Produção Literaria

CLAVE DA SOLIDÃO EM FERNANDO PESSOA- Cyro de Mattos

 

Fernando Pessoa é um poeta de grave meditação.  Sua poesia possui acuradas interpelações, o pensamento argumentativo refere-se ao que somos, fomos e imaginamos ser no futuro. De sua voz escorre a angústia, o delírio do sonho e o milagre que a poesia rara externa quando cumpre saber o mistério que nos cerca na existência. Poeta essencial do pensamento, dotou a Europa de poderosa razão no poema, com a   carga de uma lírica das mais importantes no século vinte. Visões nos versos que se fixam na vertigem das solidões imaginárias são produzidas através de raciocínios inteligentes. Convergem perplexidades no discurso que se estende para solidões do fim do mundo em cada um de nós, seus versos são como mãos que nos tocam no enleio de respostas para as mesmas incógnitas.

Pessoa escreve versos com magistral domínio da rima e da métrica. Muito de seu espantoso fazer poético é visto como resultado de vivências de estados imaginários. Nas intenções que empreende para alcançar o sonho, conhecimento de que na vida tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, tenta decifrar as formas invisíveis. O poeta de personalidade complexa chega a conclusões que reduzem as visões da existência ao nível de ideias altas. Sentimentos tornam-se sedimentados em conceitos merecedores de uma leitura que não se compraz com o deleite para a mística do ornamento. Ressoam no discurso feito com a tristeza de coisas reais, sob o convívio de vagos receios e fortes anseios.

Há uma conexão de ricas construções poéticas com vibrantes razões e saídas de uma loucura lúcida servindo de análise da existência. Um vínculo de gravidade e grandeza no que ele sabe dizer sobre o enigma do mundo com os outros, nas partes em que alcança com sua criativa marca pessoal, apoiada em imagística superior, pungentes visões oblíquas. Às vezes seus versos iluminam o ser com uma música finda que fere, mas que continua acordada no contínuo movimento da vida. Essa música que emana do sonho é para Pessoa a vida em si e contra si mesma, intensa do sim e do não.

O poeta conhece depressões, passeia por ínvios caminhos, vê as coisas se transformarem ou permanecerem duradouras, sem perdas, em cada estar no mundo. Sabe que nesta independência é que repercute com a sua voz neutra o enigma de tudo. Vozes contrárias existem no que o poeta tenta escutar, tornadas alheias aos que vivem e morrem na vida breve. Há momentos críticos, e são inúmeros, em que o poeta se perde por entre os caminhos do tempo ido. Nesta tristeza que numa ordem absoluta faz o céu sem luz e não cura a alma de seus males profundos. Roça no poeta a verdade de que lhe é impossível decifrar as formas sem formas, “essas coisas lindas que nunca existirão…”

 No rio ao pé de salgueiros

 Passaram as águas em vão,

Com tristezas de estrangeiros

Passaram pelos salgueiros

As ondas, sem ter razão.

Na alquimia própria do poeta eterno, que detém o tempo, a inaugurar novos sentidos, seus versos transformam sentimentos em pensamentos cristalizados. Plasmam tudo que vê e sente na decorrência de quem reconhece a terra e o céu na beleza de ser em si, mas que não dependem de quem durante a vida “perdeu a alma para os ter.” No céu amplo de desejo, o homem retraído, preso à solidão de tudo, faz de Pessoa um poeta de penetrante enfrentamento elucidativo do ser. Ele nos diz que é amante da beleza, embora reconheça que tudo é em vão. Mostra ter saudade do poeta da alma alheada, que ficou para trás em dado momento, escrevendo os versos que chegavam sem lhe exigir nada. Em contrapartida, o seu ser profundo é tomado de confusão absurda quando começa a saber que a terra é feita de céu.  Aparece dentro dele como se fosse de outra vida, dizendo-lhe que a morte chega cedo nessa substância oculta, que não se desvenda. Breve é toda a vida, confessa. Como numa espécie de andaime, que lhe é posto pelo eu poético, seus versos ecoam da vida breve por entre grandes mistérios, assombrosos abismos.

As ondas atormentadas do mundo habitam as zonas da imaginação alimentadas pela razão de viver desse poeta incrível.

          O que me dói não é

          O que há no coração

          Mas essas coisas lindas

          Que nunca existirão…

Neste mundo, que ele não sabe se é sonho, realidade, onde tudo é deixado, só temos a certeza única de que passamos como sombras do que fomos. Conflitos que na alma geram a terra e o céu, por onde passam as mesmas sombras, não deixam que o poeta mude o hábito de escrever versos fingidos como vínculo de interiores graves diante do mundo, os quais quase sempre trazem essas coisas vestindo nadas.

A lembrança do passado dá ao poeta a consciência de que só teve a vida mentida, feita de mágoas que não cessam, no rio que flui sem volta, e trégua. Rio subterrâneo, que relacionado com outros símbolos o poeta não sabe de quais terras vem e para onde vai. A vida vivida incerta, na esperança que pouco alcança, não apreende o tédio dessa substância oculta. Em tudo isso consiste a energia que alimenta o poeta na construção de seus versos, suas verdades e dúvidas, cheias de argumentos dotados de questões sérias.

A vida, por ser complicada, faz com que Pessoa tenha olhos para ver por meio da razão, que lhe deram como guia. Se a razão é guia que ilumina a obstinada fé e a ciência cega, reflete-se de seus versos uma voz brilhante numa espécie de loucura lúcida. É pouco chamar de talentosa essa maneira de se comportar o eu poético, pois sem dúvida é formada de altíssimo pensamento de horas fundas, profundas, singularíssimas, solitárias, mas a um só tempo plurissignificativas como aferição da existência. Diferentes no poeta que tem olhos para ver, separar, distinguir, juntar, compelido para que tente decifrar a existência no exterior em que ele se vê perdido como num deserto. Passageiro confuso, vê a noite vinda como nada, a vida como sonho. Na clave da solidão, para alcançar as sombras sem formas, Pessoa urde o artifício do caminho, e é também como ele esquece um pouco dele mesmo.

