ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A OBRA DE ELVIRA FOEPPEL – Margarida Fahel

Palestra apresentada na mesa 2, do FLISBA  2021, dia 25.09, sob o tema A mulher na literatura

Reflexões em Elvira Foeppel e Carolina de Jesus.

O exposto pela confreira Raquel Rocha proporcionou-nos uma boa fotografia de um retrato da autora. Não se trata aqui de um pleonasmo. Defino, nesta fala, fotografia e retrato com diferentes sentidos. Entendo, deste modo, o retrato como algo pronto, definido, e fotografia com algo que se pode ver de diferentes maneiras, em conformidade à forma de enxergar, de entender, de questionar, de iluminar para mais ou para menos. Teríamos, na fala da expositora, a biografia da poeta e ficcionista ilheense, Elvira Foeppel. Diante dessa biografia, perguntamos: – O que é exposto na história é revelado na escrita? Parece-nos ser esta a necessária busca do leitor e, mais exigentemente, do leitor crítico ou do estudioso da obra.

A biografia nos fala de uma mulher à frente de seu tempo e do seu lugar. Uma mulher que, muito jovem ainda, se lança sozinha para a então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, centro do poder político, dos avanços de comportamento, de novos costumes, e das novas tendências filosóficas e literárias recebidas especialmente da Europa. Tendências que já repercutiam nos meios literários brasileiros. No Rio de Janeiro, lá estavam aglomerados nos círculos de discussão, ou nas mesas boêmias, muitos já grandes, bem como uns poucos iniciantes escritores. Bonita, de aparência vaidosa, bem cuidada, rosto bem maquiado, sorriso permanente no rosto, a eles juntou-se Elvira, a moça de Ilhéus. De logo com emprego fixo, emprego que nada lembraria o buscado mundo de escritora, que transpareceria de início, como introspectivo e controverso em seu aparente mundo interior. Tratava-se de um emprego na Revista Súmula Trabalhista, da Legislação Federal, dirigida por Nelson Fonseca. Diríamos lembrar, tal publicação, os nossos conhecidos Diários Oficiais.

Quando partira para a capital do país, Elvira já havia publicado um bom número de poemas e contos em jornais de Ilhéus. Prenunciavam eles uma escrita inovadora em sua forma, com estranha pontuação, alguns neologismos, mas controversa em sentimentos: saudades da infância e grande amor por aquela cidade que tomou como sua. Talvez mesmo já se pudesse entrever em suas publicações a temática de natureza existencialista, mal-estar no mundo, náusea, incompreensão alheia, deslocamento social, e busca de novos rumos. Já se enxergava em seus textos a necessidade de ajustar-se, mas a incapacidade para tal. Estava ali presente, ainda, certa sexualidade contida, velada.

Descobrimos, em sequência de leituras, e somando-se à biografia traçada, que a poeta era uma personalidade intrigante. Talvez para ela própria, assim como para nós, leitores. Embora deslocada e incompreendida em seu meio social, a cidade que tanto amava, a sua Ilhéus, ela se portava como uma jovem que amava as atividades festivas, dedicava-se a   fazer teatro, gostava de beber, de dançar, de namorar e de ir ao cinema. O retrato, portanto, vai ganhando novos traços. Neste momento, com vistas a nosso objetivo nesta mesa, vamos nos deter na Elvira carioca, aquela que começa a publicar fervorosamente nas revistas e jornais conhecidos da época, na capital do país. Para isso, selecionamos alguns contos, a fim de indagar quem seria ou como se apresentaria a escritora por dentro de suas personagens, e que espaços tais personagens trilhariam. Elvira Foeppel escrevia contos sem o esperado e tradicional enredo ficcional. Cada um dos contos vive um momento de uma mulher- personagem e quase sempre narradora. Dentre os selecionados para esta curta apresentação, apenas um conto tem um homem detendo o foco narrativo. Mesmo assim, ao final, ele parece, claramente, dar voz a uma mulher, que poderia  lembrar-nos a própria escritora. Aquela da fotografia.

Estamos assim a dizer que Elvira Foeppel se autobiografava? Pergunta que preferimos, e precisamos deixar em aberto, mesmo ao final desta fala. Há muito a estudar sobre sua obra poética, sobre muitos outros contos e sobre seu único romance, intitulado “Muro frio”. Ademais, além da própria complexidade do texto literário, mais complexo ainda é o ser humano e o imaginário que o comanda.

Mas, levantaríamos, ainda, uma outra interrogação. Haveria, conforme já apontado no início desta fala, na obra de Elvira, a influência do existencialismo sartreano, a presença da náusea, do sem sentido? Do “mal do século” daqueles anos cinquenta, mal saídos da terrível Segunda Guerra Mundial? E perguntaríamos ainda um pouco mais. Haveria nela, na enigmática escritora, por outra visão, uma feminista nascida? Livre, operosa, sem medo? Decidida a ser solteira, optara ela por uma buscada e segura felicidade de ser só? Ou haveria naquela mulher, ou na mulher-personagem, um grande medo da adaptação, um profundo medo de dividir-se?

Dessa forma, tomaremos para estas possíveis indagações, e buscando prováveis ou improváveis respostas, passagens de alguns contos do livro Da Sombra à Luz: seleção de contos de Elvira Foeppel. Organização Vanilda Manzzoni, Alicia Lose. _Ilhéus, Ba: Editus, 2004.

Para tal, na tentativa de englobar algumas características, sequenciamos alguns títulos.

Volta para casa às seis. Publicado na Revista Carioca, 1950.

Aspectos temáticos – O tédio. Personagem: uma mulher numa fila de ônibus. A incapacidade de sair de si mesma. As conversas em torno são frívolas. Nada a interessa ali. A fim de isolar-se, ela se fixa nas nuvens e em tudo que pode criar a partir do que enxerga naquele vai e vem incessante.

 Os minutos deslizavam sonolentos. Quinze já passados inativos. Fim de tarde no seu limite extremo, a noite chegando, invadindo de negrume todo o espaço. Olhei para cima, para as nuvens ainda claras que se moviam destacadas no fundo escuro, e procurei distrair-me imaginando figuras diversas que se formavam e se desmanchavam naqueles segundos (p. 41).

– Breves momentos. Publicado na Revista Carioca, 1950.

Aspectos temáticos – A rotina, a impaciência, a revolta. Mulher indo para o trabalho, no interior de um ônibus cheio. Pensamentos duros, desconexos, solitários. A mulher reflete que todos ali vivem a mesma difícil realidade, no entanto conversam, brincam e riem. Por que ela não consegue ser como eles?

  E sabiam sorrir. Deus, com displicência, sabiam conversar alto e dizer chistes e anedotas a qualquer instante e brincavam despreocupadas com as dificuldades dos dias e das noites. E então, porque Luciana não podia ser assim, fazer como elas e afastar, jogar para trás, para o passado, aquela revolta seca e muda, consumindo, gastando impulsos, trazendo inércia e germinando ódio e amargura no coração pequeno (p.73)?

– Uma menina loura. Revista Carioca, 1950.

Aspectos temáticos – Uma lembrança feliz. A personagem desperta feliz, o que é lhe incomum, e relembra o dia em que salvou uma menina de ser atropelada. Sente a utilidade de sua vida naquele momento. E surpreende-se pela alegria que a invadira ao ver que não fora esquecida pela criança, quando ela lhe trouxe flores.

