Universidade Estadual de Santa Cruz do qual apresentamos o relatório referente aos estudos desenvolvidos na cidade de Itabuna.

 *Janete Ruiz de Macedo é doutora em História, historiadora e membro da ALITA

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DESCOBERTA DE CASTRO ALVES – Cyro de Mattos

Cyro de Mattos

Saltou do bonde na parada próxima ao Restaurante Cacique e Cine Guarani, com o firme propósito de conhecer aquele monumento de mais de dez metros, um homem lá no alto encimando o pedestal. Aquele homem de cabeleira negra e basta devia ser muito importante para que fosse homenageado em monumento tão grandioso. 

 Atravessou a rua e se aproximou do monumento. O olhar curioso viu que em um dos lados estava um livro aberto  com um sabre atravessado, tendo em letras douradas os versos:  “Não cora o sabre do ombrear com o livro”. Em placa de mármore,  numa das faces da base, lia-se:  “A Bahia a Castro Alves.” 

Aquela estátua de bronze  assentada no alto representava  um poeta, muito querido pelo povo baiano, estava ali na atitude de fala, de quem declamava, tendo a cabeça descoberta, fronte erguida, olhar perdido no infinito, chapéu mole de estudante à mão esquerda, braço direito estendido. De um lado da coluna, viu um grupo em bronze, representando um anjo em posição de voo, a levantar uma mulher escrava pelo braço, erguendo-a ao alto.  Viu também um casal de escravos.

Quem era esse poeta que a Bahia dedicava imenso amor? Lembrou da biblioteca da agremiação estudantil no Colégio dos Irmãos Maristas. E foi lá,  durante a semana, na hora do recreio, folheando o livro ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, que ficou conhecendo a vida e a obra daquele grande poeta. 

Era um rapaz esbelto, que vivera pouco. Nasceu na fazenda Cabaceiras, próxima a Curralinhos, na  Bahia, em  14 de março de 1847. Tinha grandes olhos vivos, maneiras que impressionavam a quem o assistisse declamando versos de amor, às flores e em solidariedade aos escravos. Causava admiração aos homens e arrebatava paixões às mulheres. Seu estilo contestador contra a situação da escravidão dos negros na Bahia o tornou conhecido como O Poeta dos Escravos. Além de abolicionista exaltado,  foi um liberal atuante, que clamava  pela instalação da República no Brasil. Teve como colega Rui Barbosa no Colégio Abílio Borges, em Salvador, e na Faculdade de Direito do Recife. Faleceu aos 6 de julho de 1847, aos 24 anos, em Salvador, vítima de tuberculose. 

Depois de conhecer um pouco  a vida do poeta romântico, interessou-se por sua poesia. Foi ler, um a um, os livros desse poeta cantor do amor, da água, das pétalas, dos negros escravos e da liberdade. Publicara em vida apenas um livro: Espumas Flutuantes, em 1870. Seus outros livros,  A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876 ,  Os Escravos, 1883,  Hinos do Equador, 1921, tiveram edição póstuma. 

Na medida em que fazia a leitura duma  poesia cativante e libertária, ia anotando alguns versos no caderno, que lhe enriqueciam a sensibilidade.   

Como esses: 

Senhor Deus dos desgraçados! 

Dizei-me vós, Senhor Deus, 

Se eu deliro… ou se é verdade 

Tanto horror perante os céus?!… 

Ó mar, por que não apagas 

Co’a esponja de tuas vagas 

Do teu manto este borrão? 

Astros! noites! tempestades! 

Rolai das imensidades! 

Varrei os mares, tufão! …

Ou esses:

Oh! Bendito o que semeia

Livros à mão cheia

E manda o povo pensar!

O livro, caindo n’alma

É germe – que faz a palma,

É chuva – que faz o mar!

Ou ainda esses, escritos com graça e leveza:

Prendi meus afetos, formosa Pepita…

mas, onde?

No tempo? No espaço? Nas névoas?

Não rias…

Prendi-me num laço de fita!