Para além de conhecer esta vida breve, fingidos os seus versos soam neste cancioneiro por onde as coisas escoam com o seu ritmo para coisa nenhuma. A alma do poeta remoinha nas portas do enigma, a vontade deseja penetrar muros. Isso o força a reviver, ler o que está em si e diante de si, exprimir em silêncio e com intensidade o tempo que teve sonhado e o perdeu nos anos.

Ter alguma certeza nas coisas desta vida, nessa loucura do querer compreender, o poeta acha ser difícil, há uma solidão imensa em tudo. E ele só acredita que se sente assim quem na existência caminha enganado.

    Se ver é enganar-me,

   Pensar um descaminho,

   Não sei. Deus quis dar-me

  Por verdade e caminho.

Evocação do homem através do verbo mágico, discurso instigante em usual pensamento do real vestido de sonho, dotado de arguta argumentação da inteligência, tudo mais Fernando Pessoa revela no seu Cancioneiro (Obra poética, Brasil, 1960).  Mostra o quanto experimenta sua natureza de poeta eterno, diferente e sozinho, no exercício da literatura de excepcional qualidade. Emissário da vida a morrer e a iludir, transmite, como uma fonte que não cessa, o quanto ausculta através da imaginação, questiona por meio dos abismos da razão. Como um ser solitário, que a certa altura vê no outro “um cadáver ambulante que procria.”

Sentir esse poeta genial, que à vida dá assomos e esgares, sinta quem lê o seu célebre poema “Autopsicografia”:

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

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A SAGA MARINHA DE FERNANDO PESSOA- Cyro de Mattos

A Saga Marinha de Fernando Pessoa*

                                 Cyro de Mattos

A saga portuguesa de expansão marítima é contada em versos por Fernando Pessoa no único livro que publicou em vida: Mensagem (1934).  Foi escrito entre os anos de 1920 e 1930, em forma de uma epopeia fragmentada, composta de quarenta e quatro poemas. Fernando Pessoa expressa neste livro o elogio de grandes vultos históricos, refere-se à vontade de Portugal de querer lutar contra as adversidades, ultrapassar os abismos que Deus ao mar deu.

O sonho de ver as formas invisíveis

 Da distância imprecisa, e, com sensíveis

 Movimentos da esprança e da vontade,

 Buscar nas linhas do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da verdade.

 

       Nesses versos é visto o sentimento nostálgico mesclado de grandeza, enquanto em outros ocorre o apelo de além: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.”

       Mensagem divide-se em três partes: Brasão, Mar Português e o Encoberto. A primeira possui várias vozes, que se integram para celebrar a história de Portugal e enaltecer os seus fundadores. Estrutura-se como o brasão português, constituído por dois campos, um apresentado por sete castelos, já o outro formado por cinco quinas.  A coroa e o timbre estão no topo do brasão, a se apresentar com o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia.

       Com essa divisão, tendo o brasão como referência, os poemas versam sobre os grandes personagens históricos, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalense, passando por sua esposa Dona Tareja e seu filho Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, até o infante Dom Henrique (1934-1460), fundador da Escola de Sagres, grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e ainda aludem a Alfonso de Albuquerque (1462-1515), dominador luso do Oriente. Na galeria dos grandes personagens, os versos dispostos em uma partitura trinitária propõem até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois denominada Lisboa. O poeta usa o paralelo imagístico quando se refere a esse assunto:

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo.

         Em “Mar Português”, segunda parte do livro, o poeta investe contra o que fosse acaso ou vontade ou até mesmo temporal. Leia-se a propósito do assunto esse lamento cheio de dor, um dos mais pungentes da poesia portuguesa sobre o ciclo das descobertas marítimas:

Ó mar salgado, quanto de teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram.

Quantos filhos em vão rezaram.

Quantas noivas ficaram sem casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

      Depois de se perguntar se a jornada de natureza épica valeu a pena, o poeta em versos de saber eterno, que correm o mundo, levados através da linguagem coletiva, em nível de fala, responde que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

      Seu pensamento reflexivo acrescenta:

                   Quem quer passar além do Bojador

                   Tem que passar além da dor.

         Em “O Encoberto”, terceira parte de Mensagem, vemos o mito sebastianista do retorno de Portugal às épocas de glória. Alude o poeta agora ao misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal, que teve a frota dizimada em ataque aos mouros, em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, formulam nesse trâmite espiritual o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal. Anunciam a nova terra e os novos céus, quando então fica criado o Quinto Império, que marca em definitivo a supremacia de Portugal sobre o mundo.

         O sentimento nacionalista permeia os poemas de Mensagem. Uma estrofação com base no elogio aflora da alma gentil do poeta, os versos ressoam uníssonos para ferir objetivos universalistas, como facilmente podem ser detectados nesse padrão de técnica literária. Classificada pela crítica como ode trinitária, nessa obra o poeta propõe sua mensagem com o cerne da nobreza, formula uma antítese na posse do mar, que antes existia com seus medos, mistérios e assombros, incide numa síntese através da futura civilização, com apetências e aderências por mares nunca antes navegados, de tal modo também nos informou Camões, representadas dessa vez na voz da terra que ansiou o mar.

         O eu poético em Mensagem prevê que o futuro da Europa está além-mar, o agente dessas descobertas marítimas será Portugal. O poeta imagina a Europa com um corpo de mulher. Estendida, ela tinha um de seus cotovelos, o direito, fincado na Inglaterra; o outro, esquerdo, recuado, na península italiana; cabendo a Portugal ser o rosto.  Pode não ter sido o rosto, mas a posição geográfica de Portugal, pequena faixa de terra voltada para a imensidão do Oceano, à sua frente, que condicionou seu destino ultramarino durante quase cinco séculos.

*In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, no prelo da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

PESSOA, Fernando.  Obra poética, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.

SIMÕES, Maria de Lourdes Netto (org.). Navegar é preciso, coletânea, Editus/UESC, Bahia, 1999.