 O mar continuava monstruosamente belo e importante. O céu ainda coberto de nuvens distantes, brancas, muito brancas, e quase correndo num passinho miúdo uma criança loura, de olhos azuis, muito azuis, com um buquê de flores nas mãos meigas. Ela não me esquecera. Como sorria e gritava o meu nome que na sua boca tinha uma beleza rica e era música, unicamente música (p.45).

– O pretinho João. Revista Carioca, 1950.

Aspectos temáticos – A lembrança saudosa, mas feliz e grata, de um menino pretinho, que passava todos os dias embaixo da janela da mulher sozinha. Conversam, tornam-se amigos, ele fala da dureza de sua vida, do “cemitério de rua”, mas lhe diz que é melhor ser bom e tratar a todos com alegria. O menino desaparece um dia e fica na mulher a saudade e a lição de vida que lhe deixara aquele menino de cabeça raspada, que sempre passava com sua enorme trouxa de roupa.

  Decididamente eu não podia esquecer o menino preto, como pedaço de carvão que todos os dias passava por mim com um sorriso grande na boca estreita, mastigando umas mesmas frases de palavras usadas e velhas como os molambos de panos que os vestia (p.63).

 Estranhava os seus pés descalços, e as suas calças rotas mostrando pedaços de um negro forte das pernas compridas e secas como caniços… Sempre aquela mesma roupa remendada em algumas partes e verdadeiros fiapos mostrando buracos em outros lugares (p.64).

–  Rotina. Revista O Cruzeiro, 1950.

Aspectos temáticos – Preparação de uma mulher para sair com seu marido.  Marido bom, nada lhe falta, nem beijos. Ela se sente má. Por que tão infeliz? Quantas mulheres queriam aquilo: sua vida. “Fácil, enterrada no luxo e tantas horas livres.” Ele nunca saberia de sua tristeza, de sua inadequação. Jamais ele compreenderia isto, ela pensa, enquanto apenas ajeitava a gravata do marido.

  Jamais teria queixas dela. Jamais pensaria que ela tinha olhos tristes, e boca silenciosa demais, para sua juventude. Sim, jamais ele compreenderia isto, percebeu olhando naquele momento, tão longe dele (p.72).

Assim estragada e incompreendida de se parecer apenas restando em felicidade através de seu segredo, guardado por vaidade e orgulho, de que valia viver, mentir-se em aparências, sempre? Cuidadosa como era sabia que jamais ele descobriria seu mistério, sua inadequação e quedaria sempre ignorado dela e da revolução que enchia suas idéias alimentando aqueles grandes desejos, perigosos desejos de ser livre descalça, sobre campos descampados a colher flores sob o sol ou sob a chuva (p.71).

– Indecisão. Revista Carioca, em 1950.

Aspectos temáticos – De repente, uma manhã de alegria. De repente, uma grande alegria! E seus planos de vida, de toda uma vida? Roberto a espera na praia. Ele deterá seus planos? A mãe a chama para o café. Ela descobre a alegria da mãe, por não ter escolhido a solidão como meta para a felicidade. É o que ela lhe diz ali, naquele instante mesmo. A dúvida. Roberto? E seus planos? Seus planos tão configurados para uma vida inteira? Fará como a mãe, como sua avó? Sua mãe e sua avó tinham razão? Os pensamentos eliminados.

Precisava decidir-se. Roberto ou sua solidão de sempre, de agora. Se não fosse medo dos anos vindouros, poderia quase afirmar que ia ser feliz., muito feliz com Roberto. Ele era bom, alegre, e tratavaa com uma ternura jovem, como se lidasse com uma criança a quem se diz tudo sobre as coisas. Regina se sentia bem, aprendendo em cada instante uma coisa nova. E aquela dependência que surgia, aquela entrega de problemas e aquele descuido, podendo viver encostada, confiando, sem cansar-se, era bom, era novo para ela (p.55).

Muitos outros contos desta obra ora citada estão também a exigir estudos e indagações. Assim como muitos, muitos outros, guardados em páginas fechadas. Assim está a bela e por vezes enigmática obra de Elvira Foeppel. Há que abrir suas páginas, folha a folha, linha a linha. Há que resgatá-la. Como dever de salvar beleza!

Margarida Fahel

Em 25 de setembro de 2021.

Observação – As reflexões sobre Elvira Foeppel se fizeram em dois momentos seguidos: Raquel Rocha, com aspectos biográficos e Margarida Fahel, observando aspectos literários, a partir dos contos selecionados.

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Link para assistir ao lançamento do livro Canto até hoje, de Cyro de Mattos.

No dia 8 de abril deste ano de 2021 foi realizado o lançamento do livro Canto até hoje, de Cyro de Mattos,  de forma virtual, através de uma live da Fundação Casa de Jorger Amado. O selo Casa de Palavras, da Fundação, foi o responsável pela edição impressa da obra e edição online ficou a cargo da E-Book.Br.

Para assistir a live clique no endereço abaixo.

https://youtu.be/xtKJKFjIXMo

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DISCURSO DO HERÓI DE PALMARES- Cyro de Mattos

Ao receber a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador, em sessão solene, online, às 20 horas, no dia 3 de novembro de 2020.

Boa noite a todos.

           Ilustre jurista, vereador e confrade Edvaldo Brito.

Primeiro quero agradecer esse momento a Deus, depois à  minha esposa Mariza, que tem sido minha base durante 52 anos de casados, aos meus três filhos André Luís, Josefina e Adriano, que tanto me  motivam para que eu seja um cidadão digno, e aos meus seis netos, Rafael, Pedro Henrique, Gabriel, Luís Fernando, Marizinha e Murilo, que me dão alegria e certeza de que quando eu estiver em outra dimensão continuarei ainda aqui, neste velho mundo, em cada um deles.

Faço um agradecimento especial ao professor emérito e jurista consagrado, vereador Edvaldo Brito, o autor do projeto para que esta Casa me concedesse a distinção. Muito me honra ter sido colega daquele estudante pobre na turma de 62 da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Aquele rapaz de corpo comprido, que foi o orador da turma. Esse homem de cor, cidadão digno, um símbolo vitorioso da negritude na Bahia e no Brasil. Essa criatura rara, de cultura adquirida com esforço nos livros, brilho de sua inteligência, crença na força dos antepassados, e que se sabe herdeiro da fraternidade e compromissado com a verdade, portador do axé, que, como se diz no candomblé, é “a luz do dia”. É por sua iniciativa generosa que estou aqui sendo homenageado, apesar de surpreso até agora ao receber essa láurea, e comovido.

Certa vez minha tetravó materna contou à minha trisavó que contou à minha bisavó que contou à minha avó que uma gente que vivia nas suas aldeias foi retirada da África como bicho, pior do que bicho, para a escravidão no Brasil Colonial.  Filho foi retirado da mãe, marido da mulher, irmão do irmão, acorrentados foram trazidos com os rostos tristes, até que se viram jogados para o embarque como um fardo deplorável no porão fétido do navio negreiro.  Longe, tão longe, foi ficando atrás na savana a lágrima de Deus.  No rumo desconhecido, seguia aquela gente na carga desgraçada, feita com vozes sofridas na cena lastimada. Uma pobre gente solitária vagando pela imensidão das ondas salgadas. Viajava marcada sem perdão, o corpo amassado, a fome e a sede nas horas de aflição, menos para o traficante branco, que conduzia o navio por entre as águas de cobiça e perversidade.