Perguntava-se como era que no coração de um poeta tão jovem como Castro Alves  cabia tanta afetividade e solidariedade aos excluídos.  Com a leitura de cada livro, sua alma foi-se impregnando da beleza e da verdade postas pelo poeta maior  em versos comoventes, escorridos com amor e talento raro, que só os gênios possuem. 

Castro Alves tornou-se em pouco tempo  um ídolo para o jovem do interior,  desses em que  a marca de uma época ou de um tema brilha com a individualidade manifestada numa espécie de criador que permanece sempre ante a vida que passa.  

Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro efetivo do Pen Clube do Brasil, Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Primeiro Doutor Honoris Causa  da Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado em Portugal, Itália e México.  Publicado em francês, italiano, inglês, russo, espanhol e dinamarquês. 

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CARTA A UM JOVEM POETA- Aleilton Fonseca

Releio sempre a carta que o poeta Carlos Drummond de Andrade me enviou em 1981. Naquele tempo eu tinha 22 anos e havia publicado o primeiro livro de poemas. A idade ardia numa vontade doida de traduzir a vida em versos. Hoje, após tantos janeiros, as musas me cutucam e esbravejam, mas já sei que é difícil comover o vasto mundo, este vale de lágrimas, desamor e enormes cifras.

O poeta gostou do livro e me mandou, em sua letra e estilo inconfundíveis, um voto de confiança, um estímulo, um sopro de vida numa chama que mal balbuciava. Com o envelope inesperado na mão, fiquei atônito entre a alegria trêmula e uma súbita responsabilidade. O carteiro não estivesse já longe e eu o abraçaria, convidá-lo-ia a entrar, conversaríamos sobre o autor daquela carta, eu lhe recitaria os poemas da Rosa do Povo.

Planejei responder ao poeta, mas a surpresa me ofuscou as idéias. E agora, José? Eu lia e relia a mensagem, lembrava de minhas primeiras incursões por sua poesia no ginásio e na biblioteca pública. Aquele nome tão longínquo agora me parecia estranhamente tão próximo. Não consegui inventar palavras para expressar o meu estado de espírito. A missiva, hoje amorosamente amarelada, ficou sem resposta para sempre.

No final daquele ano fui ao Rio e planejei fazer uma visita de surpresa ao poeta. Um dia, saí com o endereço anotado, decidido a ir bater em sua residência. Mas, à medida que avançava pelas ruas, a coragem se perdia pelas esquinas. Acabei perambulando o dia todo, sem encarar o caminho definitivo de um encontro com o admirado autor de Boitempo. E se ele não me atendesse? E se não passasse de um “como vai?”, um “prazer em conhecê-lo” formais? Seria uma situação constrangedora, – o poeta diante de um jovem desconhecido que vinha de certa forma importuná-lo, logo ele, tão discreto e avesso aos cultos da personalidade. Não fui.

Até hoje oscilo quanto ao acerto daquela decisão: ora me arrependo de haver desistido, ora acho que assim foi melhor. O encontro poderia ter sido a quebra de todo encanto. Guardei na distância a admiração e a gratidão pelo gesto de incentivo, embora sentisse também um enorme vazio. Em 1987, quando recebi a notícia de que o poeta havia falecido, senti um choque, uma sensação pontiaguda de perda irreparável, um abismo me engolia e as lágrimas brotavam de meu olhar fatigado. 

O poeta se foi e eu fiquei cativo de minha não-resposta, da perda de sua presença e de sua palavra. Mas, por outro lado, algo valioso eu ganhei: o sentido poético dessa falta, que se conforma e se alimenta na leitura da velha carta, na lembrança de uma resposta não escrita, de uma visita não realizada, de um poema-homenagem que se escreve para sempre em minha memória.

Drummond encantado

Há tantos anos,
o coração do poeta desistiu
de lutar com palavras.

Não lhe mandei minha letra,
nem recolhi sua imagem viva
em meu olhar.

O poeta encantou-se,
liberto de nós e de si mesmo.

E a mim só me resta
a letra íntima da página muda
que nunca lhe escrevi.

