Produção Literaria

ILHÉUS NAS CRIAÇÕES DE ADONIAS FILHO- Cyro de Mattos

                    Na coletânea Histórias dispersas de Adonias Filho, que organizamos, Ilhéus aparece como o espaço ideal para a criação de dois contos desse ficcionista maior de nossas letras. A figura lendária de Dom Eduardo ressurge em O Nosso Bispo, através de imagens trazidas da memória, que em cada episódio exibe a criatura mais humilde e generosa, o único a que os presos amavam, os assassinos e os ladrões eram os irmãos preferidos. O autor ressalta a figura daquele abnegado frei, que percorria as roças de cacau, a pé ou montado pelas estradas de brejo. É para ele que Ilhéus pulsa a alma de sua gente com devoção e fé, reza e tem seu retrato nas casas, as criaturas apanham as flores no jardim porque acreditam que esse homem generoso como um santo, sereno como o mais humilde entre os seres humanos, possui os poderes do céu.

        Em A Lição, o narrador de segurança técnica enfoca o menino na aventura da vida, livre como o vento, ágil como o peixe, alegre como o pássaro. Ao ser levado pelo tio para estudar no internato em Ilhéus, o menino vai saber de repente como a vida é triste quando trancada lá dentro, na alma, com pedaços da infância. O choque causado em razão da mudança da vida livre para a prisão do internato fere e torna o menino, naquele instante, o pior dos rebeldes. Com uma voz mansa, o diretor diz para ele só permanecer na escola por sua livre e espontânea vontade. Ele pergunta se pode tomar um banho. Com a aquiescência do diretor, dirige-se para o banheiro do colégio. Era assim a primeira lição

     O mar de Adonias Filho, autor de ritmo poético, estilo sincopado na prosa cantante, mostra em Luanda Beira Bahia como exerce seu poder trágico para seduzir os homens, que não conseguem fugir ao destino de seu aceno movediço. Pelas vastidões das águas tudo trocam, pois são incapazes de permanecer na rotina do chão seguro. O mar no romance Luanda Beira Bahia está cheio de desafios e sortilégios.

Os homens de Ilhéus, ali do Pontal e do Malhado, tinham apenas dois caminhos – dois caminhos e nada mais que aprendia. Entravam matas adentro para o ventre da selva ou saíam mar afora para os portos do mundo. Preferiam o mar, os brancos e os negros, os de sangue português e africano, enquanto os caboclos de sangue índio escolhiam os sertões. O mar, assim começavam a andar, era o primeiro brinquedo. (p. 13)

                A personagem Lina do Malhado via o que estava muito além do próprio mar. As mulheres queriam os homens e eles, como os filhos, saíam para o mundo. Primeiro fora o marido Pedro, depois o filho, também Pedro. Como se elas, as mulheres, “estivessem a parir homens para o mar.” (p. 13)

                Luanda Beira Bahia apresenta também a personagem Maria da Hora, professora de Caúla, ainda moleque em Ilhéus, é quem traz as primeiras impressões a respeito do continente africano. Em certas horas, a mão negra se abria sobre o mapa e, mostrando os continentes, parava na África. “Homens de Ilhéus estão nesses mares”, observava.

             No romance com sabor de obra-prima, os dois irmãos Caúla e Iuta apaixonam-se e se unem sem que conheçam o parentesco entre eles. Os dois são filhos de João Joanes, o Sardento, “que tinha o doido sangue dos marinheiros, herdado do pai, avô e bisavô”. Durante o tempo que viveu em Angola, João Joanes assumiu a identidade de Vicar. Num desfecho funesto, os três descobrem em Ilhéus, no sul da Bahia, ao mesmo tempo, os laços sanguíneos que os uniam e, diante de situação terrível, o pai põe fim à vida dos filhos e à própria vida como forma de reparar a tragédia que havia promovido.

              O desfecho trágico do amor entre irmãos tem como testemunha a jindiba, árvore que era para o menino Caúla como o centro do mundo. O mar e as colinas tinham nela o ponto de referência. A jindiba de Adonias Filho tem função importante no alcance do verdadeiro efeito dramático carregado de simbolismo. Será derrubada e transformada em canoa, servindo como caixão para guardar os três corpos. Mulheres surgiram, não muitas, flores dos quintais nas mãos. Debruçaram-se sobre o caixão de jindiba e, dentro, viram o Sardento sozinho, em frente. Abaixo, lado a lado, Caúla e Iuta. Colocaram as flores, benzeram-se, fizeram o silêncio.

E, logo os homens ergueram o caixão e andaram na direção do cemitério, a chuva caiu como se viesse para lavar o mundo. Pé de Vento atrás, a seguir sem pressa, a pensar que deviam pôr um velame. Um velame de saveiro pequeno na canoa que era o caixão, largá-lo em mar alto, João Joanes e Caúla gostariam daquela viagem como bons marinheiros.  O negro pensando, a andar. E, com o velame aberto, fariam a volta que fizeram por Luanda, Beira, Bahia. (p. 139)

       Em Luanda Beira Bahia, romance imantado sobre a dimensão de horror da tragédia, Adonias Filho mostra como consegue construir uma obra literária com valores míticos a impor soluções exasperadas, movidas pelas forças da vida e da morte. Entre a paisagem do mar, que exerce uma atração fascinante às gentes dos Ilhéus, e os mares interiores, fundos, profundos, no vaivém de águas aflitas, impregnadas do amor.

         Os bonecos de seu Pope é um dos livros que Adonias Filho escreveu para o público infantil. Narrado com graça e mistério, conta a história de um velhinho, de poucos dentes, cabelos brancos, rosto vermelho de tomate maduro. Um tipo sábio, que um dia aparece na cidade de Ilhéus com seus bonecos de madeira, bem-falantes, sem que alguém soubesse de onde ele veio com seus filhos, que por serem diferentes atrai a curiosidade das pessoas.  Os bonecos Quincas, Gaspar e Chico são como se fossem de osso e carne, sofrem e amam como qualquer criatura. Quincas pilheriava, Gaspar era o contador de histórias, o que mais agradava, e Chico o que dizia coisas sérias. Vestido como se fosse um artista de circo, conversando com os seus   bonecos de roupas coloridas, o velhote fazia um espetáculo à parte, que atraía gente grande e adulta à praça, aos domingos.

        Ilhéus serve de cenário luminoso e aconchegante para a exibição desses bonecos, que falam através de Seu Pope, velhinho que tem dez vozes na garganta. O mistério de como os bonecos foram criados por seu dono é guardado por Formiguinha, uma mulher que nascera do encontro entre o arco-íris e uma égua selvagem. Como isso foi possível, ninguém fica sabendo, pois Seu Pope some de Ilhéus no último espetáculo que daria na praça, lotada por gente ansiosa para saber a revelação de tal mistério.

            Auto dos Ilhéus é um primor de texto no gênero. Está dividido em dez quadros. A Povoação, Os Colonos, Os Jesuítas, Os Sertanistas, A Santa Nossa Senhora, Os Desbravadores, Os Imigrantes, Os Sírios, Os Coronéis e Dom Eduardo. Os quadros cobrem o período de 1535 até o primeiro quartel do século XX, no qual sobressai a figura de Dom Eduardo, o padre dos pobres, pai dos desvalidos, dos necessitados de Ilhéus. Texto escrito com o som da história e as cores do coração recria a epopeia da fundação e desenvolvimento de Ilhéus, ofertando aos pósteros a memória da cidade plantada numa baixa de extensa varjaria, à borda da costa.

A novela Simoa alude à fase da ocupação da terra na infância da região cacaueira. Simoa veio das águas, foi encontrada na praia dos mares de Ilhéus. Suas atitudes na selva mostram-se ligadas ao plano divino. Torna-se respeitável, será guia no êxodo do povo negro, que recebe no final a nova terra, com a água doce nascendo e enchendo os canais. E todos viram quando ela e seu louro Naro sumiram no fundo da fronteira, em caminho do mar. Os mares de Ilhéus exercem aqui uma função mítica e contribuem para que a solidariedade seja exercida.

É prazeroso ver como Adonias Filhos demonstra que basta ao escritor tomar como motivação de sua obra o lugar onde nasceu e cresceu, mesmo que seja um ponto desconhecido do mapa, para ser reconhecido no mundo.

Referências

MATTOS, Cyro de. (organizador). Histórias dispersas de Adonias Filho, Editus, Ilhéus, 2011.

  FILHO, Adonias. Luanda, Beira, Bahia, Editora Civilização Brasileira,  Rio,17971.

———————– Os bonecos de Seu Pope, Edições de Ouro, Rio, 1989.

———————– Auto dos Ilhéus, Civilização Brasileira, Rio, 1981.

———————–“Simoa”, em Léguas da Promissão, Civilização Brasileira,  Rio, 1968.

 

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ROMANCE DO NEGRO EM TORTO ARADO- Cyro de Mattos

           Romance do baiano Itamar Vieira Junior, Torto arado (2019) conquistou o prêmio Internacional Leya, um dos mais prestigiados em língua portuguesa, que tornou o autor em um fenômeno da literatura contemporânea. Graças à láurea merecida foi conduzido para além das fronteiras nacionais. O prêmio conquistado deu fama ao autor que há pouco tempo só tinha publicado dois livros de contos: Os dias e Oração do carrasco. O romance rendeu ainda a Itamar Vieira Junior os cobiçados prêmios Jabuti e Oceanos de Literatura, o que expandiu ainda mais o seu nome de romancista e impôs a tradução da sua obra em outros idiomas.

        Romance de narrativa segura, que encanta, dotado de uma uniformidade em sua construção estética que satisfaz, apresenta-se com dois planos no enfrentamento do tema, um de natureza histórica conectado à solidariedade da realidade social e o outro nas relações com o mágico, adotado por alguns de seus personagens, em convívio atemporal com os espíritos conhecidos como encantados. Intenso na carga dramática prende na medida em que vai desenvolvendo a trama vivida por Zeca Chapéu Grande, mãe Salu, as filhas Belonísia e Bibiana, vó Donana, e outras personagens paralelas, como Crispina, Crispiniana, Tobias, Severo, Domingas, Maria Cabocla, compadre Saturnino, o gerente Sutério, Miúda e até mesmo pelos encantados Velho Nagô e Santa Rita Pesqueira.

           O tema do romance atravessa o Brasil mascarado em outra face da escravidão do negro, esse desgraçado vivente que um dia estupidamente foi retirado de África para fornecer mão de obra gratuita nos longes de outras terras.  O discurso do baiano Itamar Vieira Junior motiva-se assim com o tema que envolve o descendente desse negro esquecido depois da abolição da escravatura. Quando então soube de outro tipo de escravidão, imposto no trabalho sem paga pelo dono da terra.