No poema “Navio Negreiro”, de meu livro Poemas de Terreiro e Orixás, dou minha versão dessa sinistra embarcação com sua carga sofrida numa rota dos infernos.  Eis o poema:

Navio Negreiro

não adiantava

gemer

não adiantava

mugir

não adiantava

 viver

muito melhor

morrer

funda a ferida

amargo o ferrão

ardido o sal

aguda a solidão

negro negro negro

o mugido anuncia

a sede e a fome

 de boi em agonia

todo esse mar

é a desgraça

não branca

que até hoje

das entranhas

rola nas ondas

o seu mal-estar

o despejo na praia

diz de um tesouro

alimentado do pai

alimentado da mãe

do filho e do irmão

como ofensas no amor

do suor fabricado

para a saborosa canção

do constante senhor

 Na rota da desgraça foi submetida essa gente ao trabalho servil do Brasil colonial. Alguns negros inconformados fugiam da senzala em busca da liberdade na mata fechada. Não conseguiam reter o suor e a amargura que derramavam todos os dias para irrigar o canavial do senhor de engenho.  A fome do Brasil açucareiro era insaciável, nunca se satisfazia com o trabalho de graça dado pelo braço escravo. O feitor com os cachorros logo ia atrás do negro fujão, que terminava castigado com a sua afronta no pelourinho. Treze, trinta, cinquenta chibatadas. Muitos não suportavam o castigo, morriam esfacelados.  Tristes, os outros olhavam, não podiam fazer nada. Calados, lambiam o vento, que soprava no peito a sina feita de atrocidades, assim guardadas como ruínas dos dias nos gemidos mudos.

Quem de novo fugisse e fosse apanhado, o remédio agora era cortar um pé, para que o exemplo fosse melhor disseminado.  Minha avó contava que em outros casos de insubmissão a língua era cortada daquele negro falador, inflamando os outros para fazer a revolta. Contou mais que minha tetravó tinha o seio farto, foi lambido, bebido como gostosura o seu leite puro para o anjinho do senhor não sucumbir.  Senhores bigodudos, sisudos doutores provaram do leite morno e doce, saindo ilesos das sombras da morte.  A paga daquele ofício era na roupa lavada, engomada, no fogão aceso e abanado, no asseio de inúmeros cômodos, no carrego de feixes de cana, em tudo que tinha o gosto amargo para que a vida continuasse no seu ritmo invariável de dor e solidão.

O mel da cabaça da negrinha era para servir a seu dono, que deixava o fel nas entranhas. Matava a sede do que batia os dentes, montava nela com todas as forças que pudesse reunir e perfurava, sem remorso, umas carnes tenras. Arrancava os tampos com sua flor guardada entre as pernas, olhe lá, não tens que gritar, é pra ficar abafada nos lamentos, entorpecida pelo som e a fúria dos meus punhos, o querer é só meu, ninguém se atreva a interromper.  Passava o inverno, passava o verão, o tempo e as dores essa gente desgraçada ia moendo, remoendo. Como devia ser, os céus ordenavam. As horas se resumiam na fome e na sede de animal em passividade e agonia. O final todos sabiam, uma coisa, que teve a vida toda em luto perpétuo, era enterrada na cova rasa, mais nada.

E dizer que o Brasil foi carregado nos ombros dessa gente vítima de mazelas, violência e injustiça. De toda sorte de vilanias, preconceitos, desigualdades. Essa gente da qual também procedo, que deu o suor de sol a sol ao jugo do senhor branco e de volta recebeu a canga. O Brasil tem uma dívida com o negro que é impagável. Esquecido dessa dívida, ainda se vê hoje, em pleno século vinte e um, atos pusilânimes que alimentam a mancha que envergonha, essa chaga que subtrai e faz da vida um horror com fendas acumuladas de aversão, feridas que não curam.

Ontem na televisão, diante do rosto da humanidade pasma, a notícia veio com a cena do negro que teve a vida esmagada pelo policial branco.  Tiros foram desfechados nas costas de outro, que, indefeso, tentou fugir da perseguição como fúria canina. É comum a rejeição ao negro, considerado ao longo dos séculos como um ser inferior, de gradações baixas, daí não ser nada de mais ser visto até hoje no semblante inocente dele o ladrão ou o assassino.

Diante de tantas atitudes para alimentar o império do mal, destruir o espírito universal do bem, mais que nunca é preciso resistir, denunciar, lutar para desfazer a mentira e ao invés disso gritar a todos pulmões que a liberdade é o valor maior, a igualdade não é privilégio de ninguém, Deus fez todos nós com a mesma alma, o amor é o sentimento mais forte.

Devo lembrar que o Quilombo dos Palmares era formado por três aldeias. Aí por volta de 1640 viveram cerca de dez mil quilombolas. Eram fortes e contentes, plantavam de tudo e não se serviam da terra como fonte única de riqueza, através do açúcar. Cada família em Palmares ocupava um lote de terra, o que tirava dela era para o seu sustento. Em 1670, já inúmeros povoados cobriam muitos quilômetros de terra na serra do Barriga, em Alagoas.  Palmares havia se transformado em um Estado, situado na borda do litoral do mundo canavieiro. Tornava-se por isso mesmo em grave ameaça ao império do açúcar, com seu sistema fixo calcado no braço escravo, em benefício exclusivo do senhor de engenho.

         Tinha uma população de trinta mil almas quando sob o comando de Zumbi sucumbiu às investidas de Domingos Jorge Velho, chefe de um exército armado de canhões, constituído de nove mil homens. Sucessor do trono de Ganga Zumba, Zumbi mostrara ser um guerreiro implacável antes mesmo de ser derrotado por Domingos Jorge Velho. Há quem diga que ele se pareceu aos heróis de guerra Aníbal, Alexandre, Ciro e Napoleão. Diferente deles porque não combateu para conquistar territórios e glórias, mas para fazer de Palmares uma flecha a ser atirada para o coração da liberdade.

Muitos historiadores esconderam dos compêndios oficiais a grandeza do caráter de Zumbi dos Palmares, mas a verdade prevaleceu. Ele se tornou um verdadeiro herói do Brasil, símbolo da resistência negra perante o ferro do colono usurpador. De maneira que a essa altura só me resta dizer nesse momento de especial reconhecimento o quanto me dignifica receber da Câmara de Vereadores de Salvador, a mais antiga do Brasil, uma honraria com o nome desse herói negro. E assim terminar minha fala com um poema inspirado nessa figura, que por sua coragem e amor à liberdade, lealdade ao seu povo, tornou-se um marco elevado da tão esperada abolição.

Zumbi

Falo Zumbi,

digo Palmares,

ritmo da liberdade.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

batuque da igualdade.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

manual da fraternidade.

Falo Zumbi,

digo Palmares

sem o açúcar insaciável.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

gente em grito indignada.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

no abismo a África salta.

Luzes da Manhã,

força do amor

pelo chão e nos ares.

Espero que minha voz como um grão nos ventos da resistência venha se juntar ao movimento que vem lutando nos anos pela sanidade da razão, expandindo-se para a valorização e conscientização do universo do negro.

