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CHUVA DE JANEIRO – Cyro de Mattos

Depois que o marido faleceu perdeu o interesse pela vida. Vivera com ele trinta anos de casada e soubera que o calor do corpo aquece o amor. Quando se é idosa, a experiência de vida diz que esse calor do corpo some, ainda mais quando o seu homem já não está mais ao seu lado para consumar o ato mais prazeroso da vida.

Os dois filhos estavam casados, viviam no exterior. Ela morava em um apartamento de quarto e sala. Passava com a aposentadoria de professora estadual. Todos os dias seguia para a pensão onde fazia a refeição do almoço. Sentava em uma mesa reservada para ela no canto da sala.  Lá viu pela primeira vez o homem de cabelos brancos que olhava para ela. Tinha um brilho diferente nos olhos.  O olhar dele se repetiu nos outros dias, deixando-a sem jeito. Ficou assustada quando ele se levantou de sua mesa e pediu permissão para fazer-lhe companhia durante a refeição.

Disse que era um viúvo aposentado, fora funcionário do Banco do Brasil. Um dia convidou-a para passear no parque. A princípio relutou, mas diante da insistência dele outras vezes, resolveu aceitar o convite.  Conversaram sobre a vida, seus momentos entre o alegre e o triste, foram se tornando íntimos.  Num ponto concordaram, viver sozinho, sem ter ninguém como companhia, era ruim. Deram uma volta no jardim, sentaram no banco embaixo da árvore frondosa. Jogaram migalhas para os pombos e para os peixes na lagoa.

Na tarde fresca, um vento morno passava no rosto dela em finura de  lenço e leveza de carícia. Um casal de namorados, em cada beijo que sorvia nas bocas ávidas, revelava que a vida era boa e bela, assim no calor que se estendia por toda a extensão da pele só podia ser dado valor a ela. Ele fez questão de levá-la até o prédio onde ficava o apartamento dela. Na entrada do pequeno edifício olharam-se em silêncio antes de cada um querer dizer algo ao outro, que eles mesmos já sabiam o que era e que pulsava como uma chama que lampeja dentro. Talvez um convite para conhecer o apartamento de perto por ele. Convite dessa natureza seria impossível, embora houvesse no rosto de cada um deles o olhar cintilante de brilho.

          Ele disse:

– Muito obrigado.

Ela disse:

– Obrigada digo eu.

Despediram-se com leve aperto de mão.

Era janeiro e ainda não havia caído a chuva de verão.

Daquela vez quando terminaram de fazer o passeio pelo parque, ele a convidou para conhecer o apartamento dele. Era também um quarto e sala. Ela perguntou quem fazia a arrumação e o asseio. Respondeu que havia contratado uma faxineira. Vinha duas vezes na semana fazer a faxina. Notou que certas coisas não estavam no lugar devido. Fez a arrumação com esmero.  Limpou a poeira na mesa e nas duas cadeiras. Deu brilho em alguns objetos domésticos. Um pouco cansada foi tomar um banho no chuveiro de água quente. Vestiu o roupão que pertenceu a ex-mulher dele.

Ela sorriu quando ouviu o convite para ir se deitar com ele.

Então vieram os primeiros beijos. O ato para que alcançasse o auge exigia concentração e esforço. E aconteceu o máximo quando o prazer de ambos ao mesmo tempo precipitou a vertigem. Souberam que ainda restavam um pouco neles daquilo que motiva a vida. Era preciso de agora em diante aproveitar bem antes que não restasse mais nada. Foram alguns anos de convívio harmonioso, decorrente da união sem atrito entre o espírito e o corpo, que acordava rejuvenescido, embora no estado de fuga repentina em cada vez que o ato se consumava dentro algo precioso ia ficando longe nos seus contornos definidos.

Quando ocorreu aquela primeira vez em que dormiram juntos, ela lembrava agora, acordou no final da tarde. Movimentou-se no quarto com cuidado, não queria interromper o sono tranquilo dele. Foi até a janela.

 E, cheia de vida, ficou olhando cair pelo vidro a chuva de verão.