          Chegando à   fazenda, depois de vagar, vulnerável por todos os lados, recebia de favor a morada de adobe e vara trançada, de fragilidade visível para que não durasse com o uso e fosse substituída nos mesmos moldes pelos descendentes da mão servil e gratuita. No jogo que só favorecia ao dono da terra, não era permitido ao trabalhador que fosse construída uma casa de tijolo.  Na morada precária, sem água encanada e energia elétrica, exigia-se de seu morador que trabalhasse a terra sem receber remuneração e tudo que produzisse nela por mãos calosas, na lavoura de duração perene, era destinado ao dono da fazenda.

          Difícil que em ambiente de tamanha dificuldade o trabalhador arranjasse tempo para zelar de sua lavoura de pouca duração na várzea quando estava seca, isso era tarefa para a mulher e os filhos. O quintal da casa era também onde a mulher plantava a abóbora, a batata-doce, o quiabo, o tomate e o alface. O alimento sempre era escasso nos períodos de seca prolongada ou de chuva em abundância. Nessas horas de mais vexame, recorria-se ao parente e ao vizinho para arranjar algo que abrandasse o duro passadio.  No estio demorado, o trabalhador alimentava-se com beiju de jatobá, peixe pequeno pescado no rio empoçado. Nas cheias, em algum braço do rio ou lagoa que se formava na várzea, pescava-se o peixe grande, o que até certo ponto aliviava.

      Torto arado conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que ainda pré-adolescentes sofrem o acidente com a faca de cabo de marfim e lâmina que brilha como espelho, escondida entre as roupas velhas da avó Donana, na mala debaixo da cama.  É quando a aguçada curiosidade das irmãs força que descubram o que existe guardado na mala debaixo da cama, fazendo que se vejam surpresas diante da faca de intenso brilho na lâmina e com o cabo de marfim. Ocorre o acidente em que uma delas tem a língua cortada enquanto a outra apenas fica ferida. A irmã que ficou sem a língua só será revelada no final do romance, recurso que o autor usa com habilidade na técnica de sustentar o suspense para aprofundar a narrativa na trama, em cujos atalhos de passagens impressionantes desenvolvem-se outros acontecimentos arrojados vividos pelas duas personagens.

           Com o acidente, uma irmã fica como responsável na transmissão   dos sentimentos da outra, do significado dos dizeres em silêncio provocados pela espontaneidade do riso ou desconforto da tristeza. Na situação que sempre existia com a compreensão recíproca, numa convivência de gestos expressos com o sentimento de amor fraterno, como antes nunca deixou de existir. Mais unidas estavam agora, apreensivas, até certo ponto cautelosas, uma pressentindo o que se passava no coração da outra, sem poder expressar suas reações diante dos seres e das coisas.

                Aparece em suas vidas o primo Severo para separá-las nos sentimentos bons que existiam entre elas, naquela irmandade formada pela cadência do viver desprovida de animosidade. As chamas do amor surgem para aquecer de repente o coração de cada uma, as pulsações agora são causadas pelas visões que as inquietam, originadas pela jovialidade do primo. A desconfiança e o ciúme são mazelas que nascem dessas chamas para separá-las no rancor, que não souberam antes em qualquer circunstância.   O diálogo nutrido pelo afeto já não se faz disponível pela alma que teme ser ofendida pela vitória do amor da outra, a que não ficou emudecida com o acidente provocado pela faca de cabo de marfim.  Somente no final é também revelado o mistério que envolve a faca de lâmina brilhante, durante tanto tempo guardando o segredo de algo fatal por Donana, que reage zangada quando pressente que o instrumento afiado possa ser descoberto por algum curioso.

          Bibiana faz-se agricultora com o passar do tempo enquanto a irmã Belonísia acompanha o marido quando ele se afasta da fazenda Água Negra em busca de melhores dias na cidade. É lá, em chão estranho, de desafio e dificuldade, que ela consegue se formar em professora.  De volta às origens tempos depois, o marido entrega-se à causa de conscientização dos que trabalham na terra com as mãos incansáveis, recebendo no final como recompensa o descanso no cemitério Viração. E dessa  maneira, conscientes do  discurso solidário, possam se libertar do jugo imposto na rotina do trabalho sem paga,  que exaure, torna a vida sofrida, inconcebível, sugada na lavra até a derradeira gota de suor, que só encontra sossego no sumidouro de uma cova rasa.  Severo é assassinado. Belonísia decide retomar a luta do marido para a libertação dos que vivem submissos à canga do dono da terra, o único que tira proveito do trabalho exercido em condição desumana.

          Em Torto arado, romance audacioso na denúncia social, como Beira rio beira vida, do piauiense Assis Brasil, o autor não se omite quando é para dar seu testemunho crítico sobre a questão social da terra usada em níveis desumanos. Faz ecoar de suas páginas o grito pungente riscado nas dores de uma realidade soprada pelo vento de amanhecer áspero, que só encontra alento no escape para uma hora mais branda vivida no plano espiritual com os encantados.

              No final de romance tão belo quanto revelador da vida encalhada numa estrutura arcaica, a personagem Salu deixa seu grito ecoar contra os donos da terra e o uso dela de maneira desumana, num misto de coragem assombrosa e grandeza humana:

“Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim,   mas nunca irão arrancar a terra de mim.” (página 230, edição 2020)

            Para esse romance de incursão intimista e social na realidade rural brasileira, motivado pela gente do quilombo, a mensagem de uma épica contemporânea é encerrada com o pensamento reflexivo de afirmação lúcida.

                                             “Sobre a terra, há de viver sempre o mais forte.”  (página 262,  ano 2020)

              À afirmação de mensagem poderosa pode ser adicionada a bandeira do sentimento do amor, que é de fato o mais forte, e o da liberdade, o mais valoroso.

 

            Referência

    JUNIOR, Itamar Vieira, Torto arado, romance, Prêmios Leya, Jabuti e Oceanos de Literatura, Editora Todavia, São Paulo, 2020.

 

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos.  Membro da Academia de Letras da Bahia, Ordem do Mérito do Governo da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.  Distinguido com a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.     

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UMA SALA, UM JARDIM E O QUE MAIS AS LETRAS PERMITIREM- Silmara Oliveira

 

Primavera do ano de 2021, neste vigésimo terceiro dia do mês de setembro, inauguramos novas folhas na Academia de Letras de Itabuna, ano de seu décimo aniversário. Estas folhas compõem-se de esperança nos homens e na literatura e, não há sombra que paire sobre si, fazem vivo o capítulo da existência, por meio da roupagem literária, os acontecidos do cotidiano.

 A literatura nos fuxica com detalhismo, dependendo do seu criador, o calor amarelo-morno do sol, aroma dos corpos, o barulho das águas, certo tiroteio na rua de baixo, folha nova molhada pelas gotículas de sereno, o frio na espinha de quem vê assombração, namoro novo no capinzal.

 

 Ela que conta com palavras para formar imagens, mostra-se como abóboda celeste recobrindo paisagens e criaturas humanas, criaturas não-humanas, sonhos das crianças pobres, ricas, meigas; a fome da criança no barco, ao atravessar o rio noite a dentro. A literatura ainda nos faz sabedores dos estupros nos ônibus; andar manso da bunda redonda da mulher com o tabuleiro na cabeça, pinta a cena dos pãezinhos de queijo.

A literatura nos assombra com as onças que devoraram a criança, o rifle no branco-claro da lua, na tocaia, e o estampido que paralisa sua vítima; a ligeireza do ladrão em fuga, o menino, escondido na trincheira dos sacos de cacau, sobreviveu a chacina de sua família; piano solitário nomeio da mata.

Letras e palavras em poemas e romances despertam nossa fome com o cheiro do feijão com charque e abóbora na casa de barro batido. Faz vingar a plantação novinha de milho verde; a música orquestrada pelo vento no capim doce, o silvar das cobras, coacho dos sapos; a roda dos carros no asfalto, pipa multicor no céu azul.

A Lítera-arte faz a linha de sangue subindo e descendo ladeira, sonho e loucura andarem juntos, ouro em tigelas no garimpo; A língua de uma que fala pela outra; O cego tátil na vulva; sonhos da impossível liberdade, a realidade ocultada por sílabas de amor. E vamos lembrar Macondo, a cidade que pulsa no coração da via latino-américa. Mas, é também pela literatura que chega a esperança da liberdade, notícias da vida real, de como fazer, de como aprender, de como Ser. As lutas, o sangue, a espada, e o clamor do povo.

Nesta noite, a crença de que já somos tudo isso que está posto nas páginas dos milhares de livros do mundo, aqui e em muitos lugares, nos traz a alegria de poder continuar nesta Sala, nesta universidade, como fator de soma, amparada pela institucionalidade federativa desta nação e, por isso, agradecemos a generosidade da Magnífica Reitora Joana Angélica, e a toda sua equipe, nos nomes, do Decano Fernando Gigante Ferraz, Cláudia Pungartinik, Raquel da Silva Santos, Fran Silva.  Agradecimento a todos os colaboradores desta casa UFSB.

Gratidão a ALITA nobres confrades e confreiras, Eugênio Nobre, artista da noite, gente de Itajuípe. E especial agradecimento a Ulisses Luedy e Júlia que me acompanham nas viagens físicas e oníricas.

Boa Noite!!! Viva a ALITA NOS SEUS DEZ ANOS, um salve especial a tão preciosas presenças na abertura desta sala e, ao reitor da Universidade Estadual de Santa Cruz, o confrade Alessandro Fernandes, o nosso desejo de ser também apoiada nesse construto que é a oferta da literatura em favor da nossa região.

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AS BENEVOLENTES – LITERATURA EM TEMPOS DE FASCISMO – Charles Nascimento de Sá

A Segunda Guerra Mundial foi o maior conflito bélico que o mundo já vivenciou. Ocorrida entre os anos de 1939 a 1945 envolveu todos os países do planeta. Na sanha militarista e expansionista da extrema direita alemã, italiana e japonesa se encontram a gênese desse conflito. Na figura de Adolf Hitler jaz o artífice e causador das ações iniciais que deflagaram a guerra.

A história já teceu inúmeros estudos sobre o nazismo e o facismo, sobre a Alemanha após I Guerra, a expansão dos regimes autoritários de extrema direita e extrema esquerda no mundo após 1918, bem como diversos outras análises e interpretações sobre a Europa e demais continentes entre a eclosão da Grande Guerra de 1914 até o término da Segunda Guerra em 1945. No dizer do historiador inglês Eric Hobsbawm foram 31 anos de celeumas envolvendo diversas partes do mundo, ou todo ele.