A todos, o meu muito obrigado por esse momento gratificante em minha jornada de vida.

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Cinco livros de Cyro de Mattos na  XIX Feira do Livro Editora UFPR

Com os livros Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Os Ventos Gemedores, romance, da Letra Selvagem, Prêmio Nacional Pen Clube do Brasil, Pequenos Corações, contos, Nada Era Melhor, romance da infância, e O Discurso do Rio, poesia, os três últimos da Editus, editora da UESC, o escritor  baiano (de Itabuna)) Cyro de Mattos  participa da  XIX Feira do Livro Editora UFPR e a 40ª. Semana Literária & Feira do Livro SESC,

Entre os dias 28 de setembro e 1º de outubro, ocorre a XIX Feira Do Livro Editora UFPR e a 40ª Semana Literária & Feira Do Livro Sesc que tem como tema “Literatura: porque outro mundo é possível”. Por conta da pandemia, o evento acontece em formato virtual, com acesso gratuito. Nesta edição, participam 48 editoras entre universitárias e comerciais. A 40ª edição da Semana Literária tem transmissão pelo canal do Sesc PR no YouTube. Durante quatro dias, são promovidas palestras e bate-papos com grandes nomes da literatura nacional e autores de best-sellers.

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SARAU ABRE SALA DA ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA NA UFSB

            Por Celina Santos

A magia da palavra falada, cantada, recitada deu o tom na inauguração da sala cedida na reitoria da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) à Alita (Academia de Letras de Itabuna). Na noite primaveril de 23 de setembro, um legítimo sarau marcou a abertura do espaço onde confrades e confreiras realizarão reuniões mensais e outras atividades com foco na valorização da literatura regional.

O evento também selou o primeiro encontro presencial entre os acadêmicos empossados neste ano em que a entidade completa a primeira década de história. Com direito a bolo e parabéns, eles receberam as boas-vindas de fundadores e demais nomes que ocupam cadeiras na instituição.

A solenidade, cujo mestre de cerimônias foi o ator, professor e acadêmico Jorge Batista, reverenciou obras dos escritores Cyro de Mattos, Ruy Póvoas, Ceres Marylise e Lurdes Bertol. “Esta é uma academia que produz; nossa imortalidade primeiro se dá através dos trabalhos que fazemos no dia a dia. A chegada de sangue novo nos anima!”, grifou Jorge.

Do desafio à realização

Um dos fundadores e primeiro presidente, o juiz Marcos Bandeira (hoje aposentado da magistratura) elaborou: “A Academia era um sonho acalentado há muito tempo. Itabuna, com uma plêiade de poetas, escritores, pessoas de letras, da ciência não tinha academia. Graças à união de pessoas como Cyro de Mattos, Ruy Póvoas e muitos outros, nós conseguimos. Ser o primeiro presidente foi desafiador e hoje fico feliz em ver uma sala na UFSB para simbolizar a nossa sede. A Alita nasceu com a vocação da eternidade; ela é grandiosa, pela força e qualidade dos seus acadêmicos”, vibrou.

A atual presidente da Academia de Letras, professora Silmara Oliveira, anotou: “Percebemos a conscientização das pessoas, das instituições, do indivíduo humano do que seja a literatura, a arte, a vida. É um momento de alegria, de agradecimento à Universidade Federal do Sul da Bahia, à reitora Joana Angélica Guimarães da Luz, que decidiu perguntar aos seus pares se poderia nos ceder esta sala”.

Ela acrescentou, com veemência: “Os alitanos todos estão jubilosos, porque estamos amparados; temos um ponto de partida e estamos felizes com esta logística e, principalmente, estamos aqui para construir conjuntamente com as universidades”.

Na mesma linha, a professora Lurdes Bertol reforçou a importância daquela inauguração: “Estou me sentindo muito feliz, porque agora nós temos um espaço físico para nos encontrarmos, fazermos nossas reuniões, temos um lugar pra ficar, para nossos livros, nosso material, organizar as atividades que queremos desenvolver na cidade”, exultou.

Encanto de debutante

Anfitriã naquela noite, a reitora Joana frisou a importância da cultura e da literatura para todos os municípios. “A universidade não pode ficar alheia a isso. Não podemos desconsiderar a necessidade do espaço para essa academia. Nos sentimos felizes, será uma parceria muito boa”, declarou.

Já o reitor da Uesc (Universidade Estadual de Santa Cruz), Alessandro Fernandes de Santana, lembrou o quão simbólica é a chegada da Alita àquele espaço da UFSB, na Praça José Bastos, onde já existe uma faculdade e onde futuramente será aberto um núcleo da Uesc. “Na casa da educação encontramos espaço para a poesia, para a literatura. Agradecemos à reitora, esse ato de generosidade é importante e a região é quem ganha”, completou.

Ele lembrou o centenário do saudoso escritor Paulo Freire (encenado ali pelo ator Pedro Lisboa) e a repentina partida do professor Adeum Sauer, homenageado como um nome com sólido trabalho pela educação de Itabuna e da Bahia. “Nós vivemos em um país onde algumas pessoas se julgam supercidadãs e subjugam outras como subcidadãs. Sonho com um dia em que cada um de nós possa se olhar no espelho e, simplesmente, se reconhecer como cidadão e cidadã”, assinalou.

Com 30 anos de atuação na disciplina Literatura da Região do Cacau e também empossada neste ano na Academia de Letras de Itabuna, a professora Reheniglei Rehem disse sentir-se como uma debutante.

“Meu sentimento é de observação e encantamento. Pessoas que eu tinha como referência hoje estão ao meu lado numa confraria. Chegar como debutante num lugar onde eu já estava como veterana é essa ambiguidade. Honra maior ainda porque fui indicada pelo decano primaz, o poeta, escritor, advogado, entusiasta Cyro de Mattos”, afirmou, animada.

 

Empenho pelo crescimento

                Por sua vez, a delegada Sione Porto, outra presença desde a fundação da Alita, pontuou: “Nestes dez longos anos, temos nos empenhado para que a Alita sempre cresça, como trouxe agora a professora Reheniglei, nossa reitora Joana Angélica, que nos cedeu esse espaço magnífico, meu irmão Sílvio Porto, o professor Alessandro, dentre outros”.

O médico João Otávio Macedo, chegado no primeiro aniversário da entidade, igualmente manifestou seu contentamento por ver a dimensão alcançada a cada dia. “Hoje é um marco para nossa entidade”. Ele, inclusive, indicou para aquela confraria o professor e escritor Wilson Caitano, encantado ao mencionar a “paixão por escrever livros infantis”.

Nos olhares e conversas, enfim, ficou patente o sentimento de alegria por ver o desenho de novos passos a referendar o caminho já percorrido nos primeiros dez anos de caminhada. Por que não acrescentar um legítimo mantra? Salve a literatura, viva e imortal!

                A inauguração contou, ainda, com a presença do presidente da AGRAL (Academia Grapiúna de Letras), Samuel Leandro de Mattos, e o Coordenador de Comunicação de Itabuna, Afonso Dantas. Ali, ele também representou a mãe, a alitana Ritinha Dantas.