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ALB abre homenagens à Semana de Arte Moderna.

O evento promove noite de palestras, poesia, música e mostra de artes visuais para celebrar o centenário da Semana de 22.

O novo projeto da Academia de Letras da Bahia, em homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna, acontecerá em duas noites, com convidados e participação do público. A primeira noite terá a coordenação da acadêmica Heloísa Prazeres e a segunda, no dia 12 de fevereiro, terá à frente o dramaturgo Gil Vicente Tavares. O evento online será no próximo sábado, 05 DE FEVEREIRO, às 19 horas, no canal da ALB no YouTube.

O encontro deste sábado será coordenado pela acadêmica Heloísa Prazeres, que, em nome da Academia, convidou as acadêmicas Edilene Matos e Lia Robatto e os acadêmicos Aleilton Fonseca e Ruy Espinheira Filho para palestras sobre poetas modernistas e um depoimento sobre espetáculos de dança. Do recital poético participam Consuelo Mascarenhas, Rita Santana, José Inácio, Wesley Correia e Thiago Pondé. Será exibido um vídeo clipe regido remotamente pelo músico e compositor Marcelo Delacroix, responsável pelo Grupo de Canto Sol de Si.

O público que irá acompanhar o programa do selo Sarau Poético, poderá fazer inscrição no link que será divulgado durante a transmissão; a pessoa inscrita receberá um e-mail com o link para participar. “Diante da nova escalada da Covid-19, é importante continuar com os eventos online para conter a propagação da variante, a celebração poético-literária foi concebida como uma forma de proporcionar informação artístico-cultural interativa com o público”, pontua Heloísa Prazeres, organizadora da primeira noite.

O selo Sarau Poético faz parte das iniciativas da Academia de Letras da Bahia na criação de eventos que promovem a aproximação das letras, das culturas e das artes com a sociedade. O projeto tem apoio financeiro do Governo do Estado, através do Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura da Bahia.

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COLO-COLO: UMA LIÇÃO INESQUECÍVEL! Por Marcos Bandeira

 

O Colo Colo nasceu de um sonho de idealistas que buscaram inspiração no time chileno com o mesmo nome e nas cores do Boca Junior, um dos times mais apaixonantes da Argentina. A saga de vencedor que seu hino entoa brotou do coração de todos aqueles que lutaram e construíram sua história nos gramados baianos.

Fundado em 1948, sagrou-se campeão baiano de profissionais no dia 28 de maio de 2006 no Barradão, contra o poderoso Vitória. A cada jogo do Colo Colo naquele campeonato, irradiava-se a vibração de seus atletas, a emoção da torcida, a esperança de uma boa participação e ao mesmo tempo a sensação experimentada por alguns de que o time já teria chegado longe demais.

É de louvar-se naquele campeonato a inesquecível habilidade e o compromisso do presidente José Maria Almeida de Santana, o Joseph Marie, que diante de gritantes adversidades soube liderar e construir um elenco de vencedores: a sua determinação, competência e paixão conquistaram a confiança de seus atletas com pequenos e significativos gestos, quando por exemplo, ofereceu um Natal digno aos jogadores que mesmo possuindo vínculo com o clube, ainda não recebiam salários.

Grandiosa foi a sua liderança ante o desalento dos atletas após uma cansativa viagem de ôni

bus quando sofreram uma derrota, substituindo um sermão por um churrasco, no propósito de fortalecer os laços daquela família de vencedores e transformando o time bom num time campeão. Inesquecíveis, a tranquilidade de Marcelo e suas portentosas defesas, a eficiência dos laterais Alexandro e Wescley nos aspectos defensivo e ofensivo, a qualidade técnica do zagueiro Rodrigo, a consistência de Sandro e Melqui na frente da zaga, a regularidade de Juninho, o talento de Jânio com seus dribles curtos e chutes de fora da área, a maturação de Gil, responsável pela maioria das articulações das jogadas e por vários gols de bola parada, a versatilidade de Jamaica e o encantamento do futebol de Ednei, artilheiro nato, que partia para o zagueiro, no estilo “Romário” dos bons tempos e que tinha como poucos, a tranquilidade necessária diante do arqueiro e qualidade apurada no arremate final.