Salvador, 13/02/2000

 *Aleilton Fonseca, escritor e poeta é membro do Pen Clube do Brasil e das Academias de Letras da Bahia e de Itabuna.

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CEM ANOS DE SAUDADE- Raquel Rocha

Por Raquel Rocha

Algumas pessoas não deveriam morrer. Pessoas que dedicam sua vida a fazer o bem, pessoas que dedicam sua vida ao conhecimento e pessoas que dedicam sua vida à arte. Gabriel Garcia Márquez se encaixa nesta última. Cada livro seu era uma verdadeira obra de arte que mudava a nossa forma de ver e sentir o mundo.

Nasceu no início do século passado, em 1927 na pequena cidade de Aracataca, Colômbia. Cresceu ouvindo as histórias do seu avô que havia lutado na Guerra dos Mil Dias. Passou a juventude mergulhado em livros. Era leitor de Franz Kafka… Mais tarde, abandonou o curso de Direito para trabalhar como Jornalista.

Publicou seu primeiro livro “A Revoada (O Enterro do Diabo)” aos 28 anos em 1955. Mas foi 12 anos depois, em 1967 que se tornou conhecido mundialmente com “Cem Anos de Solidão”. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1982 pelo conjunto de sua obra. Foi traduzido para 36 idiomas com mais de 40 milhões de livros vendidos.

Em 2012 seu irmão anunciou que Gabriel fora diagnosticado com demência e por isso não voltaria a escrever. Aquela foi a primeira morte do escritor, que diante da impossibilidade de exercer sua arte deixou um pouco de viver. No entanto, confesso que durante esses dois anos nutri a esperança de que ele, num surto de lucidez, escrevesse ainda alguma coisa, um conto, algumas linhas, algumas palavras… E talvez essas palavras o curassem, porque as palavras são mágicas quando escritas por um gênio.

Gabriel Garcia Márquez é um dos responsáveis pela minha adoração a literatura.  Li “Cem anos de Solidão” aos 11 anos e fiquei encantada. Passei noites sem dormir agarrada a “Do Amor e Outros Demônios“,  quis me molhar com a chuva de “La Mala Hora”, me diverti com as Memórias de suas Putas Tristes e “O amor nos Tempos do Cólera” mudou o meu conceito de amor verdadeiro.

No dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, Gabriel Garcia Marquez morreu em sua casa, na Cidade do México, onde morou nos últimos 30 anos. Nem depois de ler a notícia diversas vezes consegui escrever esse texto com os verbos no passado, porque pessoas como ele nunca vão embora, atingem a imortalidade através de sua obra e permanecem sempre conosco.

A Saudade, título desse texto, não  é pela sua partida é saudade de tudo que ele poderia ter escrito mas o tempo não permitiu.

Vai em Paz Gabo. 

“Não senti dor nem medo, mas a emoção arrasadora de ter conseguido viver até ali.”     (Gabriel Garcia Márquez)

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VIDA LONGA AO LIVRO- Ceres Marylise

No próximo dia 23 de abril comemora-se mais uma vez o Dia Mundial do Livro, oficializado pela UNESCO em 1996 e festejado em mais de cem países. 

Com o surgimento de novas formas de leitura e de novas tecnologias, a edição de livros na forma convencional tem suscitado amplos debates evidenciando preocupação com o futuro do livro impresso. Já possuímos o livro digital: nunca tantas ideias foram escritas e divulgadas quanto agora, na era digital. Lê-se cada vez mais em tablets e celulares.

Sejam quais forem as suas formas, os livros sempre serão a celebração do conhecimento e do registro da memória da humanidade. Como amigos nos proporcionam diálogos e questionamentos constantes e a boa leitura é uma experiência mágica, um ato de prazer e de paixão.

A globalização só nos trouxe maior exclusão social e solidão. O mundo atual é permeado pelo paradoxo da incomunicabilidade e nessa epidemia de contradições e incertezas o livro ainda é a maior arma para manutenção dos valores essenciais do homem colocando-se acima de todas as guerras, modelos econômicos e credos.

Desejo vida longa ao livro!