Fotos: Bruno Gonzaga e Felipe Carregosa

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ILHÉUS NAS CRIAÇÕES DE ADONIAS FILHO- Cyro de Mattos

                    Na coletânea Histórias dispersas de Adonias Filho, que organizamos, Ilhéus aparece como o espaço ideal para a criação de dois contos desse ficcionista maior de nossas letras. A figura lendária de Dom Eduardo ressurge em O Nosso Bispo, através de imagens trazidas da memória, que em cada episódio exibe a criatura mais humilde e generosa, o único a que os presos amavam, os assassinos e os ladrões eram os irmãos preferidos. O autor ressalta a figura daquele abnegado frei, que percorria as roças de cacau, a pé ou montado pelas estradas de brejo. É para ele que Ilhéus pulsa a alma de sua gente com devoção e fé, reza e tem seu retrato nas casas, as criaturas apanham as flores no jardim porque acreditam que esse homem generoso como um santo, sereno como o mais humilde entre os seres humanos, possui os poderes do céu.

        Em A Lição, o narrador de segurança técnica enfoca o menino na aventura da vida, livre como o vento, ágil como o peixe, alegre como o pássaro. Ao ser levado pelo tio para estudar no internato em Ilhéus, o menino vai saber de repente como a vida é triste quando trancada lá dentro, na alma, com pedaços da infância. O choque causado em razão da mudança da vida livre para a prisão do internato fere e torna o menino, naquele instante, o pior dos rebeldes. Com uma voz mansa, o diretor diz para ele só permanecer na escola por sua livre e espontânea vontade. Ele pergunta se pode tomar um banho. Com a aquiescência do diretor, dirige-se para o banheiro do colégio. Era assim a primeira lição

     O mar de Adonias Filho, autor de ritmo poético, estilo sincopado na prosa cantante, mostra em Luanda Beira Bahia como exerce seu poder trágico para seduzir os homens, que não conseguem fugir ao destino de seu aceno movediço. Pelas vastidões das águas tudo trocam, pois são incapazes de permanecer na rotina do chão seguro. O mar no romance Luanda Beira Bahia está cheio de desafios e sortilégios.

Os homens de Ilhéus, ali do Pontal e do Malhado, tinham apenas dois caminhos – dois caminhos e nada mais que aprendia. Entravam matas adentro para o ventre da selva ou saíam mar afora para os portos do mundo. Preferiam o mar, os brancos e os negros, os de sangue português e africano, enquanto os caboclos de sangue índio escolhiam os sertões. O mar, assim começavam a andar, era o primeiro brinquedo. (p. 13)

                A personagem Lina do Malhado via o que estava muito além do próprio mar. As mulheres queriam os homens e eles, como os filhos, saíam para o mundo. Primeiro fora o marido Pedro, depois o filho, também Pedro. Como se elas, as mulheres, “estivessem a parir homens para o mar.” (p. 13)

                Luanda Beira Bahia apresenta também a personagem Maria da Hora, professora de Caúla, ainda moleque em Ilhéus, é quem traz as primeiras impressões a respeito do continente africano. Em certas horas, a mão negra se abria sobre o mapa e, mostrando os continentes, parava na África. “Homens de Ilhéus estão nesses mares”, observava.

             No romance com sabor de obra-prima, os dois irmãos Caúla e Iuta apaixonam-se e se unem sem que conheçam o parentesco entre eles. Os dois são filhos de João Joanes, o Sardento, “que tinha o doido sangue dos marinheiros, herdado do pai, avô e bisavô”. Durante o tempo que viveu em Angola, João Joanes assumiu a identidade de Vicar. Num desfecho funesto, os três descobrem em Ilhéus, no sul da Bahia, ao mesmo tempo, os laços sanguíneos que os uniam e, diante de situação terrível, o pai põe fim à vida dos filhos e à própria vida como forma de reparar a tragédia que havia promovido.

              O desfecho trágico do amor entre irmãos tem como testemunha a jindiba, árvore que era para o menino Caúla como o centro do mundo. O mar e as colinas tinham nela o ponto de referência. A jindiba de Adonias Filho tem função importante no alcance do verdadeiro efeito dramático carregado de simbolismo. Será derrubada e transformada em canoa, servindo como caixão para guardar os três corpos. Mulheres surgiram, não muitas, flores dos quintais nas mãos. Debruçaram-se sobre o caixão de jindiba e, dentro, viram o Sardento sozinho, em frente. Abaixo, lado a lado, Caúla e Iuta. Colocaram as flores, benzeram-se, fizeram o silêncio.

E, logo os homens ergueram o caixão e andaram na direção do cemitério, a chuva caiu como se viesse para lavar o mundo. Pé de Vento atrás, a seguir sem pressa, a pensar que deviam pôr um velame. Um velame de saveiro pequeno na canoa que era o caixão, largá-lo em mar alto, João Joanes e Caúla gostariam daquela viagem como bons marinheiros.  O negro pensando, a andar. E, com o velame aberto, fariam a volta que fizeram por Luanda, Beira, Bahia. (p. 139)

       Em Luanda Beira Bahia, romance imantado sobre a dimensão de horror da tragédia, Adonias Filho mostra como consegue construir uma obra literária com valores míticos a impor soluções exasperadas, movidas pelas forças da vida e da morte. Entre a paisagem do mar, que exerce uma atração fascinante às gentes dos Ilhéus, e os mares interiores, fundos, profundos, no vaivém de águas aflitas, impregnadas do amor.

         Os bonecos de seu Pope é um dos livros que Adonias Filho escreveu para o público infantil. Narrado com graça e mistério, conta a história de um velhinho, de poucos dentes, cabelos brancos, rosto vermelho de tomate maduro. Um tipo sábio, que um dia aparece na cidade de Ilhéus com seus bonecos de madeira, bem-falantes, sem que alguém soubesse de onde ele veio com seus filhos, que por serem diferentes atrai a curiosidade das pessoas.  Os bonecos Quincas, Gaspar e Chico são como se fossem de osso e carne, sofrem e amam como qualquer criatura. Quincas pilheriava, Gaspar era o contador de histórias, o que mais agradava, e Chico o que dizia coisas sérias. Vestido como se fosse um artista de circo, conversando com os seus   bonecos de roupas coloridas, o velhote fazia um espetáculo à parte, que atraía gente grande e adulta à praça, aos domingos.

        Ilhéus serve de cenário luminoso e aconchegante para a exibição desses bonecos, que falam através de Seu Pope, velhinho que tem dez vozes na garganta. O mistério de como os bonecos foram criados por seu dono é guardado por Formiguinha, uma mulher que nascera do encontro entre o arco-íris e uma égua selvagem. Como isso foi possível, ninguém fica sabendo, pois Seu Pope some de Ilhéus no último espetáculo que daria na praça, lotada por gente ansiosa para saber a revelação de tal mistério.

            Auto dos Ilhéus é um primor de texto no gênero. Está dividido em dez quadros. A Povoação, Os Colonos, Os Jesuítas, Os Sertanistas, A Santa Nossa Senhora, Os Desbravadores, Os Imigrantes, Os Sírios, Os Coronéis e Dom Eduardo. Os quadros cobrem o período de 1535 até o primeiro quartel do século XX, no qual sobressai a figura de Dom Eduardo, o padre dos pobres, pai dos desvalidos, dos necessitados de Ilhéus. Texto escrito com o som da história e as cores do coração recria a epopeia da fundação e desenvolvimento de Ilhéus, ofertando aos pósteros a memória da cidade plantada numa baixa de extensa varjaria, à borda da costa.