Sem dúvida, o maestro Ferreira foi o melhor técnico da Bahia na época: pessoa simples, educada, estrategista e líder, sempre teve o time na mão, fazendo as correções no intervalo do primeiro para o segundo tempo e as alterações no momento certo e com a pessoa certa. A cada vitória, a cada avanço na tabela de classificação, o resgate da autoestima dos ilheenses carentes de uma grande conquista manifestada por sua frenética torcida utilizando bandeiras e camisas, transformou-se numa verdadeira “febre amarela ilheense”.

Mesmo apresentando um excelente futebol e tendo conquistado o 1º turno no Barradão contra o Vitória, o Colo Colo sempre foi visto com desconfiança por alguns jornalistas da capital, os quais, indiferentes, se referiam ao Vitória como o melhor time do campeonato e que a conquista do Colo Colo teria sido um acidente. Também a arrogância, a inquietude e a prepotência do técnico Arturzinho do Vitória contrastavam com a humildade, simplicidade, serenidade e competência do técnico Ferreira que enfrentou o Vitória por seis vezes e não perdeu nenhuma partida, ganhando três, duas delas na própria casa do adversário e conquistando títulos.

Aquela conquista do Colo Colo sob a liderança do grande técnico e o empenho incondicional de cada atleta servem até hoje como uma lição inesquecível a ser aplicada em qualquer atividade humana em grupo ou individual, pois a vitória final será sempre o resultado das perdas e ganhos das batalhas travadas ao longo de uma jornada: é preciso planejar, ter espírito de união, acreditar em si próprio, aglutinar forças em torno de um objetivo comum, liderar sem precisar utilizar o poder desmesuradamente, olhar além do horizonte, ter olhos de tigre, perseverar, respeitar o adversário sem se apequenar, ter serenidade para superar as adversidades mesmo que tudo pareça perdido e acima de tudo saber perder, pois a vida é feita de perdas e ganhos.

A conquista do Colo Colo no campeonato baiano de 2006 não foi somente de Ilhéus, mas de todo o interior da Bahia, por fazer acreditar que se pode construir uma equipe vencedora. Na verdade, essa conquista poderia servir de lição ao Bahia e ao próprio Vitória, pois assim, sem escamotear seus verdadeiros estágios, fariam seus dirigentes refletirem e repensarem seus projetos e reestruturarem seus elencos para retornarem à 1ª Divisão do Campeonato Brasileiro.

Grande admirador do Colo Colo e acompanhando quase todos os jogos, experimentei grandes emoções percebendo gradativamente a evolução da equipe e testemunhando o triunfo definitivo do time contra o Esporte Clube Vitória ao sagrar-se campeão baiano de 2006 no Barradão. Naquele dia glorioso, a convite do presidente da Federação Baiana de Futebol, tive acesso ao gramado do famoso estádio, dando a volta olímpica com a equipe do Colo Colo.

Ex-atleta do Colo Colo, aprendi a grande e inesquecível lição cravada na memória e na história do clube: um campeão não se faz de véspera e nem ocorre por acidente, como admitiu depois, o próprio técnico do Vitória, mas se constrói com muita luta, união, abnegação, respeito, competência, perseverança, simplicidade e serenidade. Aprendi que é preciso tempo para se formar uma equipe e que esta precisa de um líder que motive e incentive seus comandados extraindo o que de melhor cada um deles possa oferecer na certeza de que não há vitória sem luta, perseverança, humildade e respeito ao adversário, requisitos indispensáveis a um grande campeão.

*Marcos Bandeira – Juiz de Direito aposentado, advogado, professor de Direito da UESC, membro da Academia de Letras de Itabuna e ex-jogador de futebol do Colo Colo

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ELZA SOARES- Cyro de Mattos

Morre Elza Soares aos 91 anos

            Arrebatava a plateia com seu ritmo musical diferente, que arranhava a garganta e brincava com o som. Vi de perto em minha juventude quando deu um show de espetáculo cantante ao se exibir com uma voz esplendorosa no Cine Teatro Itabuna e no Clube Social de Itabuna. Sua voz era puro jazz na garganta inflamada, no melhor proveito, improviso e efeito. Uma desordem musical causando harmonia impetuosa e prazerosa.