 

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DISCURSO DA COMENDA DOIS DE JULHO-  Cyro de Mattos

Estou saudando os componentes da mesa na pessoa do deputado Marcelinho Veiga. Agradeço a Deus por ter me dado a vida; à esposa Mariza, pela tolerância e amor durante 55 anos de união física e afetiva, aos filhos e netos pelo incentivo na construção de meu legado.

Agradeço ao amigo de longa data, Joaci Goes, pela generosidade, apanágio de seu caráter, ao lembrar-me de maneira acalorada, em várias oportunidades, que eu merecia essa honraria.

 

Senhoras e Senhoras.

Eu era aluno do curso clássico no colégio da Bahia (Central) quando escutei de meu professor Luís Henrique Dias Tavares que a Bahia e o Brasil eram inseparáveis. Meu professor era um homem de estatura pequena, mas que carregava no coração um forte amor e na razão um grande saber pelos caminhos históricos da Bahia. Observara em sala de aula, naqueles idos de 1956, que essa união insuperável procedia do fato de que o Brasil exerceu sua verdadeira independência em solo baiano. No entorno deste chão amado, onde aconteceu o embate, houve o abraço dos mares da Baía de Todos os Santos para que os baianos se libertassem do jugo do império português.

O movimento social e militar começou em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho vitorioso em 2 de julho de 1823.  Este memorável Dois de Julho tornou-se data de máxima importância para os baianos, que a festejam todos anos com a alma revestida de fervor e sentimentos de louvor. Foi um movimento pelo desejo federalista emancipador do povo baiano, com vistas a inserir a então província na unidade nacional brasileira.

Sabemos que a independência do Brasil na Bahia não foi feita em gabinetes e salões, não aconteceu com um brado retumbante, mas nas ruas, nos campos de batalhas, com feridos e mortos. Contou com a participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos, gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance significativa no desenrolar da pugna. O general Labatut sobressai como comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.

É bom não esquecer   a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os portugueses tomassem o convento da Lapa.  E a de Maria Quitéria, valorosa mulher com coragem incomum para combater os adversários portugueses no Recôncavo.  Vestida numa farda de soldado, com a arma na mão, lutou contra os portugueses na barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações. João Francisco de Oliveira Botas, conhecido como João das Botas, português de nascimento, aderiu à causa brasileira da Independência. Comandou uma flotilha de embarcações e protegeu a parte interna da Baía de Todos os Santos e a Ilha de Itaparica.

Cronistas registram que, na madrugada de Dois de Julho de 1823, a cidade de Salvador amanheceu quase deserta: o exército português deixou em definitivo a província da Bahia. Alguns dizem até que o dia nasceu bonito, sem as chuvas de junho. O sol brilhou com seus raios de cegar a vista. Dois de Julho daqueles longes acontecia assim com o esplendor do sol, para ficar na reverência patriótica dos baianos que, desde então, estabeleceram a tradição de comemorá-lo anualmente com a repetição da entrada do Exército Pacificador na cidade de Salvador. De uns anos para cá, o caboclo e a cabocla foram introduzidos no cortejo patriótico como homenagem prestada às gentes indígenas que contribuíram para a vitória dos baianos no confronto.

Foram brasileiros que, com armas em suas mãos, de fato libertaram a Bahia da opressão do Império Português, começando o movimento em Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, São Francisco do Conde, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe, Saubara. Formavam um exército em frangalhos. Depois se juntaram a esses pobres brasileiros outros que desceram lá de Caetité, de outras partes do sertão e da Chapada.

            Na pugna ferrenha não se sabe ao certo como o corneteiro Luís Lopes tenha ficado no coração dos baianos.  Se a versão da história contada é verídica ou não, tudo se torna mais intrigante e ao mesmo tempo mais nebuloso.  Nenhum estudioso tem informações aprofundadas sobre o assunto, mas o que se sabe é que ele participou do conflito que ficou conhecido como a Batalha de Pirajá, onde provavelmente teve um papel decisivo. Propaga-se no imaginário popular que em vez do toque de “recuar”, deu o sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros tinham recebido reforços.

O movimento que deflagrou a independência do Brasil na Bahia motivou a Castro Alves a escrever um poema de versos magníficos.  Em Ode a Dois Julho vemos um discurso eloquente elaborado com imagens candentes da esperança e da liberdade. Numa só voz, juntas, evocam a peleja entre o clarão e as trevas.  O libertário poeta dos escravos, construtor de uma poética solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos veementes canta a liberdade como o sentimento mais valoroso que envolve os baianos no palco do confronto.  Como noiva do sol, a liberdade, essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta mais amado pelos baianos.

Em um dos trechos do célebre poema, ele diz:

 

Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!…

            E finalizava seu ardor de poeta libertário com esses versos:

 

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito…
Um trapo de bandeira — n’amplidão!…

           A Assembleia Legislativa do Estado da Bahia veste-me agora com as cores pátrias dessa data histórica, que expressa os sentimentos libertários de brasileiros em terras baianas, nos mares da Baía de Todos os Santos, nos céus de Nosso Senhor do Bonfim, nas veias históricas de nossos irmãos. Distingue-me com honraria tão elevada, que recebo como reconhecimento ao meu legado forjado ao longo de mais de sessenta anos no ofício de escritor e divulgador da cultura.

Graduado em direito pela Universidade federal da Bahia, exerci a advocacia durante mais de 40 anos na comarca de Itabuna e outras do sul baiano. Fui advogado por profissão, meu pai assim queria, pensando no melhor ´para o filho. Dessa experiência colhi frutos ricos sobre as circunstâncias críticas dos humanos no seu estar da vida. Soube que sem o direito não há democracia, a liberdade, como o valor mais poderoso que adquirimos ao longo dos séculos. Não se dá a cada um o que é seu.  Não há a paz. Predomina a lei do mais forte. Exerci o jornalismo com passagem na imprensa do Rio. Foi um aprendizado importante para saber da linguagem precisa e ágil sobre o fato que se pretende divulgar ou analisar no seu teor informativo da verdade. Mas ser escritor e poeta foi sempre a minha paixão.  Nesta fico caracterizado por força do destino como o animal gregário entre o alegre e o triste, o fabricante de incertezas e contradições no uso da palavra mítica que reinventa a vida.