Mas não apenas a história se assenhorou do período entre as guerras, a literatura foi aí pródiga na produção de obras, sejam aquelas escritas no calor da hora, como A revolução do bichos de Olwen, Por quem os sinos dobram de Hemingway, ou trabalhos mais autobiográficos como O diário de Anne Frank. Esse são apenas alguns exemplos do período. A posteriori uma gama diversificada de autores, em todos os continentes, se dedicaram a escrever livros tendo como pano de fundo a Europa, ou outro continente, durante a guerra.

O alvorecer do século XXI viu o empenho em romancear e escrever sobre as Grandes Guerras crescer majoritariamente. Entre obras descartáveis, romances confusos ou piegas, boa escrita tem sido desenvolvida. Entre os textos que se destacam, devido à sua escrita e impacto sobre o leitor e a crítica especializada, o romance As benevolentes, do escritor norte-americano, mas de formação francesa, Jonathan Littell, tem lugar capital.

Seja pela profundidade da obra, pela sua escrita, pelo caráter de seu personagem principal, pela pesquisa histórica que embasa todo o romance, pelo cinismo concernente ao modo como o tema é tratado, pelo seu desenvolvimento e desfecho, em todos os lados para onde se olhe o texto de As Benevolentes é cativante, desafiador, envolvente, perturbador, profundo, esclarecedor, revoltante e apaixonante. Possui, enfim, tudo aquilo que uma grande obra literária requer para ser sempre indicativo de uma boa leitura.

O livro foi considerado pela crítica francesa o novo Guerra e Paz do século XXI. Se no majestoso romance do escritor russo Leon Tolstói as guerras napoleônicas servem de pano de fundo para o desenredo do romance entre seus personagens, com destaque para Pierre Bezukhov, Natasha Rostova, André Bolkonski, Maria Bolkonskaya e Nicolau Rostov, além do próprio Napoleão Bonaparte, no livro de Littell o enredo centra-se na figura de Maximilien Aue, alemão de ascendência francesa que, após ter sido detido pela polícia alemã por estar em um parque dedicado a encontro entre homossexuais é cooptado por Thomas, jovem oficial nazista, que após uma conversa com Aue o convida a entrar nas fileiras do partido. Cínico e egoísta Aue vê nisso a oportunidade para aproveitar a ascensão do partido Nacional-Socialista alemão e ganhar poder e prestígio para si.

A trajetória dos dois amigos será desenvolvida em paralelo a todo processo político, militar e humanitário gerado pela Segunda Guerra. Da invasão da Polônia, passando pelos guetos judeus, campos de concentração, países invadidos, conspirações, encontros entre as elites europeias que apoiaram o Reich, eventos do partido Nazista, entre os quais destaca-se aquele que definiu o conceito de solução final, surgido durante a Conferência de Wannsee e exposta depois em uma carta do general das SS Reinhard Heydrich. Os dois oficiais vão galgando a cada novo período maiores postos no interior do partido. Vale lembrar que a organização oficial do Nazismo assemelhava-se ao do exército alemão com postos, títulos, patentes e medalhas similares ao que as forças armadas germânicas faziam nessa época.

Um dos traços que distingue toda a narrativa contida no romance vem do caráter cínico do seu personagem principal. Maximilien Aue começa sua narrativa descrevendo com precisão germânica os números concernentes ao conflito: vítimas, mortes, destruição perdas financeiras são aí indicadas em um texto que pode ser utilizado em qualquer aula de história dado seu preciosismo e veracidade. No desenvolvimento do romance suas motivações e avanços junto ao partido são sempre explicadas e analisadas de forma biltre e sem nenhum tipo de remorso ou arrependimento.

Uma das característica desse personagem tem a ver com sua homossexualidade e seu amor pela irmã. Quando eram novos eles mantiveram um caso, seu afeto e desejo por ela foram o motor para desenvolvimento de sua sexualidade. Ambos mantiveram o romance até que ela teve sua menarca, a partir daí, não tiveram mais contato. Ao irem para internatos em separado durante a adolescência o amor da irmã por Aue feneceu, ele, porém, manteve o desejo sexual aberto. Ao perceber que ela não iria mais ter contato com ele, decidiu então, por amor a ela, sentir o mesmo prazer que esta sentia, buscando satisfação nos braços de outros homens. A sexualidade do personagem será um dos vetores em todo processo de sua ascensão nas fileiras do partido e na forma como ele interagia com outras personagens. Sua discussão e digressões sobre o assunto são ácidas, racionais e irônicas.

As vitórias da Alemanha nazista no início do conflito são detalhadas e explicadas durante as trezentas primeiras páginas do romance. Toda euforia, perseguição, orgulho, sede de poder, nacionalismo, fanatismo e mentiras que eram espalhadas pelo partido e que permeavam o povo alemão são descritos e explicitados. O processo de expansão da Wehrmacht, a força de defesa que substituiu a Reichsheer, exército germânico da Primeira Guerra, que ficou impossibilitado de se expandir devido a cláusulas do Tratado de Versalhes, é narrado com todo o vigor e destruição que causou nas áreas inimigas. A convicção de que o poderio alemão era inigualável, demonstrado pelas inúmeras vitórias da Blitzkrieg, são traçados nessas páginas do romance. Junto a vitória, o delírio e fanatismo da extrema-direita alemã é explicado.

A narrativa que inicia a segunda parte do ramonace, tem como pano de fundo a batalha de Stalingrado. Ela redireciona o leitor para o outro viés do conflito. A partir do momento em que a máquina de guerra alemã começou a dar seu primeiros sinais de que não conseguiria avançar em direção ao Leste, que os esforços e poderio militar da União Soviética demonstravam ser significativamente melhores e superiores ao dos nazistas, o impacto dessa incerteza e do medo se faz sentir em todo o romance.

Levados pelos embates no leste e receando não vencer a guerra contra os comunistas, os nazistas intensificam ainda mais suas loucuras e convicções políticas. Aue acompnha a batalha de Stalingrado e dali parte para as áreas dedicadas ao extermínio do povo judeu. Ele e Thomas participam da organização e desenvolvimento dos campos de concentração. Todo rigor e precisão alemã se voltam para solucionar aquele que era considerado o mal maior entre os nazistas, isto é, o extermínio dos judeus. Junto a estes, homosexuais, ciganos dentre outros adversários do regime, seriam também eliminados.

Ao longo das mais de seiscentas páginas seguintes somos engolfados em diversos horrores e tentativas desesperadas e alucinadas por parte dos nazistas, de modo particular entre sua cúpula dirigente, de tentar frear e reverter a perda de poderio militar e de espaço da Alemanha diante da União Soviética.

Quanto mais o exército recua, quanto mais a Luftwaffe demonstrava sua inferioridade frente aos caças soviéticos e a Real Força Área britânica, mais Hitler, Goebbels, Himmler, Goering e demais dirigentes do partido, bem como a alta cúpula do oficialato alemão, se dedicavam a perseguir, torturar e exterminar aqueles que era considerados inimigos do sistema. Vetor dessa espiral de loucura os personagens Aue e Thomas descem cada vez mais na perseguição aos inimigos do regime, até que as benevolentes, encontram os dois.

A força narrativa de As Benevolentes traça um impasse no leitor: de uma lado ficamos envolvidos, hipnotizados, não conseguindo desgrudar da leitura desse romance; de outro lado, sua ferocidade, crueza, maldade, racionalidade e desumanidade faz com que nos sintamos sujos, tristes, bestializados diante do que o ser humano é capaz de fazer.

Ler, ou reler, As Benevolentes em tempos de bolsonarismo e de ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo é crucial para se entender a irracionalidade, a agressividade, a loucura e a apneia intelectual que regimes fascistas provocam em seus seguidores.

Boa leitura!

 

Charles Nascimento de Sá é Historiador, Mestre em Cultura e Turismo Dr. Em História pela UNESP/Assis. Professor da UNEB, Campus XVIII, Membro da ALITA com a cadeira de número 40.

 

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ALITA 10 ANOS- Silmara Oliveira

Animai-vos povo Bahiense! 

Como palavras da noite escolho duas: animar e conspirar.

Faço referência ao título do livro Animai-vos povo Bahiense! A conspiração dos alfaiates, dos organizadores: Carlos Vasconcelos Domingues, Cícero Bathomarco Lemos e Edyala Yglesias.

O tempo é para animar-se, acelerar em alta a vibração no nosso entorno. Aproveitar o nosso lado psicológico – a alma, a mente e o coração, constantes na sede do nosso pensamento – para tomar posição altiva, já que adentramos o outono, estação que traz frescor e conforto visual na atmosfera. Somos quarenta acadêmicos, quarenta rotações de alegria por esta noite de felicitações à casa que nos une e, estamos vivos.

Se olharmos para os lados, há cinzas que recobrem, não só este nosso país, mas também, a terra inteira, A Terra em pandemia como já escreveu o poeta Aleilton Fonseca; se olharmos para trás, passos dados em estradas por vezes planas, por vezes, tortuosas, mas, se nos dignarmos a encarar o futuro, haveremos de ver luz brilhante no túnel, não no fim, nele inteiro, porque o que esta academia apurar ao longe, em idade muito avançada, certamente, sobreviverá.

O Tempo é para conspirar contra os maus augúrios dos últimos dias com a pandemia se alastrando, sem freios, pelo planeta, respirar em conjunto contra as desilusões de quando um sonho comum parece desvanecer, e tivemos que lutar para afastar alguns descompassos aqui na nossa academia. Aparecerão outras fissuras, é o comum da vida, mas fazemos parte de um sodalício que aniversaria dez anos de idade, a ALITA é, pois, uma criança, e estamos dando testemunho da nossa conspiração contra adversidades à sua infância.

Disto tratamos ao agradecer o companheirismo que em hora necessária nos tem acorrido em união e prontidão às ocorrências. Conspirar em sentido construtivo tem sido providência, a exemplo da água, que se desvia de obstáculos; animar tem sido a alma que eleva nossas ideias, vontade, emoção e caráter, em sentido de animus, formando nossa identidade alitana.

Estamos hoje numa expectativa de boas aventuranças, afinal, reunir em torno desta agremiação, um conjunto especial de pessoas com propósitos afins, de congraçamento com a arte e a literatura, colaborando, cada um à sua competência, nos torna confiantes para pautar projetos que, por sua vez, pretendem atrair de forma especial, leitores e atores sociais, que sintam nesta entidade os pés e a cabeça no futuro, sem esquecer a nossa origem.