            Uma mulher negra, que veio da pobreza, na favela com a lata d’água na cabeça, no morro ainda adolescente subia e descia, não se cansava, noite e dia.  Em condições precárias cantava para enganar a difícil dureza da vida e foi se descobrindo com uma entonação musical que só ela tinha, cheia de malabarismos vocais.

            Voz das vozes, flor do samba que expandia alegria para quem a ouvisse, contagiando a todos com aquele timbre musical forte. E assim com seu jeito de cantar versátil ganhou o mundo, nos lugares mais distantes mostrou que o Brasil é grande quando beneficiado com criaturas como Elza e outras do mesmo naipe.

            Que mulher incrível com sua entonação musical! Eu só acreditava porque estava vendo, como era que ela fazia aquilo com a voz? Só podia ganhar o mundo, com indiscutíveis méritos e receber os beijos merecidos da glória.

            Trouxe no coração Garrincha, o gênio de pernas tortas, a alegria do povo com os seus dribles incríveis. Quando o craque já não mais valia para o futebol, como mulher corajosa deixou que se fosse no jogo adverso da vida. Amparou seu menino grande, aquecendo o corpo do campeão mundial de futebol com a febre do amor, adoçando o seu coração quando o sentia com a cor triste da manhã e a incerteza da noite.

            Notável exemplo de vida. Acredito que tenha ido para o lado de lá, na sua viagem sem volta, cantando e sambando. Levou Elza, na sua chegada do lado de lá, meu beijo gravado no lado de cá quando eu a ouvia cantar e ficava com uma vontade assanhada para sambar. Não somente eu, mas quem gostasse de viver com o ritmo delirante do samba.

Elza Soares morre aos 91 anos; cantora faleceu de causas naturais
*Cyro de Mattos é escritor e poeta, premiado no Brasil e exterior.

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TRÊS POEMAS DA LUA- Cyro de Mattos

Moça bela

Em luares de relva
Na rede embala-me
Nudez tão pura.
Bafeja meu rosto,
Veste-me de sonho.
Para o céu me leva
No colo que flutua

Lua, ó lua,
Moça bela,
Toda nua.

O menino e a lua

O menino sonha com a lua
acima da nuvem escura
fazendo descer para o rio
uma comprida luaranha.

O menino sonha com a lua
no céu de estrelas, cintilante,
aquele pedaço da frente
ele abocanhou na crescente.

O menino sonha com a lua
chamando-o pra brincar no areal
deixado pela grande enchente.

Lá ele cata muita prata,
depois é levado pro céu
no colo da lua risonha.

A cidade e a lua

Toda ela iluminada
flutua no colo da lua
que lhe trouxe rosas.

Ó encantos! Ó perfeições!
Carícia e frêmito de sonho.
Suspiros de ternura.

Brilha cantiga da beleza,
a cidade no eterno pervaga,
perfumes a noite exala.

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SOBRE “A SOMBRA NO ESPELHO” O SECRETO ARQUIVO DE ENIGMAS- Tica Simões

 Sobre

A SOMBRA NO ESPELHO

O secreto arquivo de enigmas

O olhar de Tica Simões

Um livro para leitores curiosos…

Esta obra sobre afrodescendência intriga especialmente pela repetição especular que ocorre na estória e a multiplicidade de focos do discurso. A estória, em abismo, contém outras narrativas dentro de si, provocando a reflexividade literária. O discurso faz narrador dentro de narrador, um gestando o outro. O engendramento ficcional autotextual[1], enquanto reduplicação interna, se resolve em processo de  mise en abyme[2]: “um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos”[3].   Embora possa se configurar somente no nível do enunciado, esse processo em abismo pode ocorrer, de forma mais complexa,  abrangendo a enunciação, como é o caso deste livro de Ruy Póvoas. Por que utilizar estórias dentro de estórias? E vários focos de discurso? Qual a intenção do autor?  Como ele se beneficia disso para a produção do texto literário?  São perguntas (enigmas?) a serem respondidas (ou não) no caminhar da leitura…

