Sobre
A SOMBRA NO ESPELHO
O secreto arquivo de enigmas
O olhar de Tica Simões
Um livro para leitores curiosos…
Esta obra sobre afrodescendência intriga especialmente pela repetição especular que ocorre na estória e a multiplicidade de focos do discurso. A estória, em abismo, contém outras narrativas dentro de si, provocando a reflexividade literária. O discurso faz narrador dentro de narrador, um gestando o outro. O engendramento ficcional autotextual[1], enquanto reduplicação interna, se resolve em processo de mise en abyme[2]: “um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos”[3]. Embora possa se configurar somente no nível do enunciado, esse processo em abismo pode ocorrer, de forma mais complexa, abrangendo a enunciação, como é o caso deste livro de Ruy Póvoas. Por que utilizar estórias dentro de estórias? E vários focos de discurso? Qual a intenção do autor? Como ele se beneficia disso para a produção do texto literário? São perguntas (enigmas?) a serem respondidas (ou não) no caminhar da leitura…
A estratégia em abismo é insinuada desde o título, A sombra no espelho. Que sombra? Por que espelho? Uma identidade cindida? Ou uma chamada para narciso? E o narciso seria o personagem ou o autor? Mas qual autor? Já, aí, um abismo anunciando uma questão de estrutura. Será a intenção de RP criar um jogo capaz de produzir, no leitor, uma sensação de estar entre espelhos, contemplando suas inúmeras reflexões? Ou faces?? Se o título sugere o olhar a si mesmo, “a circunstância do não dito”, a epígrafe Orixá metá aponta crença. E o subtítulo – O Secreto arquivo de enigmas – anuncia um jogo interminável de “segredos” a descobrir? Prevê abismos contidos no secreto arquivo a ser relatado? A primeira epígrafe já promove a dúvida: “o que se diz nem sempre é tão importante”.
Em sintonia, os paratextos: agradecimentos, dedicatória, epígrafes abrangem as áreas ligadas à busca de si mesmo, da análise do discurso e do religioso nagô.
Ruy Póvoas apresenta o livro, circulando entre o real e o imaginado. Fala da condição do povo nagô, com olhar sobre o social. Enquanto apresentador, diz que são quatro os narradores ficcionais: Alcina, enquanto organizadora do texto; Ranieri, autor da estória; Marcelo, personagem/narrador; o Marotti, editor. Autotexto de enunciação, portanto. São, pois, esses narradores-personagens que promovem os abismos do discurso. Ao final da sua apresentação, RP instala dúvida no leitor, quando inverte o preceito e diz: “qualquer semelhança com a realidade será a vida imitando a arte”. Será isso o primeiro Enigma a desvendar?
Embora semelhando paratextos, “Três bilhetes” são falas de personagens; iniciam o processo ficcional. O primeiro bilhete é de Alcina que envia o livro do marido Ranieri para a publicação pelo editor Marotti. O segundo e terceiro bilhetes são de Marotti, para Luisa, revisora do texto; e para Alcina, em resposta. E por que um editor-personagem? Esses três bilhetes, então, promovem abismo de enunciação, chave dessa trama autotextual do afrodescendente Marcelo.
Em “Missão executada”, prefácio ficcional, Alcina esclarece a história do manuscrito do marido. E conta como tratou todo o material recebido. Fazendo isso, Alcina não se torna coautora? Afinal, como ela afirma, recebeu um material que “era uma verdadeira barafunda” e o organizou a seu critério e deu corpo ao texto! E o leitor pode-se perguntar: nesse trabalho, Alcina não terá dado uma especial base tonal ao texto? Terá se imiscuído, dessa forma, no discurso da narrativa de Ranieri? E outro possível enigma: O texto de Ranieri será autoficção? As insinuações de Alcina alertam o leitor a se questionar sobre o discurso; de quem é o ponto de vista narrativo? Então, será todo o texto construído a partir de dúvidas? Enigmas?
