Cyro de Mattos

SONETO DA FLAUTA PLENA- Cyro de Mattos

 

Canções aconteceram quando a vida
em carícia de flauta era sentida.
Agora, zangada, pisa na relva,
emerge nos gritos hostis da selva.

Canções aconteceram quando a vida
em carícia de lenço era tocada.
Tinha aquela música que não ceva
tremores fortes numas folhas de erva.

Ira erra e-l-e-t-r-ô-n-i-c-a de pantera,
telex informa calendas de guerra,
rosas enfermas: água, céu e terra.

Apesar dessas vozes que na cena
Ululam, febris na corrente insana,
Deixo que se vá minha flauta plena.

SONETO DA FLAUTA PLENA- Cyro de Mattos Read More »

POEMA: ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA (ALITA) – Cyro de Mattos

Para Raquel Rocha

A árvore dá os frutos
que atravessam as estações

os poemas dão as palavras
que surpreendem os seres e as coisas

os poemas dão as palavras
que perduram a infância como asa

os poemas dão as palavras
que transportam os verdes e os maduros

os poemas dão as palavras
que a agonia do agudo mundo gera

os poemas dão as palavras
nas vestes da vida e da morte

bom então nunca esquecer
que as raízes te sustentam

nesses ares sopram cantares
com alma força e vida

 

POEMA: ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA (ALITA) – Cyro de Mattos Read More »

GRITO, GRITO, GRITO- Cyro de Mattos

Cyro de Mattos

Não, não é um homem,
ou o que parece ser
com o nome de homem,
um que mata o inocente
durante colossal pesadelo.

Chama-se Putin o horror,
o semeador de explosivos,
discípulo de outras chacinas
quando o ódio se instalou
com manadas sanguinárias
entre sombras e abismos.

Em duro clamor meu grito,
embora frágil, sem proveito
para impedir as ambições,
não se esconde nos medos.
Não hesita em confirmar
que a vida é boa e bela,
a insana fera que golpeia
é que não dá valor a ela.

Só os lobos entre as febres
proclamam com os uivos loucos
o triste funeral de horas tristes.
Não temem o estúpido vício,
inconsequente na conquista,
o estupro insaciável, diabólico,
que os transmuda numa gesta
de bombas e memórias doloridas.

GRITO, GRITO, GRITO- Cyro de Mattos Read More »

Ô VLADIMIR PUTIN – Cyro de Mattos

 

Não escutas o passarinho em dia

De bemóis, ao contrário das fronteiras?

Nessa terra que é nossa casa, abrigo

De lágrima na passagem dos anos?

 

No prazer de estar nela, onde moramos.

Nesse mistério dos que vêm e vão

Com os saberes da grande mãe que dá

Seus filhos à luz, deitando-os no berço

 

Uterino, após a morte. Decerto

De paz o final perfeito. Assim fomos

Feitos, enfim juntos, adormecemos.

 

Deixe que nos leve a trama da vida,

Revele-se no esplendor da mãe terra.

No lado azul de versos com sentido.

 

Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Suíça e Dinamarca.Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros.

 

Ô VLADIMIR PUTIN – Cyro de Mattos Read More »

POEMAS DE CYRO DE MATTOS

Historinha da preguiça
Cyro de Mattos

Nasceu, comeu, dormiu.
Cresceu, comeu, dormiu.
Pariu, comeu, dormiu.
Ao ouvir falar em trabalho
teve um mal súbito.
Na mesma árvore
pendeu e morreu.

 

 

Crença
Cyro de Mattos

Entendo ser real
Estar na relva
Com o meu canto
Sedento de amor.
Neste rumor secreto
Verde minha palavra
De brotar em cada um.
Se não sou semente
Dos sonhos que beijei
Cantando na chuva,
Lá dentro trancado,
Cúmplice do eterno
Riscado num instante
Direi não sou de fato
E no caos desencanto-me.