A estratégia em abismo é insinuada desde o título, A sombra no espelho. Que sombra? Por que espelho? Uma identidade cindida? Ou uma chamada para narciso? E o narciso seria o personagem ou o autor? Mas qual autor? Já, aí, um abismo anunciando uma questão de estrutura. Será a intenção de RP criar um jogo capaz de produzir, no leitor, uma sensação de estar entre espelhos, contemplando suas inúmeras reflexões? Ou faces?? Se o título sugere o olhar  a si mesmo, “a circunstância do não dito”, a epígrafe Orixá metá  aponta crença. E o subtítulo – O Secreto arquivo de enigmas –  anuncia um jogo interminável de “segredos” a descobrir? Prevê abismos contidos no secreto arquivo  a ser relatado? A primeira epígrafe já promove a dúvida: “o que se diz nem sempre é tão importante”.

Em sintonia, os paratextos: agradecimentos, dedicatória, epígrafes abrangem as  áreas ligadas à busca de si mesmo, da análise do discurso e do religioso nagô.

Ruy Póvoas apresenta o livro, circulando entre o real e o imaginado. Fala da condição do povo nagô, com olhar sobre o social. Enquanto apresentador, diz que são quatro os narradores ficcionais:  Alcina, enquanto organizadora do texto; Ranieri, autor da estória; Marcelo, personagem/narrador; o Marotti, editor. Autotexto de enunciação, portanto. São, pois, esses narradores-personagens que promovem os abismos do discurso. Ao final da sua apresentação, RP instala dúvida no leitor, quando inverte o preceito e diz: “qualquer semelhança com a realidade será a vida  imitando a arte”.  Será isso o primeiro Enigma a desvendar?

Embora semelhando paratextos, “Três bilhetes” são falas de personagens; iniciam o processo ficcional. O primeiro bilhete é de Alcina que envia o livro do marido Ranieri para a publicação pelo editor Marotti.  O segundo e terceiro bilhetes são de Marotti,  para Luisa,  revisora do texto; e para Alcina, em resposta.  E por que um editor-personagem? Esses três bilhetes, então, promovem abismo de enunciação, chave dessa trama autotextual do afrodescendente Marcelo.

Em “Missão executada”,  prefácio ficcional, Alcina esclarece a história do manuscrito do marido. E conta como tratou todo o material recebido.  Fazendo isso, Alcina não se torna coautora? Afinal, como ela afirma, recebeu um material que “era uma verdadeira barafunda” e o organizou a seu critério e deu corpo ao texto! E o leitor pode-se perguntar: nesse trabalho, Alcina não terá dado uma especial base tonal ao texto?  Terá se imiscuído, dessa forma, no discurso da narrativa de Ranieri? E  outro possível enigma: O texto de Ranieri será autoficção?  As insinuações de Alcina alertam o leitor a se questionar sobre o discurso; de quem é o ponto de vista narrativo? Então, será todo o texto construído a partir de dúvidas?  Enigmas?

Ao assumir a narrativa (capítuloRompimento”), Ranieri já velho, mudado, relembra a infância e resolve criar Marcelo, a sombra no espelho, que assume o relato e fala para um bem-te-vi morto.  Morto o passado??

Entre vivências e sonhos (capítulos deSonho” ao “Chamado”),  Marcelo relata a busca de si mesmo, através dos vários processos terapêuticos. Inicialmente, devido à incompreensão sobre a sua condição mental; e o seu percurso, vida: doenças, psiquiatras…  Depois, leitura de búzios, astrologia, psicologia analítica, interpretação de sonhos… Serão autotextos da “sombra” de Ranieri?  O capítulo “Chamado” finaliza o arquivo de Ranieri, com a conclusão da narrativa de Marcelo que, finalmente, assume a sua religiosidade nagô. Fica, para o leitor, a compreensão da identidade, na solução da cisão da personalidade: luz e sombra.