Já escutei dizer que não serve para nada tal ofício diante das necessidades que a vida propõe no cotidiano. Sonhos não enchem a barriga de ninguém. De fato, pode até não resolver nossos problemas econômicos, políticos, sociais, filosóficos, religiosos, porém, devolve aos seres humanos o que só a eles pertence. Sem as artes não se tem a emoção, a vida passa sem graça, não se dá novos sentidos à razão e, na pobreza mental, sucumbimos como aderentes à ignorância da matéria. Não passamos de cadáver ambulante que procria, como observou o poeta Pessoa. Nesta vida do ar, sonhar e amar, é, portanto, o que sou de fato.

Ah, poesia, flor e vento, ao inventar-me como um grão no deserto onde tudo arrisco, no qual inocente respiro, mostras o quanto gostas de mim. É quando então sou das incertezas erguido muitas vezes, afugentas os meus medos e me sustentas nos meus ermos. Sem a tua companhia, que irriga minhas artérias como a chuva a terra nas suas mil línguas, não há a lágrima, o beijo, o riso, o epitáfio. Não há o reconhecimento, a cumplicidade, o sentido.

É assim que recebo dessa ilustre Casa Legislativa a relevante distinção dessa Comenda Dois de Julho, como reconhecimento aos meus mais de sessenta anos dedicados ao bem-estar dos outros, à progressão da cultura e à valorização da arte literária.

Aos que acreditaram em minha aventura para chegar até aqui, àqueles que com as suas presenças abrilhantaram este momento, fazendo-me cativo do afeto com seu gesto bondoso, externo nosso agradecimento. A todos vocês que vieram prestigiar o evento de elevada importância para o homenageado, agradeço comovido. Muito obrigado.

Salvador, Bahia, 10 de agosto de 2023

* Cyro de Mattos é autor de 67 livros pessoais, de diversos gêneros. Publicado também em Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha, Dinamarca, Rússia, México e Estados Unidos. Conquistou com Os Brabos, novelas, 1978, o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, Menção Honrosa do Jabuti, 1988, com Os Recuados, contos, o Prêmio de Romance do Pen Clube do Brasil, com Os Ventos Gemedores, 2017, e o Prêmio Internacional Casa de las América, 2023, para Infância com Bicho e Pesadelo e Outras Histórias. Membro das Academias de Letras da Bahia, de Itabuna e de Ilhéus. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador e Comenda Dois de Julho da Assembleia Legislativa da Bahia.

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JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES E SUA FESTA DO SONETO-Cyro de Mattos

 

Segundo uma tendência que existe na filosofia, o homem é o pensar e o dizer. Habita sobre a terra e nas paragens do céu, entre os divinos, os mensageiros celestes com suas legiões que formam a potência sagrada de Deus.  Habitante se faz na comunidade entre os mortais, que não se desligam do inexorável do viver e do morrer.

Pensar é determinado pelo dizer. E este dizer é tradução das coisas. Permite ao homem realizar-se como um ser poético, mágico que retira a cegueira da matéria, dá-lhe fundamento, inaugurando novos sentidos do mundo. Revela-se com a medida de sua habitação na linguagem. Dizer poético é habitação, construir, fazer surgir, erguer, formar-se na referência humana com os seres e as coisas. Traço fundamental de ser entre céu e terra, divinos e mortais. O poeta conduz este ser como é entre os opostos, vida e morte, sim e não, ser e não ser. Pelos ventos contrários, caminha no mundo e estabelece a dialética da passagem.  Fernando Pessoa anota que não tinha ambições nem desejos, ser poeta era a sua maneira de estar sozinho.

A poesia está em tudo. Só o poeta a ergue no poema como testemunho de sua experiência no existir. Exibe a sua capacidade de fazer emergir, revelar, transcender. Há poesia nos seres e coisas, o poema é a verbalização de uma experiência de vida. O conduto  procedente de meios em que combina elementos formais e sentidos. Ritmo, sons, cores. Signos, metáfora, ideia.

Há poema sem poesia, apenas o artefato ditado por regras, o discurso sem o necessário conteúdo de sentimento de mundo, que só o legítimo poeta consegue lograr do que pretende dizer, ao dar nova significação ao mundo. Sem razão lógica e razão mágica, aquilo que é próprio do homem, emana do poema tão somente o arcabouço de regras. O poema não é erguido, permanece no vago. Na corrente da natureza flagra-se a poesia sem o poema. Poesia e poema, quando se encontram, movimentam o dizer com unidades rítmicas para culminar na ideia, feixe de sentimentos rebeldes às definições.  A poesia é inexplicável. O poeta Carlos Drummond de Andrade ressalta que procurando bem você encontra, não a razão (inexplicável) da vida, mas a poesia (inexplicável), que está no mundo.

Nessa corrente energética que emana da natureza, a poesia acontece sem o poema. Este é constitutivo no jogo em que entra a razão e a emoção, fundamenta-se na linguagem, que é a morada do Ser, a poesia mora na asa. Emana na ação de fazer com as palavras com vistas à criação do mundo vertido de sonho. O poeta escuta e canta, opera a união do que é visto, imaginado, e aparece no ser revelador, mensageiro do Ser.

 A poesia na expressão do poema é conhecimento e enigma, cultivo e produção  dessa  parte noturna do que somos. Se tudo for engano, sonhar é sabê-lo, diz-nos Fernando Pessoa, nos rumores e clamores do mundo, vincado no instante mágico de libertação do ser riscado no eterno. Com o poema erguido, o homem pretende tornar-se perdurável como ser imerso na temporalidade do que permanece e se desfaz.

Para Octavio Paz, a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo, cria outro. Pão dos eleitos, alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem, regresso à terra natal. Símbolo do desespero. Solidão em família. Signos e fome de situações patéticas. Dores do mundo.