 

 

BICHOS
Isca

Quando vem à tona
como se arrisca.

Gambá

Com o seu spray
fedorento
afugenta o inimigo.

Leão

O e l é t r i c o n o a r
até o vento corre.

Hiena

Gargalhada da fome
amedronta até a morte.

Procurado

Procura-se cão pequinês,
é algo fenomenal,
nunca fez pipi
na cama do casal.

Papagaio

De cadeia ao pé
Humanamente bêbado.

Paixão

Com tanta saudade
da bailarina foca,
o solitário camelo
foi morar no gelo.

Caranguejo

Falou tano dos outros
que perdeu o pescoço
e caiu dentro do poço.

POEMAS DE CYRO DE MATTOS Read More »

CHUVA DE JANEIRO – Cyro de Mattos

Depois que o marido faleceu perdeu o interesse pela vida. Vivera com ele trinta anos de casada e soubera que o calor do corpo aquece o amor. Quando se é idosa, a experiência de vida diz que esse calor do corpo some, ainda mais quando o seu homem já não está mais ao seu lado para consumar o ato mais prazeroso da vida.

Os dois filhos estavam casados, viviam no exterior. Ela morava em um apartamento de quarto e sala. Passava com a aposentadoria de professora estadual. Todos os dias seguia para a pensão onde fazia a refeição do almoço. Sentava em uma mesa reservada para ela no canto da sala.  Lá viu pela primeira vez o homem de cabelos brancos que olhava para ela. Tinha um brilho diferente nos olhos.  O olhar dele se repetiu nos outros dias, deixando-a sem jeito. Ficou assustada quando ele se levantou de sua mesa e pediu permissão para fazer-lhe companhia durante a refeição.

Disse que era um viúvo aposentado, fora funcionário do Banco do Brasil. Um dia convidou-a para passear no parque. A princípio relutou, mas diante da insistência dele outras vezes, resolveu aceitar o convite.  Conversaram sobre a vida, seus momentos entre o alegre e o triste, foram se tornando íntimos.  Num ponto concordaram, viver sozinho, sem ter ninguém como companhia, era ruim. Deram uma volta no jardim, sentaram no banco embaixo da árvore frondosa. Jogaram migalhas para os pombos e para os peixes na lagoa.

Na tarde fresca, um vento morno passava no rosto dela em finura de  lenço e leveza de carícia. Um casal de namorados, em cada beijo que sorvia nas bocas ávidas, revelava que a vida era boa e bela, assim no calor que se estendia por toda a extensão da pele só podia ser dado valor a ela. Ele fez questão de levá-la até o prédio onde ficava o apartamento dela. Na entrada do pequeno edifício olharam-se em silêncio antes de cada um querer dizer algo ao outro, que eles mesmos já sabiam o que era e que pulsava como uma chama que lampeja dentro. Talvez um convite para conhecer o apartamento de perto por ele. Convite dessa natureza seria impossível, embora houvesse no rosto de cada um deles o olhar cintilante de brilho.

          Ele disse:

– Muito obrigado.

Ela disse:

– Obrigada digo eu.

Despediram-se com leve aperto de mão.

Era janeiro e ainda não havia caído a chuva de verão.

Daquela vez quando terminaram de fazer o passeio pelo parque, ele a convidou para conhecer o apartamento dele. Era também um quarto e sala. Ela perguntou quem fazia a arrumação e o asseio. Respondeu que havia contratado uma faxineira. Vinha duas vezes na semana fazer a faxina. Notou que certas coisas não estavam no lugar devido. Fez a arrumação com esmero.  Limpou a poeira na mesa e nas duas cadeiras. Deu brilho em alguns objetos domésticos. Um pouco cansada foi tomar um banho no chuveiro de água quente. Vestiu o roupão que pertenceu a ex-mulher dele.

Ela sorriu quando ouviu o convite para ir se deitar com ele.