A circularidade do texto leva o leitor de volta a Ranieri ou ao autor Ruy Póvoas, agora Babalorixá? A vida imitando a arte ou a arte imitando a vida? E aqui lembro as palavras de Mia Couto, na live de 20/5/2020, sobre os seus personagens: “sou sempre eu, alguma face de mim”.

Mas não acaba aí o texto ficcional; termina a estória, mas não termina a ficção. Alcina retoma a narrativa, em “Elegia”, provocando outros questionamentos ou…  abrindo, mais, o secreto arquivo de enigmas? Enigma 1: um livro é como um filho – a arte faz permanecer depois de morto. Enigma 2: a dubiedade de uma personalidade: ser um, sendo outro.

Enigma 3: entendimento da sombra; as “estranhezas” de Marcelo; o percurso dos vários caminhos; personalidade cindida ou uma questão espiritual?  Enigma 4: “Creio-te vivo, e morta te pranteio” –  o enigma maior:  vida e morte.

Os enigmas do discurso estão no texto integral de Ruy Póvoas: uma narrativa dentro da outra; um narrador puxado pelo anterior…

A mudança de Alcina, no primeiro texto confusa, buscando vencer uma sua lacuna de possível incompetência; no final, vitoriosa, tranquila, seria também um resgate do feminino, através da mãe de Marcelo, coitada, sempre culpada de tudo…  Porém, no fim, com a vitória de Marcelo, reconhecida e resgatada? Seria mais um enigma ligado ao feminino?

E mais: Ruy Póvoas cria personagens agnósticos (como também aconteceu no seu livro A Viagem de Orixalá) como forma de justificar e explicar os estudos de religião de matriz africana? São muitas as questões. E a enunciação, em discurso múltiplo, sustenta os enigmas: Ruy Póvoas, Alcina, Ranieri,  Marcelo, Marotti. ­­ Esses, apenas alguns dos abismos …  A circularidade discursiva insinua o eterno recomeço.

Se a principal razão da narrativa em abismo é traçar paralelos com a estória principal, cada camada pode ser encarada como uma releitura, ou um simbolismo do que o leitor acompanhará nos outros níveis. Essas camadas adicionam novos sentidos à estrutura e podem servir para suscitar enigmas, incutindo algumas ideias no leitor; acrescentam opiniões atuais às suas memórias do passado, os fatos apresentados mudam de forma: passamos a olhá-los de outra maneira. Nesta obra de Ruy Póvoas, essa estratégia é forma de enfatizar as buscas do processo terapêutico. Tal processo afirma, também, uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência autoral estética, que se evidencia através da redundância textual, e que reforça a coerência ficcional .

Ilhéus, outubro de 2020

MLNetto Simões

 

[1] DÄLLENBACH, Lucien . “Intertexto e autotexto”. In: Intertextualidades. Poétique, 27. Trad.: Clara Rocha. Coimbra, Almedina, 1979, p.53.

[2] Termo de André Gide.  In: 1893 ( Gallimard, Pléiade, 1948)

[3] DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur la mise en abyme. Paris, Editions du Seuil, 1977, p.64.

 

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Missa de Sétimo Dia de Sônia Carvalho de Almeida Maron

A missa de sétimo dia da juíza Sônia Maron, ocorreu nesta segunda-feira, dia 27/12 às 18:00 na Catedral São José, igreja Matriz de Itabuna. A Celebração reuniu parentes e amigos para prestar, mais uma vez, homenagens a essa grande mulher.

Sônia Maron  está entre os fundadores da Academia de Letras de Itabuna (ALITA), da qual foi presidente por dois mandatos.  Titular da cadeira 14  que tem a  escritora Valdelice Pinheiro como patrona.

Falecida no dia 21 de dezembro de 2021,  a Alitana recebeu homenagens de seus filhos Otávio César e Ana Clara, seus  netos Beatriz, José Ricardo e Yasmin, seu genro José Francisco e sua nora Ângela Cristina.  Representando a  ALITA,  escritor Cyro de Mattos e a cineasta Raquel Rocha,  estiveram presentes na celebração.