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SABATINA SEM PALMATÓRIA- Sônia Maron

País engraçado, o Brasil. Vem causando estardalhaço a simples e normal obediência ao parágrafo único do art. 101 da Constituição. Esclarecendo melhor, eis o dispositivo da lei maior: “Os Ministros do Supremo Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”. E daí? É um fato corriqueiro em um estado de direito e não um fato inusitado que passa a merecer manchetes e notícias de primeira página, com direito a capas de revistas, fotos e mais fotos e declarações do candidato a uma vaga do Supremo Tribunal Federal. Falo da indicação do jurista escolhido pela presidente para a vaga do ex-presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa. O candidato é o paranaense Luiz Edson Fachin, tido como detentor de “notável saber jurídico e reputação ilibada” (art. 101 da CF, in fine), mas considerado portador de ideias esquerdistas radicais, o que alguns entendem impróprio e preocupante para alguém que se propõe a exercer a função de guardião da Constituição de um país democrático como o Brasil.

Aqui, no país de Macunaíma, causa perplexidade o fato que deveria ser considerado óbvio, normal e corriqueiro qual seja a avaliação, pela Câmara Alta, do pretendente ao cargo mais relevante dos poderes constituídos. Tal qual Macunaíma ( o personagem símbolo do movimento modernista no livro de Mário de Andrade) nossos senadores sempre entenderam a “sabatina” como formalidade ou resultado de arranjos políticos costurados na Praça dos Três Poderes. Nunca acudiu a esses senhores, de gordo contracheque e gratificações ( que contemplam a “moradia” e o “paletó”, sem falar nas viagens nos jatos da FAB ),  refletirem sobre as consequências  de posições radicais na Suprema Corte, a exemplo da convicção de que a reforma agrária deve ser implantada com o confisco de propriedades privadas sem indenização; muito menos a preocupação quanto às escolhas de nomes reconhecidos como subservientes e vassalos do Poder Executivo, para não falar no currículo paupérrimo ou inexistente, “enriquecido” pela advocacia exercida para o partido do governo. Cumpre esclarecer que não é o caso do indicado atual, reconhecido no mundo do Direito como portador de “notável saber jurídico” e até prova em contrário “reputação ilibada”.

Todos sabem que existem precedentes do comportamento indiferente e irresponsável do Senado e as “sabatinas” nunca provocaram manchetes. Nossa sorte é que o peso da toga e a qualificação moral e jurídica de alguns candidatos conseguem apagar qualquer vestígio de influência deletéria no exercício do cargo; um exemplo edificante é o Ministro e ex-presidente do STF e  TSE Marco Aurélio de Melo, primo de um  presidente “impichado”e magistrado acima de qualquer suspeita. Saliente-se que a sorte nem sempre vive à solta e as exceções nunca se transformam em regras.

A verdade é que até o cidadão médio, o homem do povo deste nosso Brasil, não entendeu a atitude do jurista consagrado, de porta em porta, nos gabinetes dos senadores, mendigando votos. Como se não bastasse, consta que desceu ao ponto de “ensaiar” as respostas orientado por assessores do palácio do planalto.  Verdade ou mentira, são notícias divulgadas pela imprensa ainda livre (graças a Deus !) e pelas redes sociais.

Feliz ou infelizmente, o ensaio deu certo. Apesar de não fazer parte do ritual do desfile na avenida Marquês de Sapucaí, a “escola de samba” que comandou o espetáculo conseguiu o primeiro lugar na classificação da comissão julgadora. Não esqueçam que em nosso Brasil lindo e tropical, colorido e alegre, tudo conduz ao Carnaval.