Com o notável ensaísta mexicano, que trouxe relevante conhecimento sobre a compreensão da poesia, com o seu clássico O arco e a lira (2012), o poema é respiração, exercício espiritual,

Ali, em pleno salto, o homem, suspenso no abismo, entre o isto e o aquilo, por um instante fulgurante é isto e aquilo, o que foi e o que será, vida e morte, num ser-se que é um pleno ser, uma plenitude presente. O homem já é tudo o que queria ser: rocha, mulher, ave, os outros homens e os outros seres. É imagem, casamento dos opostos, poema dizendo-se a si mesmo. É, enfim, a imagem do homem encarnado no homem. (p. 187)

Da leitura de O labirinto de Orfeu (2014), não se fica imune à magia interligada na inventiva febril do poeta João Carlos Teixeira Gomes, sonetista dos melhores na tradição da literatura ocidental.  Seu livro é uma reunião de 145 sonetos, que se distribuem em três divisões: Canteiro da Tradição, Quatro Sonetos Diante do Corcovado e A Permanência da Forma. Traz como prefácio o longo ensaio Teoria e Prática do Soneto. Da fatura desses sonetos esplêndidos, vê-se à vontade engenho e arte, razão e emoção  nas construções que a musa possibilita, a pescadora de agonias, poderosa mulher que inspira os céus, dos quais  brotam versos com fulgores de amante em que tudo se concilia e entra em compasso.  Há uma milagrosa combinação de acentos de natureza diversa, vozes íntimas e estranhas, consoantes e vogais que convertem a frase como canto e música, tornando o poeta no fado irredimível o duplo de Orfeu.

O soneto é uma forma fixa de poema com quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos. O último verso é tido como “chave de ouro”, devendo surpreender e encantar com a sua revelação no desfecho. Nessa propriedade  de fechar o soneto com chave de ouro,  o último verso  sustenta a  ideia conduzida nos anteriores.

A paternidade de sua criação é atribuída a Pier  della  Vigna (1197-1249), poeta siciliano,  embora a  primazia da invenção  seja atribuída a outros nomes, segundo os estudiosos. O soneto foi introduzido em Portugal pelo poeta Sá de Miranda, no século XVI. Atravessou anos na península ibérica com a sua magia e capacidade de surpreender e fechar com louvor o último verso.

 O primeiro grande poeta a cultivar o soneto foi Dante, mas coube a Petrarca dar-lhe forma e conteúdo, imprimindo-lhe uma fisionomia própria, autônoma na estrutura modelar.  Combatido pelos vanguardistas, os protagonistas da Semana da Arte Moderna de 22 não lhe pouparam depreciações, alardeando-se a indignação de “fora a gaiola”, além de    outras referências nada agradáveis. Sua febre imperceptível fez com que atravessasse séculos, permanecesse até hoje reverenciado com fidelidade por poetas modernos, com vistas a atingir o nível superior da alma, como resultado do micro que logra o máximo na criação expressiva do poema. Em breve espaço operacional da criatividade, sustenta o ser em estado súbito da comoção. Essa cristalização de ideias em tão estreito formato de dizer poético manifesta-se no sonetista baiano João Carlos Teixeira Gomes como um exemplo positivo de criatividade poética, além de si e dos limites.

Essa forma de construção poética breve possui duas linhagens: a de Petrarca, composta de estrofes com dois quartetos e dois tercetos, e a inglesa, com três quartetos e um dístico.  A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas, através do verso decassílabo usado no soneto, considerado como o mais melodioso e harmonioso. Mas não se pode esquecer que há uma variação silábica na confecção dessa criatura minúscula, chegando ao ponto de ser encontrada até mesmo com um só verso na poesia modernista de Cassiano Ricardo, que alia virtuosismo experimental à beleza.

Nascem poetas que se tornam famosos com suas motivações expressas em poemas de fôlego, de verso extenso, mas que nem por isso deixam de cultivar o soneto. Lembremos de Dante, Gôngora, Quevedo, Garcilaso, Camões, ontem, Ronsard e Mallarmé depois, Pablo Neruda mais recente.  Na tessitura do poema, com vistas a um legado de dimensão necessária, ocorrem poetas que duram pouco tempo no mundo da poesia, saindo de cena cedo com o timbre peculiar de seu discurso, mas levando com ele como pontuação de sua obra os sonetos.

Na língua portuguesa, o soneto tem sido cultivado por poetas que se tornaram referência obrigatória na arte difícil e delicada de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são exemplos:  Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. No Brasil: Gregório de Matos, Cláudio Manoel da Costa, Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho e Vinicius de Moraes. Entre nós baianos ressalvem Ruy Espinheira Filho, Afonso Manta e  oão Carlos Teixeira Gomes, entre outros.

Em ensaio percuciente, que antecede aos não menos excelentes sonetos do livro O labirinto de Orfeu (2014), o ensaísta e poeta João Carlos Teixeira Gomes refere-se aos dois epítetos “sonetoso” e “sonetífero” criados como galhofa contra os autores de soneto.   Registra uma série de expressões em desfavor das andanças do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor formalista”, “chavão de segunda ordem”,  “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas” .

Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem dessa imbatível criatura nanica, sua garra permite que continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva   nos seus modestos passos de quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica e feitiço do imaginário atingir o ponto máximo do prazer na alma. Segue indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, de poetas célebres com suas criações em versos longos, eloquente quantidade de estrofes.

É dado a formar uma sequência quando vários poemas são ligados entre si por uma concepção e execução magistrais do tema, como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare.  Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.

Em labirinto de Orfeu, João Carlos Teixeira Gomes reafirma as qualidades de poeta expressivo, com maiúscula, que sabe a proeza da inspiração como manifestação da ‘outridade’ do homem. O soneto em suas mãos, até certo ponto divinas, é instrumento legítimo que se torna poema indelével de quem sabe arrebatar delírios, construir paixões, cultivar ilusões, carregar fardos, cair em desterros, colher perdas, erguer perjuros, elencar encantos, vestir-se nos vazios. De maneira impressionante, o soneto aqui abre-se à participação de um acontecimento festivo, raro, rico, exuberante. A recepção poética possibilita ao leitor a recriação do instante original. Transmuda-se o soneto em uma festa de imagens opulentas, uma comunhão do saber aliado à beleza para ser, espraiar na vida as zonas encantatórias do poder ser. É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no homem como resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de transcendência com assento em apetites e desejos. Dotado dessa voz estranha, em cuja inspiração tira o homem de si mesmo para ser tudo o que é, percebemos que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é de um legítimo poeta recriador de arquétipos, modelos, mitos. De algo que se confunde com cada um de nós, sendo evocação, recriação de uma experiência que ressurge de uma senda que está dentro do lado noturno de nós mesmos.