E falar da origem, do começo da literatura, no território do cacau, requer de nós rememorar os pilares que fundamentam a profundidade de tais escrituras. Geográfica, ambiental e socialmente: uma imensidão de mar, a mata, paisagens virgens e densas em abundância de tons verdes, sua derrubada, índios como donos, animais em grande quantidade e tipos; homens que ambicionavam terras, populações que se formaram; o cacau trazido e disseminado por homens e juparás, implantado; o comércio que chegou, comunidades localizadas, para depois, a sociedade plena.

 Até aqui tudo muito simples no modo de dizer, mas ao mesmo tempo complexo como tem que ser. E para essa fala de complexas tensões sociais, grandes mestres. Mencionar seus nomes é como despertar o passado, dia após dia, em suas páginas de romances, contos e crônicas da vida narrada, poemas. Trazer em lufadas de memória amores e guerras, caminhos e fendas, tiroteios e correrias, banhos de rio e crianças ao peito, prostitutas e rezas, lautas mesas e fome, frio e sede, danças e mortes.

Entramos a chamar nominalmente, Adonias Filho, Jorge Amado, Jorge Medauar, Sosígenes Costa, João da Silva Campos, Ildázio Tavares, Euclides da Cunha, Telmo Padilha, Cyro de Mattos, Ruy do Carmo Póvoas, Valdelice Pinheiro, Hélio Pólvora, Maria de Lurdes Netto Simões, Sione Porto, Marcos Santarrita, Ceres Marilyse, James Amado, Firmino Rocha, Augusto Mário Ferreira, Natan Coutinho, Aleilton Fonseca e outros mais novos de temática mais renovada, sobre os aspectos humanos e sociais.

Enquanto escrevo, observo um caracol no meu quintal, no alto da velha caramboleira, me pergunto: mas como? Saído do chão e vigiado por Júlia, minha filha, que vive a tomar conta do destino dos caracóis do quintal, imediata analogia tracei entre a ALITA e o caracol. Pequenino ser, tão lento e tão no alto, no topo da árvore.

Sinto isso da Academia de Letras de Itabuna e penso que, pacientemente, traçamos um caminho que pode chegar a alturas.

A favor, tem edições de revistas, palestras, rodas de leituras em escolas, lançamento de livros, atividades culturais, é uma academia com empatia para com a identidade da Consciência Negra. Atividades que, possivelmente, serão acrescidas de outras com perfil mais moderno e de alcance em mídias digitais, atreladas ao mundo virtual.

São passos que devemos transformar em movimentos mais dinâmicos, com maior capacidade de abrangência. Lembrando que o lugar da academia será sempre o da cultura, primordialmente, no cuidado com a produção da escrita e da leitura. E é com esta perspectiva de bons ventos soprando ao nosso favor, que saudamos a Academia de Letras de Itabuna nos seus dez anos de existência e desejamos muitos, muitos, muitos anos de vida.

Parte II

Nesta noite de festa e celebração estou convicta de que a sabedoria é aliada da calma, da fé e da esperança. Por algum tempo esperamos pela posse de alguns convidados, agora membros acadêmicos, gratos confrades, de espírito livre e ações de intelecto ativo.

Assim foi com o confrade Alessandro Fernandes de Santana, convidado pela confreira Sônia Carvalho de Almeida Maron, o confrade Sílvio Porto, indicado pela Confreira Sione Porto, a confrade Joana Angélica Guimarães da Luz, a convite de quem vos fala neste momento, o confrade Wilson Caitano de Jesus Filho, por indicação de confrade João Otávio Macedo, a confreira Reheniglei Rehen convite de Cyro de Mattos,  e Charles Nascimento de Sá, por Janete Ruiz, alguns com mais, outros menos tempo de convite, todos confrades e confreiras empossados.

Agora reunidos, estaremos em condições de trabalhar em prol dessa região tão agastada por tantas faltas. Longe que estamos das condições de desenvolvimento econômico tão promissor, como de fato aconteceu tanto na vida real, quanto retratada na vida ficcional, pelos já mencionados escritores.

Nosso papel, enquanto alitanos, cada um em seus postos de trabalho e atuação social, devemos sempre pensar de modo a conduzir nosso grão de areia para esse construto por meio da literatura. Como chegaremos aos mais novos? Qual a chave de acesso para melhor aproximação com a comunidade local?

Questões fáceis de responder quando reunidas três importantes universidades: Universidade Estadual da Bahia – UNEB – acolhendo o confrade Charles Nascimento de Sá, Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – Alessandro Fernandes Nascimento e Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB – Joana Angélica Guimarães da Luz, mais Sílvio Porto, Wilson Caitano de Jesus Filho e Reheniglei Rehen, pessoas de espírito e conhecimento, que há pouco juraram pelo bem da ALITA e seus objetivos.

Em nome de todos os alitanos, parabenizo e saúdo os novos acadêmicos para que imbuídos do sopro que anima a vida, possamos realizar o que se deseja e espera de uma academia de letras. Sejam todos bem-vindos.

Tenho verdadeira admiração a homens e mulheres quando se juntam em agremiações para realização de grandes feitos, assim como pedra angular que norteia e edifica a construção que se pretende, considero cada homem e cada mulher que edificou a Academia de Letras de Itabuna. Minha consideração especial aos fundadores, à sua dedicação diuturna para afirmação da solidez desta academia. A cada alitano que cumpre seu papel com empenho e dedicação a nossa gratidão, nosso amor e carinho.

 Ressalto que deposito minha fé em todos que estejam dispostos a acalentar o sonho de dignificar com trabalho e criatividade uma produção acadêmica que para além de dez anos, miremos para o alto e para frente, na composição social da intelectualidade que nos legou Adonias Filho, a quem tomo para exemplo, patrono desta academia, intelectualidade que é herança de um tempo, transformada em patrimônio da região cacaueira.

É com imensa alegria e esperança nos dias futuros da ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA que os convoco, nobres confreiras e confrades a conspirar em favor de nós mesmo, alitanos.

Animai-vos povo alitanos!

 Silmara Oliveira

Presidente

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PRAÇAS DO CENTRO DE ITABUNA – SIGNIFICADOS/FUNÇÕES- Lurdes Bertol Rocha

Ao se pensar em praça, vêm à mente imagens de bancos, flores, árvores, pessoas conversando, descansando, passando, olhando o tempo que foi, que é, que virá. Algumas pessoas olham ensimesmadas na direção de um tempo que ficou em algum lugar do passado. Mas, na praça desfila também um mundo menos romântico: mendigos fazem dela sua cama; hippies tecem suas bijouterias; raizeiros apregoam e vendem suas poções mágicas; ambulantes expõem seus produtos; floristas vendem suas flores. A praça é, também, em alguns momentos, o templo de eventuais cultos religiosos, o púlpito de pregadores de promessas eternas e do fogo do inferno, o palco de malabaristas, o palanque de políticos. Pode ser ainda o lugar da degradação humana: jovens usando drogas, crianças cheirando cola, mendigos implorando por um pedaço de pão. Resumindo, pode-se dizer que a praça é o placo onde se apresentam os mais diversos eventos da vida urbana.

As praças têm significados específicos no cenário urbano: umas indicam o marco inicial de uma área urbana, outras representam fatos que marcaram a história do povo do lugar, outras ainda sinalizam para feitos de um determinado político ou homenageiam uma personalidade internacional, nacional ou local.

Além de se apresentarem com significados específicos, as praças têm, também, funções definidas, que vão se forjando com o uso que os cidadãos fazem delas ao longo do tempo.  Existem as praças que são um local de descanso, de fazer nada, de jogar conversa fora, enfim, de ver “a banda passar”. Outras são utilizadas para passagem, para esperar o transporte que as leve a algum lugar para onde queiram ir. Há as praças que servem de ajuntamento de pessoas que fazem trocas de objetos, vendem artigos adquiridos de forma um pouco enviesada: são as chamadas “ilhas do rato”. Existem praças que são parque infantil, onde as crianças, acompanhadas de algum adulto, ou acompanhadas de si mesmas, divertem-se nas gangorras, nos túneis, nos balanços. E há as praças de onde partem as reivindicações sociais, os protestos, as manifestações políticas, religiosas, as passeatas apregoando as qualidades políticas de um candidato a alguma coisa. As praças, em geral, são o lugar onde os “sem teto”, ao abrigo da abóbada celeste, descansam seu corpo cansado, para, em seguida, sair à procura de algo que, para eles, não está em lugar algum. Mas, as praças podem ser, também, o palco de ritmos e instrumentos, de música que enleva e que diverte.

Toda cidade tem sua praça, por menor que seja. É na praça, ou nas praças, por ser um espaço público, que as pessoas transitam livremente, chegam e saem à hora que querem, sem que sejam molestadas, pois a praça é do povo. Lugar de ajuntamento, de passagem, de comércio informal, de discursos, de pregações religiosas, de apregoar virtudes de raízes e simpatias, do mendigo, do sem-teto. Lugar de todos. Lugar de ninguém.

Algumas praças ficaram famosas e adquiriram status de signo-símbolo, como por exemplo, a praça de São Pedro, em Roma, a praça de São Marcos, em Veneza, a praça da Sé, em São Paulo, a praça da República, no Rio de Janeiro, a praça do Pelourinho, em Salvador, a praça Dom Eduardo, em Ilhéus, a praça Olinto Leone, em Itabuna, entre tantas outras.

No centro de Itabuna, algumas praças ostentam um passado que ficou na memória da cidade e cujo significado precisa ser desvendado (praça Firmino Alves). Outras servem de descanso para pessoas que esperam transporte para voltar a seu bairro (praça José Bastos). Outras ainda se constituem em pontos de concentração para caminhadas de manifestações reivindicatórias (Jardim do Ó). Há praças que oferecem lazer nos finais de tarde e nos finais de semana (praça Olinto Leone). E há as que são um largo, servem de estacionamento e passagem (praça Adame).

Em síntese, as praças do centro de Itabuna, consideradas como signos importantes são as praças Santo Antônio, Adami, Olinto Leone, José Bastos, Otávio Mangabeira (mais conhecida como Praça Camacan) e Jardim do Ó.

*Texto do livro da autora, “O centro da cidade de Itabuna: Trajetória, Signos e Significados”. Editus.

 

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O HUMANISMO EM JORGE AMADO (UM HUMANISTA NAS TERRAS DO CACAU)- Margarida Fahel

Começo esta fala, particularmente endereçada aos estudantes deste colégio, dizendo também da minha particular emoção, de alegria, de muita saudade e, até, de certo orgulho, por fazê-la neste estabelecimento de ensino que tive a honra profissional de implantar nos idos de 1983, na condição de Diretora. Lembro-me bem de sua inauguração, dos primeiros passos para organizá-lo e fazê-lo funcionar. Um esforço conjunto de um grupo de professores idealistas, vice-diretores, supervisora educacional, orientadora educacional, coordenadora pedagógica e um grupo de apoio comprometido. Àquele momento, era Superintendente Regional de Educação a profa. Edehilda Rodrigues de Oliveira, ainda hoje uma dileta amiga.