Respeitosos cumprimentos ao novo Ministro. Ingressando no colegiado que assegura o cumprimento da nossa Lei Magna, vai conhecer o lado doce/amargo do Judiciário, o Superpoder, representado pelo Supremo Tribunal Federal, guardião da liberdade e dos demais direitos dos cidadãos brasileiros. Ele bem sabe, como jurista de escol, que vai encontrar de tudo um pouco: exemplos de serenidade, equilíbrio, destemor,  sabedoria e retidão ao lado de exemplos deploráveis de descontrole emocional, destempero, intolerância e até mesmo ignorância da liturgia do cargo. Acredito que o Ministro Luiz Edson Fachin, que usou o pensamento de José Ortega y Gasset  para convencer que vive agora “a sua circunstância”,  no exercício do cargo, não perderá de vista o instituto da suspeição para preservar a conduta ilibada que todos reconhecem. Será a prova de que suas respostas na sabatina não serviram apenas para salvar a pele, solução que aparece na conhecida e repetida frase do filósofo espanhol, nem sempre lembrada em sua inteireza e idioma original: “Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo”.

Ainda usando o pensamento de José Ortega y Gasset, lembraria que também é dele a frase ditada pela sabedoria do pensador: “Podemos pretender ser quanto queiramos, mas não é lícito fingir que somos o que não somos”.

A palmatória, instrumento presente nas escolas do passado nas sabatinas, pode surgir no desgaste pessoal e decepção causada aos jurisdicionados do novo Ministro. E um jurista que tem um nome a zelar não vai correr o risco.

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PASSEIO DE BONDE- Cyro de Mattos 

Crônica de  Cyro de Mattos 

O bonde não era apenas um meio de transporte para ele, mostrava-se como uma diversão, curtição que fascinava no passeio. O uniforme cáqui do motorneiro, que usava chapéu e  gravata borboleta,  o barulho do condutor ao recolher o dinheiro das passagens, batendo as moedas umas contra as outras na mão, a figura marcante do vendedor de balas e bombons, com sua cesta de vime, a sensação deliciosa de viajar pendurado no estribo. Havia o desafio de subir e descer do bonde ainda em movimento. Num domingo azul de verão,  chamou-lhe a atenção, entre os passageiros,  dois homens bigodudos no bonde, de fraque, gravata borboleta  e chapéu da última moda.

No passeio de bonde, tinha a sensação de que a cidade andava nos trilhos, avistando-se o mar por algum recorte ao largo. Sentado no banco de madeira, na medida em que bonde rolava pelos trilhos  o olhar curioso dirigia-se para casarões, sobrados, igrejas e jardins. Na orla, o mar espumejava com as suas jubas brancas perto da praia,  vidrilhando nos dias de verão. O mar era como uma piscina enorme na Praia do Porto da Barra. 

O melhor lugar para contemplar o cenário da Baía de Todos os Santos, que a natureza ofertava de graça no cenário azulado,  era de uma das balaustradas laterais ligadas à plataforma do Elevador Lacerda,  dando  acesso à Praça Tomé de Sousa, também conhecida como Municipal.     

Sentava na cadeira de uma das mesas postas no passeio, como extensão da lanchonete A Cubana, na saída do elevador. Depois de tomar o copo de vitamina de abacate acompanhado dos deliciosos Bolinhos da Cubana,  da balaustrada avistava  o Forte de São Marcelo lá embaixo na baía, encravado nas águas mansas do mar. Lanchas na Marina, embaladas como berços pelo vento,  barcos ancorados na tarde preguiçosa do mar, o porto no vaivém do embarque e desembarque de gente, o cais  com seus guindastes gigantescos,  navios de carga como casas de ferro,  vindos de mares longínquos. 

Não se cansava de olhar  a paisagem bonita, na península de Itapagipe, longe, a colina sagrada do Bonfim no alto,  onde ficava a igreja do padroeiro da cidade. A igreja ia ficando a cada ano pequena para  o grande número de fiéis vindos dos lugares mais distantes.  Fascinados os olhos,  querendo pegar a paisagem com o seu forte brilho,  contornos e  desenhos, iluminada em cima com   um céu azul, embaixo com um  mar azul, só existentes na Bahia.  Insinuada nas linhas do horizonte, lá para os longes das ilhas de Itaparica e Mar Grande.   

Os olhos lavados  com a paisagem esplêndida, tomava a direção do bairro dos Aflitos, pendurado no estribo do bonde.

• Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro titular das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Doutor Honoris Causa da UESC. 

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