Muitos desses sonetos de O labirinto de Orfeu são joias raras. Usado nos moldes clássicos do decassílabo, o soneto do excelente poeta baiano opera com os hábitos do delírio, sonho, cantares de uma lira sempre tocada com as notas de unidades rítmicas com vistas ao alcance da imagem, a qual lateja a sensação de que poetizar é criar com as palavras, fazer poema com significação, mesmo que essa imagem do mundo transmitida pelo poeta custe a ele a indiferença aos seus sonhos constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.

Sonoridade que serve como vínculo do verso para salientar a significação, unidade rítmica que sustenta a ideia fluindo na estrofe como música, ardência que soa na rima com vibrações da palavra tradutora de inventiva rumorosa, que emana com luzeiros e fulgores, procedidos como hábitos e atitudes do poeta eficaz. São algumas marcas recorrentes do discurso desse notável sonetista, que não se intimida em adjetivar a substância constitutiva do conteúdo em cada verso.  Na sua experiência de sonetista competente, tudo isso acontece como um fato natural, de facilidade constitutiva, caracteres que por serem hábitos antigos instaura uma técnica que não exerce funções de iludir com o efeito ao leitor desprevenido. Não é adorno nem arranjo. Trata-se de atitude essencial na maneira de expor os movimentos da estrofação, assentada na cadência das unidades rítmicas, que não se desenvolvem como artimanha, no pior sentido. O sonetista sabe converter o artefato em sedução de lances primorosos.  Nas artes de iludir com a lira,  o exímio domador de frase na estrofe de dez versos  toca a alma com ventos que se confundem com os seus próprios laços, recorrências constituídas de dons propícios.

Navegador de agudas águas, timoneiro nas ondas como sonho, a festa do soneto nesse poeta baiano não é fuga vulgar, maneirismo, pelo contrário, evento que se irradia festivo, como “incenso da vida, no real atormentada.” E porque faz de uns belíssimos momentos do sonhar a sua enxada, “à glória de colher está propenso quem mais souber lavrar a terra alada.” Penitente que se impõe ao sacrifício, nesta saga doida e perdida, o poeta encarna-se nas batalhas do amor, submete-se aos tormentos do mistério. Como escravo da fiandeira do caos tem o peito levado aos desaprumos. Com a amada impune, tem a consciência de que essa astuta tecelã das doces malhas “vem da força do amor que prende e une”, do feitiço que espalha.

Prisioneiro de ânsias rumorosas, servo dessa mulher com finos dedos na tessitura de suas malhas, qual musa floral da rosa apetecida, o poeta, guardador de segredos que seduzem, sabe a beleza que ergue da vida o autêntico poema, com o instante luminoso riscado no eterno. Consegue grandes feitos com versos que são puras fantasias, falam da emoção no tempo que se repete, nunca para, nunca cansa, enche os silêncios reconhecidos no enigma, no obscurecimento do mundo. O sonetista modelar tem a dignidade de cantar e pensar com a ideia, pois está convencido de que a razão e a emoção são como os troncos vizinhos do poetar.

Inspiração e transpiração na dor presenteiam ao sonetista o seu vigor, plasmam com sabedoria o labirinto que esse Orfeu baiano caminha por entre tormentosa lida, sabedor que é como poucos do viver que está no logro da paixão, nesse amor que foi o sonho compartido pelo qual se tornou o duplo do amado por Eurídice.

Por castigo do fado que o faz cantor prisioneiro, o sonetista surpreendente em rimas e imagens comove o coração de quem o recita. Os seus cantos mais que perfeitos, que espantam com as tragédias, dramas e comédias, são como as chamas da paixão que o sujeitam, funcionam como frutos amadurecidos nas estações da vida e morte, de tudo que sobreleva à flama do viver que não perdura.

Há nesse labirinto de Orfeu, que João Carlos Teixeira Gomes ergue com mãos de mestre, o reconhecimento de que o soneto não é uma camisa de força, mas harmonia plena que a beleza atinge com uma rica combinação de signos, símbolos, mitos, arquétipos, unidades rítmicas, rimas, sentidos, um milagre do poema que é erguido com arte, engenho, alma e vigor perante a existência. Talento que se apresenta com uma eficiência espantosa. No resultado final da imagem presta-se ao fogo do amor, que cresce como luz na treva.

Referência

GOMES, João Carlos Teixeira. O Labirinto de Orfeu, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 2014.

 

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ALITANO- Wilson Caitano

Ser alitano
É ver além das palavras
Que dão vida à poesia
É perceber o quanto
É significativo e belo
Vibrar nas noites de autógrafos

Ser alitano
É honrar os versos
Que compõem seu hino
E se emocionar
com a sua melodia

Ser alitano
É compartilhar sentimentos
E perceber que todos
confraternizam com
os mesmos ideais de amor à literatura.

É ser consciente que a função da literatura
É mais que emocionar e divertir
Ela tem seu valor social de transmitir a cultura de seu povo.

Wilson Caitano
21/10/2023

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O AMIGO JORGE AMADO- Cyro de Mattos

Enviei o primeiro livro que escrevi para Jorge Amado, seguindo conselho do amigo João Ubaldo Ribeiro, companheiro de geração. Não esperava que viesse alguma opinião dele sobre o meu pequeno volume de contos, riscado anos depois de minha bibliografia por ter sido escrito por autor imaturo. O texto envelheceu cedo. Fiquei surpreso por ver um livro de autor desconhecido ser apresentado à Academia Brasileira de Letras com palavras favoráveis do consagrado romancista Jorge Amado.