MENSAGEM
Mãe, Vó e amiga,
Mulher elegante, bela e guerreira, lutou sem receio pelo que amou e acreditou.
Estrela cadente que iluminou as nossas vidas, honra-nos e glorifica-nos essa passagem exitosa no plano terreno.
Hoje a dor física da sua ausência material nos entristece, mas sabemos que o retorno à morada eterna se fez necessário.
A Senhora cumpriu com louvor, dignidade e justiça sua passagem por nossas vidas.
Rogarmos a Deus que a acolha e eleve o seu espírito ao lugar de merecimento. Bençãos de Luz, Paz e vida eterna.
Amamos ontem, hoje, sempre e sublimaremos o seu legado.
Filhos, netos, nora, genro, familiares e amigos.
Sônia Carvalho de Almeida Maron
19/07/1940-21/12/2021

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Cid Teixeira e Sonia Maron- Um duplo adeus

Cid Teixeira e Sonia Maron

Um duplo adeus. Direito e História vivem em mútua influência, a ponto de Ortolan ter afirmado que todo historiador deveria ser jurista e todo jurista deveria ser historiador. É hora da despedida a quem tão bem contou nossa terra e nossa gente, detalhe por detalhe, cada esquina da velha Cidade da Bahia. Alves Velho ensina que dia a dia, à medida que nossos conhecimentos avançam, vamos encontrar escondidas, na antiguidade, as sementes de todas as novas ideias, que até agora nos haviam passado despercebidas. A querida professora Sonia Maron, imortal da Academia de Letras de Itabuna,  jurista do Direito Penal, ensinava e vivia tudo isso, exímia que era em Humanidades e na fluência elegante e simples das palavras. Vão-se duas referências da internacionalmente reconhecida dime nsão historiográfica que obteve a minha Hermenêutica da Desigualdade. É uma apertada síntese cheia de gratidão, saudade e reconhecimento. Trata-se de um duplo adeus.

TAURINO ARAÚJO

 

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Adeus à juíza Sônia Maron exalta mulher “à frente de seu tempo”

Por Celina Santos


Muitas são as referências a marcar a trajetória da juíza aposentada Sônia Carvalho de Almeida Maron, que faleceu às 11h15min de terça-feira (21), após lutar por três anos contra uma leucemia. Nascida em Itajuípe e moradora de Itabuna, ela deixa, em 81 anos de vida, o exemplo de empoderamento feminino. Aliás, muito antes de esse termo ser cunhado.

Dra. Sônia foi juíza do Tribunal de Justiça da Bahia por 35 anos, atuou em Salvador e em Itabuna, na 1ª e 2ª Vara Crime. Na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), lecionou no curso de Direito.

Já na esfera literária, foi uma das fundadoras da Academia de Letras de Itabuna (Alita), a convite do escritor Cyro de Mattos, contemporâneo dela. Ele usou as letras para despedir-se da amiga, a quem eleva votos de “merecido descanso na casa do pai eterno” (poema ao final desta matéria).

Amigo de infância, o médico João Otávio Macedo, carinhosamente chamado por ela de Tavinho, mostrava um olhar atento no velório – como se ali recordasse as brincadeiras compartilhadas e o visível afeto mútuo que demostravam. Ele também integra os quadros da citada entidade literária.

A atual presidente da Alita, Silmara Oliveira, atribui a “elegância e a competência como marcas indeléveis da querida confreira”. “Nos deixa saudades e gratidão de partilhar do seu convívio. Rogamos ao pai celestial que seja doce essa passagem e que sua família seja confortada pelo amor divino”, clama.

Mais manifestações de afeto

Outra confreira, a escritora Ceres Marylise também registra o carinho pela companheira de jornada. “Convivemos diariamente durante quase cinco anos. As horas alegres e prazerosas, cumplicidade e caminhada foram muitas. Que minha linda miss esteja descansando ao lado do Senhor!”, declarou.

Já o casal de vizinhos Rosana e Marcos Bandeira (ele também juiz aposentado e confrade), refere-se à moradora que os recebeu com flores, quando passaram a residir no mesmo prédio, no bairro Jardim Vitória.