Então vieram os primeiros beijos. O ato para que alcançasse o auge exigia concentração e esforço. E aconteceu o máximo quando o prazer de ambos ao mesmo tempo precipitou a vertigem. Souberam que ainda restavam um pouco neles daquilo que motiva a vida. Era preciso de agora em diante aproveitar bem antes que não restasse mais nada. Foram alguns anos de convívio harmonioso, decorrente da união sem atrito entre o espírito e o corpo, que acordava rejuvenescido, embora no estado de fuga repentina em cada vez que o ato se consumava dentro algo precioso ia ficando longe nos seus contornos definidos.

Quando ocorreu aquela primeira vez em que dormiram juntos, ela lembrava agora, acordou no final da tarde. Movimentou-se no quarto com cuidado, não queria interromper o sono tranquilo dele. Foi até a janela.

 E, cheia de vida, ficou olhando cair pelo vidro a chuva de verão.

CHUVA DE JANEIRO – Cyro de Mattos Read More »

ELZA SOARES- Cyro de Mattos

Morre Elza Soares aos 91 anos

            Arrebatava a plateia com seu ritmo musical diferente, que arranhava a garganta e brincava com o som. Vi de perto em minha juventude quando deu um show de espetáculo cantante ao se exibir com uma voz esplendorosa no Cine Teatro Itabuna e no Clube Social de Itabuna. Sua voz era puro jazz na garganta inflamada, no melhor proveito, improviso e efeito. Uma desordem musical causando harmonia impetuosa e prazerosa.

            Uma mulher negra, que veio da pobreza, na favela com a lata d’água na cabeça, no morro ainda adolescente subia e descia, não se cansava, noite e dia.  Em condições precárias cantava para enganar a difícil dureza da vida e foi se descobrindo com uma entonação musical que só ela tinha, cheia de malabarismos vocais.

            Voz das vozes, flor do samba que expandia alegria para quem a ouvisse, contagiando a todos com aquele timbre musical forte. E assim com seu jeito de cantar versátil ganhou o mundo, nos lugares mais distantes mostrou que o Brasil é grande quando beneficiado com criaturas como Elza e outras do mesmo naipe.

            Que mulher incrível com sua entonação musical! Eu só acreditava porque estava vendo, como era que ela fazia aquilo com a voz? Só podia ganhar o mundo, com indiscutíveis méritos e receber os beijos merecidos da glória.

            Trouxe no coração Garrincha, o gênio de pernas tortas, a alegria do povo com os seus dribles incríveis. Quando o craque já não mais valia para o futebol, como mulher corajosa deixou que se fosse no jogo adverso da vida. Amparou seu menino grande, aquecendo o corpo do campeão mundial de futebol com a febre do amor, adoçando o seu coração quando o sentia com a cor triste da manhã e a incerteza da noite.

            Notável exemplo de vida. Acredito que tenha ido para o lado de lá, na sua viagem sem volta, cantando e sambando. Levou Elza, na sua chegada do lado de lá, meu beijo gravado no lado de cá quando eu a ouvia cantar e ficava com uma vontade assanhada para sambar. Não somente eu, mas quem gostasse de viver com o ritmo delirante do samba.

Elza Soares morre aos 91 anos; cantora faleceu de causas naturais
*Cyro de Mattos é escritor e poeta, premiado no Brasil e exterior.

ELZA SOARES- Cyro de Mattos Read More »

TRÊS POEMAS DA LUA- Cyro de Mattos

Moça bela

Em luares de relva
Na rede embala-me
Nudez tão pura.
Bafeja meu rosto,
Veste-me de sonho.
Para o céu me leva
No colo que flutua

Lua, ó lua,
Moça bela,
Toda nua.

O menino e a lua

O menino sonha com a lua
acima da nuvem escura
fazendo descer para o rio
uma comprida luaranha.

O menino sonha com a lua
no céu de estrelas, cintilante,
aquele pedaço da frente
ele abocanhou na crescente.