Na minha jornada como educadora, apesar da imensa gratificação pela minha carreira como Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, por algumas décadas, que me rendeu honras e alegrias, os anos em que aqui estive, dirigindo este estabelecimento, estão gravados em minha memória, em face da importância do trabalho que aqui realizamos todos.

De modo que volto aqui hoje com uma certeza: aqui vivi anos de trabalho profícuo, de alegrias, de esforço, de união, voltados para o ideal de uma vida melhor e de um mundo mais justo e mais bonito e que, não tenho dúvidas, só se realiza pela educação. Essas palavras iniciais procuro justificá-las em função do tema desta conversa, como verão.

Portanto, meus agradecimentos a Ceres, ilustre confreira, pela escolha deste local para a minha fala, demonstrando sua sensibilidade e carinho comigo. Peço-lhes registrarem meu mais profundo desejo de que esta casa de educação seja uma difusora da paz, alegria e conhecimentos ou, lembrando a nossa inesquecível poeta Valdelice Pinheiro, que aqui também seja “um campo de paz.”.

Assim dito, dirijo-me ao tema desta conversa de hoje e que despretensiosamente denominei de “O Humanismo em Jorge Amado”.

Inicio-a, pedindo licença para ler um trecho do crítico Hermes Rodrigues Nery, da apresentação da obra “Conversando com Jorge Amado”, de Alice Raillard:

“Sua literatura, fruto dessa experiência pessoal, genuína, que tudo quis recolher e contar, absorvendo com desmesurada intensidade o sabor da vida, em suas múltiplas e amplas perspectivas, é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

“Toda uma vida dedicada ao Brasil, expandindo a nossa cultura pelo mundo afora, das tradições, do ritmo, do fluir do nosso sangue mestiço, dos negros, das mulheres cativantes, da sedução da Bahia, de tudo isso escreveu (…) denunciando as insensibilidades das elites políticas em relação a tantos problemas que fazem sofrer o nosso povo, entre eles a miséria.” (Esta apresentação foi escrita em 1990).

Reputo como absolutamente verdadeiras as palavras de Rodrigues Nery e sobre os pontos levantados haverá momento de tratá-los, mas, neste prólogo, tomo como fundamento para o início de conversa a afirmação do crítico, segundo a qual a literatura de Jorge” é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Parto do expresso porque desde os meus primeiros estudos sobre a obra de Jorge Amado, e já há bastantes anos, senti-me extremamente seduzida por um sopro, assim chamo, que, para mim, perpassava tudo que dele lia: uma atitude amorosa, compassiva e humana sobre os seres que habitavam sua ficção e um latente desejo de compreensão de suas realidades. Os aspectos estritamente ligados à urdidura ficcional, especialmente os mais formais, nunca me preocuparam de maneira especial. Não que não sejam importantes e passíveis do interesse crítico, mas não era exatamente o elemento de sedução ao meu olhar. Foi o fabuloso contador de histórias, como ele próprio gostava de rotular-se, com uma presença narrativa marcante e os sentimentos dele emanados que provocaram não apenas a minha admiração, mas a necessidade de estudá-lo e conhecê-lo com maior profundidade.

A obra de Amado, suas histórias nascidas das realidades conhecidas e vividas pelo autor, como ele próprio sempre quis dizer, a profusão de personagens retirados da engrenagem social de um tempo, de uma época, dos lugares caminhados, esteve sempre a levantar questionamentos que desembocavam quase rotineiramente nas questões sociais, políticas e econômicas, é fato, mas que não se limitavam a expô-las e denunciá-las. Sempre me pareceu que Jorge Amado intentava algo mais, ou através disso. Sempre me pareceu que o lirismo que envolvia todo o seu fabuloso mundo ficcional não era apenas uma lufada romântica para amenizar realidades tão dramáticas, na maioria das vezes.

A obra à qual me referi no início desta fala, de Alice Raillard, revela Jorge através dele mesmo, e revelando-se ele como um incrível e lúcido conhecedor do seu tempo, de sua época, de sua terra e de sua gente. Jorge Amado tem uma clara e vívida compreensão de sua obra, de sua evolução como ficcionista e do sentido maior de sua atividade de escritor. Ele tem uma consciência clara e precisa, desculpem a redundância, do sentido e missão de sua atividade literária. Relembro aqui palavras de outro grande escritor baiano, ainda em plena atividade inventiva, o nosso João Ubaldo Ribeiro, amigo dileto de Amado, quando disse com exatidão: “… Devemos a Jorge Amado a abertura da consciência literária no Brasil. Ele foi um pioneiro cheio de esplendor e obstinação. É um homem indissociavelmente ligado não somente à história da literatura, mas também à cultura brasileira. Foi escolhido pelas fadas, ou por quem quer que seja. Jorge atravessou toda a literatura brasileira, praticamente desde a Semana de Arte Moderna, e atravessou-a com uma obcessão que, pode-se dizer, chega ao sublime, o sentimento de uma missão. De forma incrível. Ele ajudou a introduzir o Brasil na modernidade.” Coloco essas coisas porque elas me levam ao foco proposto, verão.

Jorge analisa a fase inicial de sua obra, basicamente protagonizada pelos romances “O País do Carnaval”, “Cacau” e “Suor, fase de nítido engajamento político- ideológico, em que esteve preso aos ditames da estética e ideologia marxistas. Ele diz compreendê-la, além disso, em função do momento em que as escreveu, pouco mais que adolescente. Segue interpretando o seu “progredir” enquanto ficcionista e como criador de personagens quase heroicos, agora realmente representativos de sua terra: a princípio, a Cidade de Salvador da Bahia, como era então chamada, cidade que o abrigou e o fez crescer em suas ladeiras e suas ruas estreitas de então; daí emergiram as grandes figuras de vagabundos, meninos de rua, marginalizados, trabalhadores do cais da Bahia, pescadores e prostitutas, uma plêiade de personagens que ainda oscilam entre a realidade e a magia. De sua paixão pelo povo e sua realidade, explodiram os personagens da terra grapiúna, a sua terra, a civilização do cacau, da qual também fazemos parte.Daí surgiram, na pena mágica de Jorge Amado, os quase lendários coronéis, os jagunços, as prostitutas do Bataclã, as senhoras aprisionadas, os amores impossíveis, o sangue derramado nas roças de cacau. De lá e de cá –Salvador da Bahia e Terras Grapiúnas- as obras que encantaram o mundo: Dona Flor e Seus Dois Maridos, Jubiabá, Mar Morto, Os Pastores da Noite, Capitães de Areia,Tieta do Agreste; Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Tocaia Grande e Gabriela, Cravo e Canela, citando somente algumas das obras do grande Jorge.

Na verdade, o defensor dos marginalizados, dos injustiçados, dos bêbados e vagabundos não foi plasmado, assim creio, pela ideologia comunista. Havia, sim, em Jorge, um ser profunda e humanamente tocado pelas fraquezas humanas e pelas dores sociais. Um ser capaz de entender os sentimentos humanos e, especialmente, um homem capaz de entender que um povo particularmente singular emergia desse caldo cultural baiano. Mesmo o leitor mais ingênuo percebe que o escritor, mais que apenas criador, ama seus personagens , os compreende, protege-os, além de defendê-los.

Um olhar mais arguto, portanto, percebe que Jorge sempre pretendeu mais do que contar as histórias que viu e viveu.Atualmente, novos paradigmas críticos estão aí e melhor podem explicar a obra amadeana. Na verdade, a própria Antropologia, e leia-se no Brasil Roberto Da Matta, já havia tomado em estudo a obra amadeana, vendo-a, especialmente Dona Flor e Seus Dois Maridos, como representativa de um caráter nacional. Ele alonga seus estudos a Gabriela, Cravo e Canela, e passa a mostrar a obra de Amado como bem mais significativa do que ingenuamente ou preconceituosamente se imaginava. Passa a vê-la como uma obra de caráter relacional, ou seja, que se objetiva a partir do entendimento de uma sociedade que se desenvolve pela via de estruturas sociais que se rivalizam, mas que precisam relacionar-se para subsistirem. A obra “A Casa e a Rua,” de Da Matta, atribui longas páginas à análise do romance de Amado. Diz ele: “… a sociedade brasileira é relacional. Um sistema no qual o básico, o valor fundamental, é relacionar, misturar, juntar, confundir, conciliar”. E aí, ele diz já se dirigindo à obra de Jorge: “… no caso da obra de um escritor como Jorge Amado e da tomada de um dos seus trabalhos como paradigma para os problemas da sociedade brasileira, (…) essas ideias parecem ser um belo ponto de partida”. Da Matta afirma, pois, categoricamente, sobre a narrativa de Amado: …” É impressionante, diz ele, que nenhum crítico tenha percebido essa chamada “guinada” do autor como um modo de enfrentar os temas não oficiais da sociedade brasileira”. “Em Gabriela, (Lançada em 1958) Jorge mistura a obra literária com a vida diária e com as instituições permanentes dessa sociedade”. Aparecem, então, não os temas estritamente históricos, os acontecimentos políticos, mas a presença “do outro mundo” e, particularmente, a presença da mulher, seja a prostituta ou a senhora. Surge a comida como elemento articulador das relações sociais. Os personagens assumem o papel das amizades, de um mundo marcado pelas relações afetivas. Atualmente, o campo dos Estudos Culturais permite revisar a crítica sobre essa obra, revelando-a como capaz de responder a questionamentos da Etnografia, ou seja, vê-la como reveladora de uma raça num determinado contexto geográfico. Uma pesquisa rápida revela atualmente um bom número de dissertações de mestrado e teses de doutorado que têm como foco a obra de Jorge Amado, levando-a, pois, aos estudos acadêmicos, admirando-a enquanto, basicamente, seu valor estético- literário e vendo-a em amplitudes outras, a partir de sua importância cultural, enxergando nela uma possibilidade de entender este país tão singular e esta não menos singular gente brasileira. Cito, aqui, para os mais interessados, estudos nessa linha, muito atuais:

1-O Brasil Best Seller de Jorge Amado- Literaturas e Identidade Nacional, de Ilana Seltzer Goldstein, da Editora SENAC, S.P(Tese de doutoramento em Antropologia Social).

2- Dissertação de Mestrado: Jorge Amado e a Identidade Nacional-Diálogos Políticos-Culturais, de Carolina F. Calixto.