Outros livros meus foram merecedores de artigos com elogio por parte de Jorge Amado. Eram opiniões impressionistas, mas abonadas com a sensibilidade de quem mais conhece os caminhos do fazer literário na recriação da vida. E mais: ele publicava os artigos que escrevia sobre meus livros em jornais importantes como A Tarde, Jornal de Letras (Rio), Suplemento do Jornal do Brasil, Jornal do Comércio (Rio) e Suplemento Literário de Minas Gerais.

Esses gestos do criador de Tocaia Grande (Record,1984) aconteceram com outros escritores, emergentes, com obra em andamento, consagrados, baianos ou não. Ele sempre enriquecia o companheiro de letras com suas opiniões, sem esperar nada em troca. Prefácios, orelhas, artigos, depoimentos, apresentações à Academia Brasileira de Letras, um legado literário da melhor qualidade está aí espalhado com o abono do escritor tão lido e traduzido em língua portuguesa sobre livros de nossos escritores. Textos que formam um valioso legado, se coligidos, servindo como importante contribuição à nossa literatura.

Com João Ubaldo Ribeiro era diferente. Certa vez, o autor maiúsculo do romance Viva o povo brasileiro (Nova Fronteira, 1984), disse-me que não escrevia prefácio ou artigo para quem recorresse aos seus préstimos porque podia não gostar do livro e aí o suplicante, que certamente queria receber elogio, poderia com a sua sinceridade se tornar um inimigo dele. Além disso, não queria se desconcentrar de seu ofício, sempre estava escrevendo um livro ou texto, não ia deixar de lado o que estava escrevendo e centrar-se sobre quem devia abrir seus próprios caminhos com suas ferramentas e crenças, sem se apegar na muleta alheia, mas acreditando nas suas qualidades.

Neste sentido, sempre concordei e respeitei as atitudes de João Ubaldo. Ele se tornou um dos meus amigos prediletos, criatura do bem, espírito alegre, colega inesquecível da turma de 1962, na Faculdade de Direito da UFBA. Nunca quis me aproveitar de meu bom relacionamento com o consagrado ficcionista e receber dele a opinião favorável de meus escritos. Fiz minha carreira literária com os meus textos publicados em livros, meus prêmios relevantes, que tornaram minha obra com mais visibilidade. Enviei em vários casos os originais de meus livros para as editoras, sem temer que fossem aprovados ou não para publicação, depois da leitura crítica do conselho editorial.

Ao escrever sobre Palhaço Bom de Briga (L&PM Editores, 1993), um dos meus livros para as crianças, em artigo publicado em forma de missiva, dirigida ao romancista Josué Montelo, então presidente da Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado chegou ao ponto de lembrar meu nome para fazer parte daquela importante instituição das letras brasileiras. Houve exagero. Só mesmo Jorge, com o seu coração doce como mel de cacau, podia distinguir assim meu nome, em gesto que comovia, servia como incentivo para que eu nunca desistisse em minha jornada literária. Embora eu já fosse autor nessa época de mais de vinte livros, entre volumes de contos, poesia e literatura infantojuvenil. Havia conquistado alguns prêmios literários importantes e, entre eles, o Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, por unanimidade, para o meu livro Os Brabos (Civilização Brasileira, 1979), o da Associação Paulista dos Críticos de Artes para O Menino Camelô (Atual Editora, 1992, 12ª. Edição), Menção Honrosa do Jabuti para Os Recuados (Editora Tchê!1987) e várias vezes fui agraciado com o primeiro lugar nos certames promovidos pela União Brasileira de Escritores (RJ).

Jorge Amado exercia a amizade como uma coisa nata, tão dele. E me mostrava sempre que com as mãos nas mãos, o gesto desprovido de interesses pessoais, desligado da religião do egoísmo, tudo fica mais fácil. Com ele não entravam no exercício da vida a inveja e a intriga. Dava-me conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida o artista vaidoso e invejoso como o homem.

Dizia-se ateu, ele que era cristão porque fraterno, solidário, sincero, humaníssimo. Que coisa muito triste, a vida física de Jorge ter acabado. E tanta gente ruim existe neste mundo velho agindo sempre para fazer o mal porque habita nos lados escuros da vida. Gente com a alma venenosa, às vezes quando tem o poder da mídia nas mãos gosta de fazer o outro como seu refém por puro prazer ou para infundir medo ou para, excluindo as qualidades do ofendido, se afirmar com seus ressentimentos

Ainda bem que Jorge Amado deixou para milhares não o irracional como norma de comportamento, a perseguição canina das negações que infunde o medo, mas a esperança nas narrativas que mostram as verdades essenciais dos excluídos ligados à comédia da vida. Esse que nasceu numa pequena fazenda em Ferradas, bairro mãe de Itabuna, passou a infância e juventude em Ilhéus para ser um bem-amado cidadão do mundo com seus belos romances, em inacreditável peripécia porque assim devia ser.

Que privilégio ter sido amigo de Jorge Amado.

*Cyro de Mattos é autor de 66 livros, de diversos gêneros. Possui muitos prêmios relevantes. Conquistou o Prêmio Literário Casa das Américas 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e Outras Histórias. Editado e publicado em Portugal, França, Itália, Espanha, Alemanha, Cuba, Dinamarca, Estados Unidos e Rússia. Membro da Academia de Letras da Bahia. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Distinguido com a Comenda Dois de Julho da Assembleia Legislativa da Bahia.

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A POESIA EXISTENCIALISTA DE WALKER LUNA- Cyro de Mattos

                    Nascido em Itabuna, no dia 6 de agosto de 1925, o poeta Walker Luna publicou os seguintes livros de poesia:  Estes Seres de Mim (1969), Companheiro (1979), Estações dos Pés (1983) e Na Condição do Existir (1999). Deixou inédito   Onde Os Fogos Se Cruzam. Inseri esse poeta em minha antologia Itabuna, Chão de Minhas Raízes (1966) e o indiquei para a de Assis Brasil, A poesia baiana no século XX (1999), como havia feito com Valdelice Soares Pinheiro, Firmino Rocha e Carlos Roberto Santos Araújo. No meu livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia (2020) dediquei o estudo “Ritmo Existencialista” sobre os impulsos da existência crítica desse poeta pouco estudado na Bahia. Poeta que fez do corpo a morada de sua solidão e que soube o quanto sua vida esteve em lugares e espaços com falares e gestos sofridos, reconhecendo que para entrar no interior dessa casa, percorrer os incômodos de seus cômodos, só existia uma porta, a da entrada.