O menino sonha com a lua
chamando-o pra brincar no areal
deixado pela grande enchente.

Lá ele cata muita prata,
depois é levado pro céu
no colo da lua risonha.

A cidade e a lua

Toda ela iluminada
flutua no colo da lua
que lhe trouxe rosas.

Ó encantos! Ó perfeições!
Carícia e frêmito de sonho.
Suspiros de ternura.

Brilha cantiga da beleza,
a cidade no eterno pervaga,
perfumes a noite exala.

TRÊS POEMAS DA LUA- Cyro de Mattos Read More »

CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos

Nunca vou dedicar um texto ou livro meu a quem andou comigo na jornada da vida. Não vou dedicar à Sônia Maron, inserindo abaixo do título o registro “de saudosa memória”. Recuso-me à submissão da homenagem com essa feição de saudade e afeto, memória e luto.  Simplesmente prefiro fazer assim: dedico à amiga Sônia, que sempre estará comigo. Fazendo parte de mim, não se desligará até quando chegar minha hora nessa verdade que pesa em cada um de nós.

O que tenho a dizer diante do inexorável, nessa hora que fere, dói, como dói? Viver é morrer o presente, houve quem dissesse. Lembro que ela brincava na matiné do carnaval infantil, animada no clube social.  Dava voltas no salão, cantando:

Chiquita bacana
Lá da Martinica
Se veste de uma casca
De banana nanica.
Não usa vestido,
Não usa maiô,
Inverno pra ela
É pleno verão,
Existencialista
Só faz o que manda
O seu coração.

Jogava confete, serpentina, cantava, não parava, seguia alegre dando volta no salão.

Era nossa infância como parte do encanto, igual à liberdade caminhava de mãos dadas com a inocência, a ternura e a esperança. Em noite clara, as meninas brincavam de ciranda na rua. Os meninos escutavam no passeio.

Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
A meia volta vamos dar

Prefiro lembrar a garota mais bonita de nossa juventude. Foi rainha dos estudantes, da primavera, da cidade. Foi rainha de tudo. Quando passava, arrancava suspiros dos rapazes com a pose de galã fatal. Já moça, nos bailes noturnos esbanjava alegria no carnaval do Grapiúna Tênis Clube. Às vezes romântica, no salão triste seguia, triste cantava.

Eu perguntei ao malmequer
Se meu bem ainda me quer
Ele então me respondeu que não.
Chorei, sofri, por saber que ele
Feriu o meu pobre coração.

Foi madrinha do time de futebol do Itabuna quando o Vasco da Gama do Rio veio jogar no Campo da Desportiva. Entregou um buquê de flores ao chefe da delegação dos visitantes. Uma flâmula da cidade ao capitão Belini do Vasco, que há pouco tempo tinha se sagrado campeão mundial de futebol pelo Brasil, nos campos da Suécia, ao lado de Garrincha, Didi, Vavá, Zagalo, Nilton Santos e outros craques. Fez um discurso improvisado, as palavras incandescentes, as imagens certeiras. Arrancou palmas de todos.

Um dia aconteceu como Juíza de Direito. Ficou assim para sempre no exercício eficaz da função. Atuava na Justiça criminal, gostava de presidir as sessões do Tribunal do Júri. Dizia: façam silêncio, se não vão sair do recinto. Estamos julgando duas paixões numa tragédia, a dos familiares do réu e a dos parentes da vítima, que teve a vida ceifada por motivo doloso.

Por mais que queira explicar o inexorável, nessa hora sob o peso do mistério, não consigo chegar perto, cambaleio.  Oi, Sônia, minha conterrânea, como eu e outros abnegados, gente sonhadora desta terra, foste fundadora da Academia de Letras de Itabuna. Com esforço, alma e vida fizemos o parto. Tenha cuidado agora, não se perca. Embora seja a hora escura, calada e fria, haverá na estrada a mão de Deus que guia.

CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos Read More »