A novela Simoa alude à fase da ocupação da terra na infância da região cacaueira. Simoa veio das águas, foi encontrada na praia dos mares de Ilhéus. Suas atitudes na selva mostram-se ligadas ao plano divino. Torna-se respeitável, será guia no êxodo do povo negro, que recebe no final a nova terra, com a água doce nascendo e enchendo os canais. E todos viram quando ela e seu louro Naro sumiram no fundo da fronteira, em caminho do mar. Os mares de Ilhéus exercem aqui uma função mítica e contribuem para que a solidariedade seja exercida.

É prazeroso ver como Adonias Filhos demonstra que basta ao escritor tomar como motivação de sua obra o lugar onde nasceu e cresceu, mesmo que seja um ponto desconhecido do mapa, para ser reconhecido no mundo.

Referências

MATTOS, Cyro de. (organizador). Histórias dispersas de Adonias Filho, Editus, Ilhéus, 2011.

  FILHO, Adonias. Luanda, Beira, Bahia, Editora Civilização Brasileira,  Rio,17971.

———————– Os bonecos de Seu Pope, Edições de Ouro, Rio, 1989.

———————– Auto dos Ilhéus, Civilização Brasileira, Rio, 1981.

———————–“Simoa”, em Léguas da Promissão, Civilização Brasileira,  Rio, 1968.

 

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ROMANCE DO NEGRO EM TORTO ARADO- Cyro de Mattos

           Romance do baiano Itamar Vieira Junior, Torto arado (2019) conquistou o prêmio Internacional Leya, um dos mais prestigiados em língua portuguesa, que tornou o autor em um fenômeno da literatura contemporânea. Graças à láurea merecida foi conduzido para além das fronteiras nacionais. O prêmio conquistado deu fama ao autor que há pouco tempo só tinha publicado dois livros de contos: Os dias e Oração do carrasco. O romance rendeu ainda a Itamar Vieira Junior os cobiçados prêmios Jabuti e Oceanos de Literatura, o que expandiu ainda mais o seu nome de romancista e impôs a tradução da sua obra em outros idiomas.

        Romance de narrativa segura, que encanta, dotado de uma uniformidade em sua construção estética que satisfaz, apresenta-se com dois planos no enfrentamento do tema, um de natureza histórica conectado à solidariedade da realidade social e o outro nas relações com o mágico, adotado por alguns de seus personagens, em convívio atemporal com os espíritos conhecidos como encantados. Intenso na carga dramática prende na medida em que vai desenvolvendo a trama vivida por Zeca Chapéu Grande, mãe Salu, as filhas Belonísia e Bibiana, vó Donana, e outras personagens paralelas, como Crispina, Crispiniana, Tobias, Severo, Domingas, Maria Cabocla, compadre Saturnino, o gerente Sutério, Miúda e até mesmo pelos encantados Velho Nagô e Santa Rita Pesqueira.

           O tema do romance atravessa o Brasil mascarado em outra face da escravidão do negro, esse desgraçado vivente que um dia estupidamente foi retirado de África para fornecer mão de obra gratuita nos longes de outras terras.  O discurso do baiano Itamar Vieira Junior motiva-se assim com o tema que envolve o descendente desse negro esquecido depois da abolição da escravatura. Quando então soube de outro tipo de escravidão, imposto no trabalho sem paga pelo dono da terra.

          Chegando à   fazenda, depois de vagar, vulnerável por todos os lados, recebia de favor a morada de adobe e vara trançada, de fragilidade visível para que não durasse com o uso e fosse substituída nos mesmos moldes pelos descendentes da mão servil e gratuita. No jogo que só favorecia ao dono da terra, não era permitido ao trabalhador que fosse construída uma casa de tijolo.  Na morada precária, sem água encanada e energia elétrica, exigia-se de seu morador que trabalhasse a terra sem receber remuneração e tudo que produzisse nela por mãos calosas, na lavoura de duração perene, era destinado ao dono da fazenda.

          Difícil que em ambiente de tamanha dificuldade o trabalhador arranjasse tempo para zelar de sua lavoura de pouca duração na várzea quando estava seca, isso era tarefa para a mulher e os filhos. O quintal da casa era também onde a mulher plantava a abóbora, a batata-doce, o quiabo, o tomate e o alface. O alimento sempre era escasso nos períodos de seca prolongada ou de chuva em abundância. Nessas horas de mais vexame, recorria-se ao parente e ao vizinho para arranjar algo que abrandasse o duro passadio.  No estio demorado, o trabalhador alimentava-se com beiju de jatobá, peixe pequeno pescado no rio empoçado. Nas cheias, em algum braço do rio ou lagoa que se formava na várzea, pescava-se o peixe grande, o que até certo ponto aliviava.

      Torto arado conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que ainda pré-adolescentes sofrem o acidente com a faca de cabo de marfim e lâmina que brilha como espelho, escondida entre as roupas velhas da avó Donana, na mala debaixo da cama.  É quando a aguçada curiosidade das irmãs força que descubram o que existe guardado na mala debaixo da cama, fazendo que se vejam surpresas diante da faca de intenso brilho na lâmina e com o cabo de marfim. Ocorre o acidente em que uma delas tem a língua cortada enquanto a outra apenas fica ferida. A irmã que ficou sem a língua só será revelada no final do romance, recurso que o autor usa com habilidade na técnica de sustentar o suspense para aprofundar a narrativa na trama, em cujos atalhos de passagens impressionantes desenvolvem-se outros acontecimentos arrojados vividos pelas duas personagens.

           Com o acidente, uma irmã fica como responsável na transmissão   dos sentimentos da outra, do significado dos dizeres em silêncio provocados pela espontaneidade do riso ou desconforto da tristeza. Na situação que sempre existia com a compreensão recíproca, numa convivência de gestos expressos com o sentimento de amor fraterno, como antes nunca deixou de existir. Mais unidas estavam agora, apreensivas, até certo ponto cautelosas, uma pressentindo o que se passava no coração da outra, sem poder expressar suas reações diante dos seres e das coisas.

                Aparece em suas vidas o primo Severo para separá-las nos sentimentos bons que existiam entre elas, naquela irmandade formada pela cadência do viver desprovida de animosidade. As chamas do amor surgem para aquecer de repente o coração de cada uma, as pulsações agora são causadas pelas visões que as inquietam, originadas pela jovialidade do primo. A desconfiança e o ciúme são mazelas que nascem dessas chamas para separá-las no rancor, que não souberam antes em qualquer circunstância.   O diálogo nutrido pelo afeto já não se faz disponível pela alma que teme ser ofendida pela vitória do amor da outra, a que não ficou emudecida com o acidente provocado pela faca de cabo de marfim.  Somente no final é também revelado o mistério que envolve a faca de lâmina brilhante, durante tanto tempo guardando o segredo de algo fatal por Donana, que reage zangada quando pressente que o instrumento afiado possa ser descoberto por algum curioso.