3- Artigo: Retrato de certa Brasilidade, de Clarice Cohn.

4- Ensaios: Estudos Culturais: Propedêutica, Rivalidades e Perspectivas, de Luciano Rodrigues Lima.

Tal leitura da obra amadeana leva-me a caminhar um pouco mais na perseguição ao tema proposto e , vendo-a através do desejo do autor de entender e explicar sua gente e sua terra, pontuo a importância de grifar alguns elementos substantivos que, a meu entender, caracterizam essa singular gente baiana e mesmo brasileira e que estão expressos nos personagens magnificamente criados.

O primeiro deles, o sentimento de fraternidade. Enfatizo o termo, aqui, para vê-lo na acepção específica da mensagem do escritor: o desejo de unir um povo fruto de raças tão distintas, nascido de circunstâncias histórico-sociais tão discrepantes. Uni-lo pela dança, pela música, pela derrubada dos preconceitos religiosos e sociais. Uni-lo pela alegria e pela esperança. Falando a respeito, a escritora Alice Raillard expressa: “… Uma obra que poderíamos chamar de fraterna- o que, sem dúvida, está em parte ligado a seu brilho extraordinário – dirigido pela ideia de liberdade- noção da qual Jorge tomou consciência desde muito cedo e que orientou a sua obra e seu engajamento.”

Peço-lhes, então, que acrescentem este segundo termo, liberdade, como mais um elemento estruturador do tema aqui perseguido. Seus personagens, o escritor os quer livres e os constrói ou os retoma do contexto real da vida com essa finalidade. Ele entende que somente livres os indivíduos se apresentam genuínos, em suas grandezas e em suas fraquezas, em suas desgraças e suas alegrias. Os grandes personagens da obra amadeana, quer sejam os femininos, Gabriela à frente, Tieta, Dona Flor, Teresa Batista; quer sejam os personagens masculinos : Balduíno, Quincas Berro D’água, Pedro Arcanjo não se enquadram num modelo social estratificado, exatamente porque souberam viver aquilo que realmente eram em sua humanidade.

Veja-se, exemplificando isso, que a famosa Gabriela, talvez mesmo o seu personagem mais admirado e sedutor, não encantou os milhões de leitores apenas por ser bela, rústica e sensual. O que primordialmente a todos seduziu foi a ideia do amor sem condições, sem amarras: o amor pelo próprio amor, sem interesses medíocres ou como estratégia de segurança, de conforto ou ascensão social.Gabriela não ambicionava ser “senhora”, ter joias, vestidos, chapéus ou sapatos caros, sequer roças de cacau ou palacetes na cidade.Por isso, não precisava casar.O amor de Nacib lhe bastava e isso ela já tinha.Gabriela queria ser livre para não usar sapatos apertados, para dançar no Terno de Reis, para soltar pipa com a molecada.Ou seja, livre para ser ela mesma.Pode-se contestar isso, vendo-a como uma visão romântica de Jorge Amado, mas, se perguntarmos o que movem os desejos, a resposta óbvia será: os interesses.Interesses de domínio, de poder, de posse.Contra isso, Jorge criou Gabriela: livre, pura, íntegra.

Falando de Tocaia Grande, uma das mais significativas obras de Jorge em relação à civilização do cacau, o autor enfatiza a sua preocupação com o ideal da liberdade do homem: “… Creio que Tocaia Grande é um livro em que a ação corresponde exatamente à minha preocupação com a liberdade do homem. É um livro contra as ideologias. Contra a ideologia que é, creio – eu o disse em O Menino Grapiúna – um dos males fundamentais do nosso tempo”.

Outro aspecto encontrado na construção ora buscada revela-se na presença inequívoca do otimismo, da alegria e da esperança. Os romances de Amado, apesar das dores e sofrimentos, da violência, da crueza de determinados fatos e temas, são romances de fé na vida, numa explosão de força e de alegria de existir. Seus personagens caminham para frente, a esperança anima a luta e promove a mudança. Esse otimismo, aliás, o próprio escritor o reconhece e dele tem absoluta consciência. Falando de Gabriela, ele afirma: ”… Gabriela é um livro muito otimista sobre a vida – aliás, toda a minha obra é, eu não sou um pessimista, é uma das razões que faz com que eu seja pouco amado pela crítica, justamente porque não tenho este sentimento masoquista da vida a que eles são afeiçoados. É um livro otimista…”

O otimismo, a alegria de viver, a esperança vão contribuir com outro elemento que enxergo fundamental para o alcance do tema aqui tratado e diretamente vinculado ao sentido da obra de Jorge: “o encontro e a caracterização da identidade brasileira”. Tal identidade ele busca revelar, paulatinamente, em sua vasta obra, partindo do reconhecimento de caracteres que unem o povo brasileiro, particularmente o baiano: e ele o apresenta como um povo efusivo, generoso, jovial, de riso largo, sempre voltado para a festa, a dança, os cheiros e os sabores, capaz de transformar dores em risos. O aprofundamento dessa oposição, dores e risos, o levará, a partir de Gabriela, a inserir o humor em sua narrativa. Este aspecto acentua a ascensão ficcional do escritor e a capacidade de dar agora a sua obra um avesso, uma plurissignificação ainda não realizada de modo tão eloquente. O próprio Jorge, falando do humor, explica: …”é a capacidade de rir da besteira humana, da imbecilidade, e de condenar, por meio do riso, as injustiças, as feridas, toda a feiura, toda a ignomínia da vida numa sociedade desumana”.

Alcança-se, então, uma nova leitura da obra do escritor baiano, vendo-a essencialmente comprometida com a caracterização de um povo, de uma gente, de suas histórias, de sua história e, num conceito mais elástico, de uma civilização: a civilização do cacau, violenta e sofrida e a civilização da Salvador da Bahia. A Salvador daqueles menos favorecidos: os malandros, os marinheiros, os meninos de rua, os moradores do cais, os pescadores, as prostitutas, o “povo de santo”, a gente do povo, enfim.

Assim, mais uma vez, valho-me do próprio Jorge para comprovar o aqui revelado: ”… O Brasil é um país muito especial, muito… específico, por sua mistura de raças. Aqui se deu um fenômeno extraordinário: tudo que nos trouxeram os negros… A cultura negra nos deu um caráter diferente, um caráter quase feérico… O sentido da festa, os ritmos do nosso carnaval… O povo do Brasil é um povo extraordinário que luta, não perde a esperança, segue em frente na pior das condições.”

Ao lermos alguns manuscritos de Jorge, o Jorge crítico literário, o Jorge historiador, o Jorge misto de historiador e antropólogo, que muitos estudiosos desconhecem, percebemos claramente essa intenção do autor de Gabriela: caracterizar sua gente, o povo baiano, que ele tanto amou. A acadêmica Ilana Goldstein, em sua tese de doutoramento O Brasil Best Seller de Jorge Amado, diz:

“Ao fazer um balanço dos muitos manuscritos em que Jorge Amado faz o papel de crítico de arte ou crítico literário, percebe-se que, em geral, seu critério de julgamento ao analisar uma obra é o grau de baianidade e brasilidade das obras em questão. Ele valoriza artistas e intelectuais que se reapropriam da cultura popular, (…) por causa da “mistura de sangues.” A partir da Bahia –o “coração do Brasil”, por Jorge Amado- emergem representações da identidade nacional brasileira: seríamos uma nação mestiça na qual as contribuições mais importantes viriam dos africanos e portugueses; um país em que os artistas se aproximam do povo e onde a cultura popular “penetra pelos cinco sentidos”; nosso povo seria resistente e otimista, a alegria vencendo a tristeza”.

A preocupação e intenção de Amado com essa representação da identidade em sua obra é tal que se pode comprová-la, até mesmo, no trato dado à língua e nos temas ligados ao sincretismo religioso, este, aliás, sempre enfático em Jorge Amado. Num discurso de agradecimento, ao receber o título de doutor honoris causa, em Lyon, na França, ele proferiu: “… nós nascemos num grande leito de amor, onde as raças se cruzaram e se misturaram”. E ele não está a falar aí apenas da mistura “das três matrizes básicas da nossa nacionalidade” (o português, o africano e o indígena), mas referia-se, também, ao fato de elas terem se somado, no decorrer do tempo, “a imigrantes japoneses, semitas, eslavos, latinos, e anglo-saxões, num duro processo que prossegue e se amplia (…), uma civilização mestiça, novidade no mundo. ”A presença dos libaneses e sírios, por exemplo, na comunidade da civilização do cacau, é vista com a extrema simpatia do autor, como se vê através do personagem Nacib. Na verdade, Nacib e Gabriela são os protagonistas da obra Gabriela, Cravo e Canela. Jorge Amado sempre reiterou que esse romance era a história de amor do turco Nacib e da mulata Gabriela. Nós, pobres leitores enxergamos ali tantas e tantas coisas…

Gostaria de frisar, ainda, que Jorge Amado, em sua consciência de escritor missionário e também visionário, como dele é dito, tornou-se o antropólogo e historiador de sua gente. Apaixonado pela Bahia, em seus manuscritos ele conta a fundação da cidade de Salvador da Bahia, alternando versão de natureza factual, histórica e versão de natureza mítica. Quero demonstrar, com essa alusão, que a “verdade” da obra de Jorge, de sua ficção, é uma verdade que extrapola o nível do realismo no que comumente o enquadram, para ser o porta-voz da alma, dos costumes, das tradições e das crenças de uma gente especial, que se fez a partir de uma cultura branca, europeia (o português), da religiosidade cristã e de uma cultura negra, da riqueza de seus orixás, preferencialmente, e que depois se alargou, se enriqueceu, em função dos imigrantes aqui chegados. Dessa forma, uma base antropológica serve de assento, intencionalmente, à obra amadeana.

Assim, ouso afirmar que Amado, longe de enxergar o homem através de um estreitismo ideológico, no que estaria ligado aos postulados marxistas, presentes no início de sua obra, o vê em sua condição de ser social, por uma ótica antropológica também, como acabamos de sinalizar, entendendo-o em sua complexidade humana, existencial e racial, fugindo a um determinismo redutor. Vê-se nos personagens criados, assim como na visão do narrador, a expressão de uma certeza maior: a de que os seres humanos não precisam apenas de pão, de casa, de bens materiais que os sustentem e protejam, mas necessitam da alegria, da festa, da bondade, da amizade, da generosidade, do amor, enfim. E, acima de tudo, precisam ser livres para pensar e fazer escolhas. Pensar é transgredir e na transgressão está a força dos personagens amadeanos. E, em razão de tudo isso, a presença da poesia e da magia se instala em Jorge Amado, envolvendo a obra e os seres que a habitam. Essa poesia está impressa na beleza que Jorge confere aos seus personagens, na ternura com que os trata. E, aí, destacam-se os papéis femininos. Mesmo em romances em que os personagens são construídos a partir de um contexto de brutal violência, como é o caso de Tereza Batista, os sentimentos bons e puros continuam latentes e resgatam sua personagem. Tereza opta pela vida e pela esperança através do filho desejado.