Ao assumir a narrativa (capítulo “Rompimento”), Ranieri já velho, mudado, relembra a infância e resolve criar Marcelo, a sombra no espelho, que assume o relato e fala para um bem-te-vi morto. Morto o passado??
Entre vivências e sonhos (capítulos de “Sonho” ao “Chamado”), Marcelo relata a busca de si mesmo, através dos vários processos terapêuticos. Inicialmente, devido à incompreensão sobre a sua condição mental; e o seu percurso, vida: doenças, psiquiatras… Depois, leitura de búzios, astrologia, psicologia analítica, interpretação de sonhos… Serão autotextos da “sombra” de Ranieri? O capítulo “Chamado” finaliza o arquivo de Ranieri, com a conclusão da narrativa de Marcelo que, finalmente, assume a sua religiosidade nagô. Fica, para o leitor, a compreensão da identidade, na solução da cisão da personalidade: luz e sombra.
A circularidade do texto leva o leitor de volta a Ranieri ou ao autor Ruy Póvoas, agora Babalorixá? A vida imitando a arte ou a arte imitando a vida? E aqui lembro as palavras de Mia Couto, na live de 20/5/2020, sobre os seus personagens: “sou sempre eu, alguma face de mim”.
Mas não acaba aí o texto ficcional; termina a estória, mas não termina a ficção. Alcina retoma a narrativa, em “Elegia”, provocando outros questionamentos ou… abrindo, mais, o secreto arquivo de enigmas? Enigma 1: um livro é como um filho – a arte faz permanecer depois de morto. Enigma 2: a dubiedade de uma personalidade: ser um, sendo outro.
Enigma 3: entendimento da sombra; as “estranhezas” de Marcelo; o percurso dos vários caminhos; personalidade cindida ou uma questão espiritual? Enigma 4: “Creio-te vivo, e morta te pranteio” – o enigma maior: vida e morte.
Os enigmas do discurso estão no texto integral de Ruy Póvoas: uma narrativa dentro da outra; um narrador puxado pelo anterior…
A mudança de Alcina, no primeiro texto confusa, buscando vencer uma sua lacuna de possível incompetência; no final, vitoriosa, tranquila, seria também um resgate do feminino, através da mãe de Marcelo, coitada, sempre culpada de tudo… Porém, no fim, com a vitória de Marcelo, reconhecida e resgatada? Seria mais um enigma ligado ao feminino?
E mais: Ruy Póvoas cria personagens agnósticos (como também aconteceu no seu livro A Viagem de Orixalá) como forma de justificar e explicar os estudos de religião de matriz africana? São muitas as questões. E a enunciação, em discurso múltiplo, sustenta os enigmas: Ruy Póvoas, Alcina, Ranieri, Marcelo, Marotti. Esses, apenas alguns dos abismos … A circularidade discursiva insinua o eterno recomeço.
Se a principal razão da narrativa em abismo é traçar paralelos com a estória principal, cada camada pode ser encarada como uma releitura, ou um simbolismo do que o leitor acompanhará nos outros níveis. Essas camadas adicionam novos sentidos à estrutura e podem servir para suscitar enigmas, incutindo algumas ideias no leitor; acrescentam opiniões atuais às suas memórias do passado, os fatos apresentados mudam de forma: passamos a olhá-los de outra maneira. Nesta obra de Ruy Póvoas, essa estratégia é forma de enfatizar as buscas do processo terapêutico. Tal processo afirma, também, uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência autoral estética, que se evidencia através da redundância textual, e que reforça a coerência ficcional .
Ilhéus, outubro de 2020
MLNetto Simões
[1] DÄLLENBACH, Lucien . “Intertexto e autotexto”. In: Intertextualidades. Poétique, 27. Trad.: Clara Rocha. Coimbra, Almedina, 1979, p.53.
[2] Termo de André Gide. In: 1893 ( Gallimard, Pléiade, 1948)
[3] DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur la mise en abyme. Paris, Editions du Seuil, 1977, p.64.