Uma das últimas pessoas a servir uma refeição para Sônia, a cuidadora Célia Sousa falou da mulher autêntica, que era franca ao dizer às pessoas o que precisava ser dito. Ao mesmo tempo, sempre amorosa no convívio com todos.

Numa moção de pesar, o prefeito Augusto Castro mencionou Sônia Maron como um mulher de inteligência e cultura raras, elegante e de finíssimo trato. “A magistrada distribuiu Justiça ao longo de sua vida. Itabuna, a quem represento pela maioria da vontade de seu povo, lamenta sua morte”.

Uma legião de amigos e admiradores hoje compartilha a saudade vivida pelos filhos Otávio César e Ana Clara, mais os netos Beatriz, José Ricardo e Yasmin.

 

 

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CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos

Nunca vou dedicar um texto ou livro meu a quem andou comigo na jornada da vida. Não vou dedicar à Sônia Maron, inserindo abaixo do título o registro “de saudosa memória”. Recuso-me à submissão da homenagem com essa feição de saudade e afeto, memória e luto.  Simplesmente prefiro fazer assim: dedico à amiga Sônia, que sempre estará comigo. Fazendo parte de mim, não se desligará até quando chegar minha hora nessa verdade que pesa em cada um de nós.

O que tenho a dizer diante do inexorável, nessa hora que fere, dói, como dói? Viver é morrer o presente, houve quem dissesse. Lembro que ela brincava na matiné do carnaval infantil, animada no clube social.  Dava voltas no salão, cantando:

Chiquita bacana
Lá da Martinica
Se veste de uma casca
De banana nanica.
Não usa vestido,
Não usa maiô,
Inverno pra ela
É pleno verão,
Existencialista
Só faz o que manda
O seu coração.

Jogava confete, serpentina, cantava, não parava, seguia alegre dando volta no salão.

Era nossa infância como parte do encanto, igual à liberdade caminhava de mãos dadas com a inocência, a ternura e a esperança. Em noite clara, as meninas brincavam de ciranda na rua. Os meninos escutavam no passeio.

Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
A meia volta vamos dar

Prefiro lembrar a garota mais bonita de nossa juventude. Foi rainha dos estudantes, da primavera, da cidade. Foi rainha de tudo. Quando passava, arrancava suspiros dos rapazes com a pose de galã fatal. Já moça, nos bailes noturnos esbanjava alegria no carnaval do Grapiúna Tênis Clube. Às vezes romântica, no salão triste seguia, triste cantava.

Eu perguntei ao malmequer
Se meu bem ainda me quer
Ele então me respondeu que não.
Chorei, sofri, por saber que ele
Feriu o meu pobre coração.

Foi madrinha do time de futebol do Itabuna quando o Vasco da Gama do Rio veio jogar no Campo da Desportiva. Entregou um buquê de flores ao chefe da delegação dos visitantes. Uma flâmula da cidade ao capitão Belini do Vasco, que há pouco tempo tinha se sagrado campeão mundial de futebol pelo Brasil, nos campos da Suécia, ao lado de Garrincha, Didi, Vavá, Zagalo, Nilton Santos e outros craques. Fez um discurso improvisado, as palavras incandescentes, as imagens certeiras. Arrancou palmas de todos.

Um dia aconteceu como Juíza de Direito. Ficou assim para sempre no exercício eficaz da função. Atuava na Justiça criminal, gostava de presidir as sessões do Tribunal do Júri. Dizia: façam silêncio, se não vão sair do recinto. Estamos julgando duas paixões numa tragédia, a dos familiares do réu e a dos parentes da vítima, que teve a vida ceifada por motivo doloso.

Por mais que queira explicar o inexorável, nessa hora sob o peso do mistério, não consigo chegar perto, cambaleio.  Oi, Sônia, minha conterrânea, como eu e outros abnegados, gente sonhadora desta terra, foste fundadora da Academia de Letras de Itabuna. Com esforço, alma e vida fizemos o parto. Tenha cuidado agora, não se perca. Embora seja a hora escura, calada e fria, haverá na estrada a mão de Deus que guia.

CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos Read More »