Dessa forma, Jorge ergue sua multidão de seres, envolvendo-os num halo de fantasia, algumas vezes, magia e heroísmo, num processo que lembra o realismo fantástico. No entanto, e pode parecer paradoxal, em face da precariedade de suas vidas, na visão do criador, eles são, antes de tudo, humanos: vítimas ou algozes, oprimidos ou opressores, mas, sempre, capazes de sofrer, sentir, chorar, amar, alegrar-se e ter confiança no futuro.

Desaguamos, então, no questionamento óbvio: é Jorge Amado um humanista?O escritor que criou os cruéis e temidos coronéis do cacau- aqueles que construíram uma civilização adubada com sangue- o romancista que cantou prostitutas e vagabundos, que demonstrou o outro lado das histórias de heroísmo das tocaias grandes… É ele um humanista?

Teríamos que indagar, inicialmente: que é ser um humanista?Que é o humanismo, então?Numa acepção bem simplificada, humanismo seria a corrente filosófica que estuda a ética e a natureza humana, entretanto, várias outras acepções são comumente conhecidas: o termo tornou-se corriqueiro no campo dos estudos estéticos e literários, vez que rotulou todo o movimento literário e intelectual do Renascimento (Séculos XV e XVI). Tal movimento teve sua inspiração no mundo greco-romano, numa visão filosófica segundo a qual o homem era o centro de todas as coisas. Daí a denominação “humanismo” para essa concepção do mundo e do homem. Como decorrência, humanista é o seguidor do “humanismo”. Aprofundamentos sobre o tema nos levariam a várias correntes e classificações do humanismo (marxista, cigiloso, renascentista, positivista contiano, logosófico e universalista, para alguns), mas não me parece necessário discuti-los neste instante.

Desvinculando-se o termo dos rigores clássicos, ou mesmo de uma conotação de natureza estritamente estética, ele ganhou foros mais livres e amplos e passou a qualificar pessoas preocupadas fundamentalmente com a felicidade do ser humano, com aqueles elementos que lhe conferem humanidade, particularmente os sentimentos, as fraquezas e grandezas de sua condição. O conceito se estende, ainda, a todos aqueles que acreditam que a jornada do homem sobre a terra deve constituir-se na busca de valores que elevem essa condição humana, tornando a sociedade dos homens uma sociedade mais justa, mais feliz, mais igualitária. São aqueles que creem no bem, nos valores humanos: na generosidade, na alegria e no amor. São os que creem, trabalham e lutam por um mundo melhor.

Para mim, está vividamente clara essa intenção e esse propósito em Jorge Amado. Aliás, é o próprio Jorge que diz: “… hoje tenho a impressão de que o mais importante em minha obra é o humanismo, a relação com o homem, o criador da humanidade.” Por isso, falando de Charles Chaplin, o maravilhoso cineasta inglês, criador do imortal Carlito, o doce palhaço, Jorge afirma:…”mais do que qualquer outro artista do nosso tempo, Chaplin contribuiu para o melhoramento da humanidade.” Falando sobre um chamado humanismo brasileiro, afirmou Jorge, em um dos seus manuscritos: “… é a luta contra o preconceito, o ódio e o racismo. A apartheid é o anti-humanismo, pois que separação extrema entre as etnias; o povo brasileiro representa o verdadeiro humanismo, os sentimentos mais nobres e profundos, por se originar na fusão interétnica, portanto plena de amor e tolerância”.

Literalmente consciente, pois, de sua missão de romancista, de usar sua palavra a serviço de um mundo mais belo, Jorge ainda afirma: “(…) O romance é uma história que se conta. A história de um indivíduo, uma classe, um lugar, um grupo de pessoas, um casal, um louco, um filósofo, um guardador de porcos, não importa, mas é uma história de algo ou de alguém, de fatos, individuais ou coletivos, uma história que se conta a partir do que se sabe sobre o ser humano. É o que penso.” Indiscutível, pois, a preocupação de Amado com a natureza do ser humano, vendo-o como o grande centro de todas as coisas e de sua própria história.

Acredito estar imaculadamente clara, em todos os seus romances, a paixão de Jorge pelo ser humano. Por isso, ele quis cantá-lo em suas dores e sofrimentos, em suas lutas e superações, em suas alegrias e amores, em seus erros e em suas virtudes. Sem julgá-lo ou condená-lo. Apenas, compreendendo-o em sua humanidade. Essa paixão pelo homem, por sua liberdade, pela bondade, pela amizade e lealdade fez dele um apologista da igualdade de crenças, do respeito à individualidade, da compaixão ante o sofrimento, ante os abandonados e esquecidos.

Creio, portanto, e gostaria de enfatizar esta afirmação, que mais importante do que estudar a obra de Jorge Amado pela urdidura ficcional apenas, ou pelo pitoresco e dramático de suas histórias, será obrigatório desvelá-lo, ainda mais, naquilo que ele tem de mais grandioso, a meu ver: a sua mensagem de um novo tempo, de um tempo de respeito a cada pessoa, independente de suas crenças, de seus papéis sociais.

Vivemos num pais, infelizmente, ainda indiscutivelmente violento, no qual, inclusive, a violência parece banalizar-se. Vivemos num estado violento, a Bahia. Vivem todos aqui, em Itabuna, numa das cidades mais violentas do Brasil, em sua faixa populacional. Imprescindível, pois, ler Jorge e acreditar, como ele, num tempo melhor, a partir do que cada um pode fazer. Então, fecho esta conversa, voltando à minha citação inicial, retomando as palavras do crítico citado, Rodrigues Nery- lembram-se?- falando da obra de Jorge e que me parecem tão atuais em sua sabedoria:

“Sua literatura é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Otimistas e esperançosos à moda de Amado, poderemos, talvez, dizer agora, parodiando o próprio Nery: Um povo que não desiste de se encontrar, mas com muito, muito, muito ainda por fazer!

Obrigada a todos!

Margarida Cordeiro Fahel

Professora Titular de Literatura Brasileira (Aposentada) da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC.

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COMENDA SÃO JORGE DOS ILHÉUS- Tica Simões

Discurso de Tica Simões no recebimento da Comenda São Jorge dos Ilhéus, em 28 de junho 2018.

E uma honra receber a Comenda de São Jorge dos Ilhéus, a mais alta condecoração do Município, neste dia do seu aniversário. Agradeço a indicação do meu nome pela Secretaria Municipal da Cultura, na pessoa do Sr. Pawlo Cidade e o seu acolhimento, pelo Governo Municipal, através do seu Prefeito, Sr. Mário Alexandre Correia de Souza.

Como é sabido, sou nascida em Salvador, mas tornei-me grapiúna por escolha, desde 1964. Nessas terras do cacau, casei com Henrique Simões, tive dois filhos e netas (e ali está a minha netinha Juliana). E ganhei mais uma preciosa família, em Itabuna.  Na Universidade Estadual de Santa Cruz, vivi a maior parte da  minha vida. Tenho a felicidade de dizer que fiz parte do grupo fundador daquela instituição ao lado de tantos valentes idealistas, como a sua primeira reitora eleita Renee A Nogueira, aqui presente. Ali fiz pesquisa, ensino e extensão.

Henrique e eu elegemos Ilhéus como lugar para viver: por sua história, sua beleza, sua gente amiga.
A proximidade dos 500 anos de Ilhéus fez com que nos juntássemos àqueles que têm o olhar voltado para o futuro deste município, que queremos promissor. Nesse sentido, enquanto integrante de um grupo que visa a contribuir para uma Ilhéus cidadã – a Agenda 34 – , tenho publicado algumas reflexões. E aqui, pela oportunidade, volto à pergunta que sempre se impõe: Que Ilhéus queremos e teremos em 2034?

Esta solenidade, sem dúvida, significa a valorização pública de atos de cidadania.  Aproveito, então, a oportunidade para, dentre as várias reflexões possíveis sobre o tema, focando a minha área de ação, rapidamente, ressaltar a importância de políticas culturais que conduzam à realização de ações de educação e cultura, através do desenvolvimento sustentável.
È um desafio e uma grande responsabilidade pensar a cultura, considerando  a sua importância para o desenvolvimento deste Município.
Dizendo isso, quero ressaltar a diferença desta cidade devido à sua singularidade: ser situada na biosfera berço do Brasil; possuir rica expressão histórica, artística e literária; e estar num litoral de beleza singular e de especial atrativo turístico.

Ao pensar na relação entre cultura e ações públicas, penso uma política que enfatize o ponto de vista local sobre a mundialização dos fluxos culturais, recorrendo a diferentes saberes. Também penso em ações que valorizem e abarquem a formação de memórias, a constituição de identidades e a representação cotidiana de sujeitos urdidos pelas interações simbólico-comunicativas. Tenho em conta o perfil deste Município, em consideração de espaços de mediações como, por exemplo, a cultura e o turismo; portanto, entendo empreendimentos que, embora considerando o mercado, não submetam a cultura ao turismo massivo.

Essas rápidas ideias visam somente suscitar reflexão sobre ações que, garantindo a cidadania, alcancem os 500 anos do Município de Ilhéus. A reflexão quer manifestar uma expectativa otimista; e a ideia é muito mais relacionada ao tipo da gestão, ao jeito do caminhar…

Esta medalha que agora recebo, e agradeço, significa para mim compromisso e laço com esta encantadora cidade.
Obrigada.

Tica Simões
Ilhéus, junho de 2018.

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JOÃO UBALDO RIBEIRO: UMA REFERÊNCIA- Sione Porto

Por Sione Porto

Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos. (Trecho do discurso de posse na Academia Baiana de Letras).

À exceção de Nélson Rodrigues, Fernando Sabino e Millôr Fernandes, o escritor e jornalista João Ubaldo Ribeiro foi um dos maiores cronistas, crítico/sátiro, da literatura brasileira.

Não queria ser lembrado com um mito, e sim companheiro de pessoas comuns e humildes, a exemplo dos velhos conhecidos com que se encontrava nas manhãs ensolaradas e nas tardes amenas na Ilha de Itaparica, Bahia, onde nasceu em 23 de janeiro de 1941, local em que se refugiava nas férias de janeiro e ali escreveu boa parte de uma das mais importantes obras: Viva o povo brasileiro (1984), considerada obra máxima, um clássico da literatura, romance histórico, conteúdo da ocupação portuguesa – Estado Novo e a Ditadura, trama passada também em outros cenários como o Rio de Janeiro, São Paulo e Lisboa, no período de 1647 a 1977.