          Bibiana faz-se agricultora com o passar do tempo enquanto a irmã Belonísia acompanha o marido quando ele se afasta da fazenda Água Negra em busca de melhores dias na cidade. É lá, em chão estranho, de desafio e dificuldade, que ela consegue se formar em professora.  De volta às origens tempos depois, o marido entrega-se à causa de conscientização dos que trabalham na terra com as mãos incansáveis, recebendo no final como recompensa o descanso no cemitério Viração. E dessa  maneira, conscientes do  discurso solidário, possam se libertar do jugo imposto na rotina do trabalho sem paga,  que exaure, torna a vida sofrida, inconcebível, sugada na lavra até a derradeira gota de suor, que só encontra sossego no sumidouro de uma cova rasa.  Severo é assassinado. Belonísia decide retomar a luta do marido para a libertação dos que vivem submissos à canga do dono da terra, o único que tira proveito do trabalho exercido em condição desumana.

          Em Torto arado, romance audacioso na denúncia social, como Beira rio beira vida, do piauiense Assis Brasil, o autor não se omite quando é para dar seu testemunho crítico sobre a questão social da terra usada em níveis desumanos. Faz ecoar de suas páginas o grito pungente riscado nas dores de uma realidade soprada pelo vento de amanhecer áspero, que só encontra alento no escape para uma hora mais branda vivida no plano espiritual com os encantados.

              No final de romance tão belo quanto revelador da vida encalhada numa estrutura arcaica, a personagem Salu deixa seu grito ecoar contra os donos da terra e o uso dela de maneira desumana, num misto de coragem assombrosa e grandeza humana:

“Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim,   mas nunca irão arrancar a terra de mim.” (página 230, edição 2020)

            Para esse romance de incursão intimista e social na realidade rural brasileira, motivado pela gente do quilombo, a mensagem de uma épica contemporânea é encerrada com o pensamento reflexivo de afirmação lúcida.

                                             “Sobre a terra, há de viver sempre o mais forte.”  (página 262,  ano 2020)

              À afirmação de mensagem poderosa pode ser adicionada a bandeira do sentimento do amor, que é de fato o mais forte, e o da liberdade, o mais valoroso.

 

            Referência

    JUNIOR, Itamar Vieira, Torto arado, romance, Prêmios Leya, Jabuti e Oceanos de Literatura, Editora Todavia, São Paulo, 2020.

 

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos.  Membro da Academia de Letras da Bahia, Ordem do Mérito do Governo da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.  Distinguido com a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.     

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UMA SALA, UM JARDIM E O QUE MAIS AS LETRAS PERMITIREM- Silmara Oliveira

 

Primavera do ano de 2021, neste vigésimo terceiro dia do mês de setembro, inauguramos novas folhas na Academia de Letras de Itabuna, ano de seu décimo aniversário. Estas folhas compõem-se de esperança nos homens e na literatura e, não há sombra que paire sobre si, fazem vivo o capítulo da existência, por meio da roupagem literária, os acontecidos do cotidiano.

 A literatura nos fuxica com detalhismo, dependendo do seu criador, o calor amarelo-morno do sol, aroma dos corpos, o barulho das águas, certo tiroteio na rua de baixo, folha nova molhada pelas gotículas de sereno, o frio na espinha de quem vê assombração, namoro novo no capinzal.

 

 Ela que conta com palavras para formar imagens, mostra-se como abóboda celeste recobrindo paisagens e criaturas humanas, criaturas não-humanas, sonhos das crianças pobres, ricas, meigas; a fome da criança no barco, ao atravessar o rio noite a dentro. A literatura ainda nos faz sabedores dos estupros nos ônibus; andar manso da bunda redonda da mulher com o tabuleiro na cabeça, pinta a cena dos pãezinhos de queijo.

A literatura nos assombra com as onças que devoraram a criança, o rifle no branco-claro da lua, na tocaia, e o estampido que paralisa sua vítima; a ligeireza do ladrão em fuga, o menino, escondido na trincheira dos sacos de cacau, sobreviveu a chacina de sua família; piano solitário nomeio da mata.

Letras e palavras em poemas e romances despertam nossa fome com o cheiro do feijão com charque e abóbora na casa de barro batido. Faz vingar a plantação novinha de milho verde; a música orquestrada pelo vento no capim doce, o silvar das cobras, coacho dos sapos; a roda dos carros no asfalto, pipa multicor no céu azul.

A Lítera-arte faz a linha de sangue subindo e descendo ladeira, sonho e loucura andarem juntos, ouro em tigelas no garimpo; A língua de uma que fala pela outra; O cego tátil na vulva; sonhos da impossível liberdade, a realidade ocultada por sílabas de amor. E vamos lembrar Macondo, a cidade que pulsa no coração da via latino-américa. Mas, é também pela literatura que chega a esperança da liberdade, notícias da vida real, de como fazer, de como aprender, de como Ser. As lutas, o sangue, a espada, e o clamor do povo.

Nesta noite, a crença de que já somos tudo isso que está posto nas páginas dos milhares de livros do mundo, aqui e em muitos lugares, nos traz a alegria de poder continuar nesta Sala, nesta universidade, como fator de soma, amparada pela institucionalidade federativa desta nação e, por isso, agradecemos a generosidade da Magnífica Reitora Joana Angélica, e a toda sua equipe, nos nomes, do Decano Fernando Gigante Ferraz, Cláudia Pungartinik, Raquel da Silva Santos, Fran Silva.  Agradecimento a todos os colaboradores desta casa UFSB.

Gratidão a ALITA nobres confrades e confreiras, Eugênio Nobre, artista da noite, gente de Itajuípe. E especial agradecimento a Ulisses Luedy e Júlia que me acompanham nas viagens físicas e oníricas.

Boa Noite!!! Viva a ALITA NOS SEUS DEZ ANOS, um salve especial a tão preciosas presenças na abertura desta sala e, ao reitor da Universidade Estadual de Santa Cruz, o confrade Alessandro Fernandes, o nosso desejo de ser também apoiada nesse construto que é a oferta da literatura em favor da nossa região.

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AS BENEVOLENTES – LITERATURA EM TEMPOS DE FASCISMO – Charles Nascimento de Sá

A Segunda Guerra Mundial foi o maior conflito bélico que o mundo já vivenciou. Ocorrida entre os anos de 1939 a 1945 envolveu todos os países do planeta. Na sanha militarista e expansionista da extrema direita alemã, italiana e japonesa se encontram a gênese desse conflito. Na figura de Adolf Hitler jaz o artífice e causador das ações iniciais que deflagaram a guerra.

A história já teceu inúmeros estudos sobre o nazismo e o facismo, sobre a Alemanha após I Guerra, a expansão dos regimes autoritários de extrema direita e extrema esquerda no mundo após 1918, bem como diversos outras análises e interpretações sobre a Europa e demais continentes entre a eclosão da Grande Guerra de 1914 até o término da Segunda Guerra em 1945. No dizer do historiador inglês Eric Hobsbawm foram 31 anos de celeumas envolvendo diversas partes do mundo, ou todo ele.

Mas não apenas a história se assenhorou do período entre as guerras, a literatura foi aí pródiga na produção de obras, sejam aquelas escritas no calor da hora, como A revolução do bichos de Olwen, Por quem os sinos dobram de Hemingway, ou trabalhos mais autobiográficos como O diário de Anne Frank. Esse são apenas alguns exemplos do período. A posteriori uma gama diversificada de autores, em todos os continentes, se dedicaram a escrever livros tendo como pano de fundo a Europa, ou outro continente, durante a guerra.