Era comum ver o mago literário João Ubaldo Ribeiro no bar e restaurante Tio Sam, no Leblon, tomando o seu chope em tulipa, onde jogava fora conversa fiada e distraída, com velhos conhecidos daquele bairro carioca, onde residia, e seus admiradores, sempre solícito, com seu vasto bigode já grisalho e sorriso largo, idêntico ao seu pai, o ilustre professor Manoel Ribeiro, sempre aos sábados, domingos e feriados.

A influência do cotidiano brasileiro e do sociopolítico foi retratada em toda sua vasta produção literária, deixando um legado inexorável para os amantes da literatura e estudantes que tentam ingressar nas universidades brasileiras – uma referência.

O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro revolucionou a literatura, com seu jeito crítico, sátiro, espirituoso, social e jornalístico.

O seu grande saber jurídico foi adquirido através do incentivo do seu pai Manoel Ribeiro, o qual era advogado, professor, jurista, político (deputado estadual em Sergipe, vereador e procurador de Salvador), além de ter feito parte da cúpula da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado baiano.

Não obstante bacharel em Direito, João Ubaldo lecionou Ciências Políticas em Salvador (BA), mas não quis seguir carreira de advogado, como o pai e o irmão Manoel Ribeiro Filho, renunciando a tudo para se tornar um escritor.

Multifacetado, amante da liberdade e das coisas simples, obteve sucesso, tornando-se um grande romancista, além de escrever livros infantis, com sabedoria e ironia, estilo singular, encontrando também em sua obra o lado lírico, telúrico e pornográfico, como no romance A casa dos budas ditosos, publicado em 1999, que inclusive foi proibido em alguns estabelecimentos.

Conheci indiretamente João Ubaldo Ribeiro através de seu pai Manoel Ribeiro, quando tive a honra de ser sua aluna, em 1980, no curso de Direito Administrativo da UCSAL (Universidade Católica de Salvador). Embora mestre rígido, exigente e sério, apresentava um humor inigualável, causando uma empatia mútua entre professor e aluna.

Criado esse elo carinhoso com o mestre Manoel Ribeiro, fumante inveterado e apreciador de um bom uísque, passamos a manter conversas sobre literatura, filosofia, economia e história, daí o seu desejo que eu viesse a conhecer o filho João Ubaldo, o qual teria afirmado o desejo de conhecer esta então estudante, a quem seu pai dedicara um carinho diferenciado, em razão de, com membro do Diretório Acadêmico da UCSAL, em 1979, termos lançado a coletânea de poema Poejusto, como também de lhe ter ofertado o meu primeiro livro editado, Mulher: poesias inéditas (1979), cujo prefácio foi do professor de Direito Internacional Público, seu conterrâneo Jayme Messeder de Suárez, exemplar esse que vi carregando várias vezes e ter me dito, pessoalmente, que o poema de folhas 29, tinha muita identificação com o seu pensamento, o que me deixou muito feliz e lisonjeada, com a certeza que está bem guardada em sua biblioteca.

Nas conversas entre aulas, aconselhava-me a seguir na carreira literária e me orientava ao hábito da leitura como aprendizado.

O desejo de Manoel Ribeiro em que eu conhecesse seu filho não foi realizado por outras circunstâncias, além de o mesmo morar em outro estado, com várias viagens pelo mundo afora. Todavia, como o destino tem os seus desígnios, através do encontro de Tadeu Ribeiro, sobrinho de João Ubaldo, com meu filho Maurício Pimenta, no Colégio Anchieta, pude manter contato com a família Ribeiro.

Traduzir João Ubaldo Ribeiro como cidadão comum é muito simples. Trabalhou na Prefeitura de Salvador como office-boy, até chegar à vaga da cadeira 34 na Academia Brasileira de Letras (ABL), antes ocupada por Carlos Alberto Castelo Branco.

Do mesmo modo, citar suas obras é perda de tempo, porque todos as conhecem. Mas vale destacar que muitas delas inspiraram outras artes como o cinema (Sargento Getúlio, 1983; Tieta do Agreste, 1996; Deus é brasileiro, 2003), a televisão (O sorriso do lagarto, 1991).

Todas e quaisquer homenagens ao grande escritor são justas, como as feitas no carnaval carioca, pela escola de samba Império da Tijuca, no desfile do ano de 1987, e o Bloco Areia, ano passado, além de lhe ser concedidos prêmios de tamanha importância, como o Prêmio Camões, em 2008.

Por tudo isso, Viva o povo brasileiro na pessoa de João Ubaldo Ribeiro, o grande, senão o maior brasileiro em seu gênero.

 

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A GRANDE ARAPUCA- Marcos Bandeira

A expressão “arapuca” ,segundo o dicionário Larouse Cultural origina-se do tupi e traduz “ armadilha para apanhar pássaros pequenos, formada por pauzinhos cada vez mais curtos, dispostos e amarrados em forma piramidial”. É assim – como passarinhos – que estão sendo tratados os motoristas que transitam em algumas vias da querida São Jorge dos Ilhéus, cidade belíssima que atrai a cada ano milhares de turistas de todo o Brasil, fascinados por sua prodigiosa história e pelos encantos proporcionados por suas paisagens e praias maravilhosas.

O texto de uma lei, consoante o entendimento do jurista Humberto Ávila não passa de um ponto de partida para que o intérprete construa a norma que vai incidir sobre determinado fato social. O consórcio entre o texto e contexto é que vai gerar a norma aplicável a determinado fato concreto . Com efeito, quando se trata de disciplinar o trânsito, impõe-se admitir que o legislador buscou teleologicamente a proteção e a segurança das pessoas, enfatizando o caráter preventivo da legislação, no sentido de aumentar a segurança no trânsito, promover a educação para o trânsito e assegurar a mobilidade e acessibilidade com segurança de todas as pessoas da comunidade. Logo, ao sancionar o infrator buscou a lei precipuamente fazê-lo refletir sobre o ato culposo ou doloso praticado, aplicando-lhe a multa ou outras sanções prevista na legislação de trânsito. Destarte, a sanção aplicada em decorrência da violação de alguma regra de trânsito deve ter o caráter retributivo – o infrator deve sofrer alguma restrição em seus direitos pelo mal praticado –, por exemplo, pagar a multa, e também deve ser revestido do caráter educativo e preventivo, para fazê-lo refletir e evitar que reincida, servindo de prevenção geral para os demais membros da comunidade, como a dizer, se alguém praticar fato similar sofrerá uma resposta coativa do Estado. Daí, porque em se tratando de leis de trânsito, muitas cidades no Brasil, antes de colocar em prática determinada regra de trânsito na cidade, promovem com certa antecedência uma campanha educativa de conscientização para os condutores de veículos, como está acontecendo atualmente em São Paulo, que está tentando conscientizar os condutores de veículos automotores da preferência que deve ser dispensada aos pedestres, quando estão atravessando a faixa branca nas ruas. Tudo isso constitui educação para o trânsito. Após o esgotamento da campanha educativa tem início a fiscalização rigorosa, todavia, antecedida de uma ampla mobilização de consciência da população. Assim, o resultado alvitrado pela lei certamente será alcançado, pois o objetivo não é punir por punir.

Na cidade de Ilhéus ocorre precisamente o contrário. Os motoristas, principalmente, turistas e oirundos de cidades vizinhas estão sendo surpreendidos pelas centenas de multas de trânsito que estão sendo autuadas pela Secretaria de Transporte do Município. O que chama a atenção é que centenas de pessoas estão sendo autuadas sem saber o motivo ou sem ter a sensação de que esteja infringindo algum dispositivo legal, ou seja, sem que tivesse agido com imprudência, imperícia ou negligência, muito menos com dolo em violar qualquer regra de trânsito, pois simplesmente são surpreendidos como passarinhos que caem inocentemente numa arapuca. Alguns deles, ao trafegar numa via que antecede a uma rodovia, onde 60 ou 70 km pode ser considerada uma velocidade razoável ou compatível com o trecho,entretanto, sem que houvesse sinalização suficiente ou adequada, são autuados porquanto uma placa “tímida” colocada estrategicamente bem próximo do “pardal” indica que a velocidade máxima não poderá ultrapassar 50km/h. Qual o sentido educativo de tais multas? A quem está servindo essas multas? A resposta é simples. Esse tipo de multa não tem qualquer caráter educativo e só contribui para afastar os turistas e pessoas de cidades vizinhas da cidade de Ilhéus. O objetivo é simples: arrecadar por arrecadar, punir por punir. Pode até servir imediatamente aos cofres do município, mas mediatamente poderá se transformar num desserviço á população ilheense e a todos que visitam ou passam por Ilhéus.

O que se observa é que o Estado policialesco tenta sobrepor-se ao Estado Democrático de Direito, no qual são assegurados aos cidadãos os direitos e garantias individuais. Não somos simples súditos de um Estado autoritário que passa como um rolo compressor sobre os direitos dos cidadãos. A nossa CF de 1988 estabelece no seu art. 5º que “ Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.O grito do cidadão Ilheense, Marcio Madureira, que colou no fundo de seu carro “ Visite Ilhéus e ganhe uma multa” não deve ser desprezado, pois ele representa a voz de centenas ou milhares de motoristas que caíram nessa arapuca que a Secretaria de Trânsito espalhou por Ilhéus, escondida em várias partes da cidade.

Na verdade, contra o arbítrio do Estado, termo aqui empregado na sua acepção lata -, compreendendo as várias esferas de poder – município, Estado, União e Distrito Federal -, cabe ao cidadão bater ás portas do Poder Judiciário para fazer valer os seus direitos. Pode-se adiantar que além da falta de sinalização adequada em alguns lugares, a autuação dessas multas padece de alguns vícios que ferem de morte o princípio da legalidade e da proporcionalidade. Portanto, se você está inserido nessa situação, tendo sido surpreendido por essa forma absurda e arbitrária de aplicação de multa, constitui um advogado ou se não reunir as condições mínimas para constituir um advogado sem prejuízo do sustento próprio ,procure a Defensoria Pública para fazer valer os seus direitos junto a Vara da Fazenda Pública de Ilhéus, competente para apreciar os pedidos de violação a direito individual perpetrada pelo Município Ilheense. O Poder Judiciário é a última trincheira que o cidadão dispõe contra a arbitrariedade do Estado. Não somos passarinhos para cairmos em arapuca, somos cidadãos e o município de Ilhéus deve respeitar esse direito fundamental, que nos diferencia como seres humanos.

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