O alvorecer do século XXI viu o empenho em romancear e escrever sobre as Grandes Guerras crescer majoritariamente. Entre obras descartáveis, romances confusos ou piegas, boa escrita tem sido desenvolvida. Entre os textos que se destacam, devido à sua escrita e impacto sobre o leitor e a crítica especializada, o romance As benevolentes, do escritor norte-americano, mas de formação francesa, Jonathan Littell, tem lugar capital.

Seja pela profundidade da obra, pela sua escrita, pelo caráter de seu personagem principal, pela pesquisa histórica que embasa todo o romance, pelo cinismo concernente ao modo como o tema é tratado, pelo seu desenvolvimento e desfecho, em todos os lados para onde se olhe o texto de As Benevolentes é cativante, desafiador, envolvente, perturbador, profundo, esclarecedor, revoltante e apaixonante. Possui, enfim, tudo aquilo que uma grande obra literária requer para ser sempre indicativo de uma boa leitura.

O livro foi considerado pela crítica francesa o novo Guerra e Paz do século XXI. Se no majestoso romance do escritor russo Leon Tolstói as guerras napoleônicas servem de pano de fundo para o desenredo do romance entre seus personagens, com destaque para Pierre Bezukhov, Natasha Rostova, André Bolkonski, Maria Bolkonskaya e Nicolau Rostov, além do próprio Napoleão Bonaparte, no livro de Littell o enredo centra-se na figura de Maximilien Aue, alemão de ascendência francesa que, após ter sido detido pela polícia alemã por estar em um parque dedicado a encontro entre homossexuais é cooptado por Thomas, jovem oficial nazista, que após uma conversa com Aue o convida a entrar nas fileiras do partido. Cínico e egoísta Aue vê nisso a oportunidade para aproveitar a ascensão do partido Nacional-Socialista alemão e ganhar poder e prestígio para si.

A trajetória dos dois amigos será desenvolvida em paralelo a todo processo político, militar e humanitário gerado pela Segunda Guerra. Da invasão da Polônia, passando pelos guetos judeus, campos de concentração, países invadidos, conspirações, encontros entre as elites europeias que apoiaram o Reich, eventos do partido Nazista, entre os quais destaca-se aquele que definiu o conceito de solução final, surgido durante a Conferência de Wannsee e exposta depois em uma carta do general das SS Reinhard Heydrich. Os dois oficiais vão galgando a cada novo período maiores postos no interior do partido. Vale lembrar que a organização oficial do Nazismo assemelhava-se ao do exército alemão com postos, títulos, patentes e medalhas similares ao que as forças armadas germânicas faziam nessa época.

Um dos traços que distingue toda a narrativa contida no romance vem do caráter cínico do seu personagem principal. Maximilien Aue começa sua narrativa descrevendo com precisão germânica os números concernentes ao conflito: vítimas, mortes, destruição perdas financeiras são aí indicadas em um texto que pode ser utilizado em qualquer aula de história dado seu preciosismo e veracidade. No desenvolvimento do romance suas motivações e avanços junto ao partido são sempre explicadas e analisadas de forma biltre e sem nenhum tipo de remorso ou arrependimento.

Uma das característica desse personagem tem a ver com sua homossexualidade e seu amor pela irmã. Quando eram novos eles mantiveram um caso, seu afeto e desejo por ela foram o motor para desenvolvimento de sua sexualidade. Ambos mantiveram o romance até que ela teve sua menarca, a partir daí, não tiveram mais contato. Ao irem para internatos em separado durante a adolescência o amor da irmã por Aue feneceu, ele, porém, manteve o desejo sexual aberto. Ao perceber que ela não iria mais ter contato com ele, decidiu então, por amor a ela, sentir o mesmo prazer que esta sentia, buscando satisfação nos braços de outros homens. A sexualidade do personagem será um dos vetores em todo processo de sua ascensão nas fileiras do partido e na forma como ele interagia com outras personagens. Sua discussão e digressões sobre o assunto são ácidas, racionais e irônicas.

As vitórias da Alemanha nazista no início do conflito são detalhadas e explicadas durante as trezentas primeiras páginas do romance. Toda euforia, perseguição, orgulho, sede de poder, nacionalismo, fanatismo e mentiras que eram espalhadas pelo partido e que permeavam o povo alemão são descritos e explicitados. O processo de expansão da Wehrmacht, a força de defesa que substituiu a Reichsheer, exército germânico da Primeira Guerra, que ficou impossibilitado de se expandir devido a cláusulas do Tratado de Versalhes, é narrado com todo o vigor e destruição que causou nas áreas inimigas. A convicção de que o poderio alemão era inigualável, demonstrado pelas inúmeras vitórias da Blitzkrieg, são traçados nessas páginas do romance. Junto a vitória, o delírio e fanatismo da extrema-direita alemã é explicado.

A narrativa que inicia a segunda parte do ramonace, tem como pano de fundo a batalha de Stalingrado. Ela redireciona o leitor para o outro viés do conflito. A partir do momento em que a máquina de guerra alemã começou a dar seu primeiros sinais de que não conseguiria avançar em direção ao Leste, que os esforços e poderio militar da União Soviética demonstravam ser significativamente melhores e superiores ao dos nazistas, o impacto dessa incerteza e do medo se faz sentir em todo o romance.

Levados pelos embates no leste e receando não vencer a guerra contra os comunistas, os nazistas intensificam ainda mais suas loucuras e convicções políticas. Aue acompnha a batalha de Stalingrado e dali parte para as áreas dedicadas ao extermínio do povo judeu. Ele e Thomas participam da organização e desenvolvimento dos campos de concentração. Todo rigor e precisão alemã se voltam para solucionar aquele que era considerado o mal maior entre os nazistas, isto é, o extermínio dos judeus. Junto a estes, homosexuais, ciganos dentre outros adversários do regime, seriam também eliminados.

Ao longo das mais de seiscentas páginas seguintes somos engolfados em diversos horrores e tentativas desesperadas e alucinadas por parte dos nazistas, de modo particular entre sua cúpula dirigente, de tentar frear e reverter a perda de poderio militar e de espaço da Alemanha diante da União Soviética.

Quanto mais o exército recua, quanto mais a Luftwaffe demonstrava sua inferioridade frente aos caças soviéticos e a Real Força Área britânica, mais Hitler, Goebbels, Himmler, Goering e demais dirigentes do partido, bem como a alta cúpula do oficialato alemão, se dedicavam a perseguir, torturar e exterminar aqueles que era considerados inimigos do sistema. Vetor dessa espiral de loucura os personagens Aue e Thomas descem cada vez mais na perseguição aos inimigos do regime, até que as benevolentes, encontram os dois.

A força narrativa de As Benevolentes traça um impasse no leitor: de uma lado ficamos envolvidos, hipnotizados, não conseguindo desgrudar da leitura desse romance; de outro lado, sua ferocidade, crueza, maldade, racionalidade e desumanidade faz com que nos sintamos sujos, tristes, bestializados diante do que o ser humano é capaz de fazer.

Ler, ou reler, As Benevolentes em tempos de bolsonarismo e de ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo é crucial para se entender a irracionalidade, a agressividade, a loucura e a apneia intelectual que regimes fascistas provocam em seus seguidores.

Boa leitura!

 

Charles Nascimento de Sá é Historiador, Mestre em Cultura e Turismo Dr. Em História pela UNESP/Assis. Professor da UNEB, Campus XVIII, Membro da ALITA com a cadeira de número 40.

 

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