          Dotado de uma linguagem fluente, Walker Luna move seu discurso num ritmo vertiginoso dentro dos limites do existir. Expõe essa paisagem estranha e solitária que comporta o ser humano na dor do viver. É poesia com qualidade vazada numa experiência humana vivida com intensidade, entre a amargura e a insônia, o sofrimento e a existência. É produzida em sua paisagem interior como um corajoso testemunho de resistência luminosa, acesa com as limitações físicas do autor, suportadas com dignidade e altivez. Mas seus versos, de plena lucidez nas estações que indiferentes trafegam, trazem acenos que nos descobrem no difícil gesto da existência com tons verdes, que são transformados em sumo vital, proliferam frutos.

         É sobre seu último livro, Na condição do existir (1999), publicado pela Secretaria da Cultura e Turismo, Selo As Letras da Bahia, em Salvador, que fiz algumas anotações de leitura. O seu discurso nesse livro é marcado novamente pelo enfoque de ressonâncias agudas na aventura precária comportada pelo ser humano ao assumir a vida. Na corrente do existir, o poeta estabelece o diálogo com o viver crítico do ser. Aqui, neste encontro de alma e soluço, realidade e sonho, sinto o pulsar de espantos e indignações como elementos essenciais de uma condição interior, mitificada por meio de imagens que ferem. Resvala por entre fendas, provoca dores, ressoa com o seu tom vertiginoso, suas angústias, que são as de todos nós, em todos os tempos. São momentos vertiginosos que não se escondem através dos rumores de nossos sentidos.

          O poeta sabe que, mesmo quando protesta na coerência falha dos mortais, /num aprendizado duro e sem termo/ na convergência de todo extravio, procede nas dobras do pensamento secreto e puro. E como lhe custa saber que na alquimia obscura da existência há o risco e o transe expondo situações perigosas, um ritmo secreto de contágio e fogo, uma canção onde as constantes influências dos clamores tocam-se nos extremos, faz e repete seu espanto feito de abismos.

         Emotivo sem ser lamurioso, porque consciente de que poesia é coisa séria, destituída de desabafos inconsequentes, imagens piegas, usa com engenho e arte o eu reflexivo, que não chega a ser conceitual no sentido estéril, hermético, fechado. Os versos de Walker Luna resultam de uma experiência humana de natureza crítica do homem solitário. Cercado de sombras, indagações, fugas, depressões, incertezas que queimam como fogo, sinalizam verdades na lucidez do sonho. Como na solidão passiva dos loucos descobrem-nos livres dos falsos ajustes/neste estágio maravilhoso/ entre a vida e a morte. Assim, o poeta inveja esta ausência total, desconhecimento da própria matéria,/ verdadeiros símbolos/ de pureza unânime.

       Em seu clima adensado de conflitos interiores permanentes, a poesia de Walker Luna está expressa nos limites do existir com a sua problemática subjetiva inserida na dor de viver, nesse estar do mundo das criaturas como cúmplices do sofrer ante o transitório e o inevitável. Vida é dor, disse o poeta Jorge de Lima, logo se vivemos, onde todos os fogos se cruzam, é porque sofremos. A dor de viver com toda a sua carga terrestre, as estações sempre em chamas, o ontem e o hoje como uma unidade que lateja nas cordas mais agudas da condição humana, essa é a matéria que nas visões oblíquas mantém propostas motivadas pelos golpes desferidos da vida e se transforma nos sinais poéticos da escrita operada com fluência para atingir aquelas zonas da ilusão, habitadas no sonho, que nos acompanha desde não sei quando e transmite verdades.

            Poesia de homogeneidade temática e formal, dá a impressão na sua fluência de um poema puxar o outro que se interliga pelo fio condutor do existir com dor. Na dicção crítica, um poema complementa o outro, uníssonos todos formam uma conjunção de gritos nos becos do homem, sem saída. Concepção na ideia e execução no discurso tenso unem-se sem esforço neste poeta sempre a deflagrar a dor de viver no absurdo do tempo conflitante entre o eu e as perplexidades,  capturado na constatação de  uma situação de alma, possuída pelo desencanto de lugares e espaços.

        Plasmada no ritmo agudo da existência, recuperando vivências, projetando uma canção cheia de delírios, esta poesia mostra como o poeta deve usar a palavra com suas imagens e metáforas precisas para alcançar aquele nível expressivo, íntimo da boa fatura estética. Com a força dos que amam, a poesia de Walker Luna dá um testemunho dos que sofrem com lucidez quando então buscam na tristeza, na angústia, a alma de todos nós, seres contraditórios, finitos, confinados na condição do existir.

           Walker Luna é o patrono da cadeira 9 da Academia de Letras de Itabuna, que tem atualmente como ocupante Rilvan Batista de Santana.

           Faleceu em 3 de julho de 2007, em Jundiaí, São Paulo.

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O HUMANITÁRIO BIONOR REBOUÇAS- Cyro de Mattos

 

Homem alto, forte, voz grossa e mansa. Gostava de usar boné. Era sempre visto na feira do Centro Comercial aos sábados. Cedo recolhia com a pequena cesta donativos para a feira dos pobres. De porta em porta, na semana, pedia ajuda para a construção de mais leitos no albergue.

Dormia pouco, o tempo disponível era dedicado ao próximo. Dor é vida, sofremos porque estamos na vida, li no poeta Jorge de Lima, o criador de A Túnica Inconsútil, A Invenção de Orfeu e Anunciação e Encontro-Celi, elevadas expressões da construção poética no Brasil.

O homem que usava um boné ensinou que a vida se torna leve e sensata quando habitada com amor. Há milênios que as religiões estão tentando mostrar ao ser humano que só o amor constrói. Braço ao abraço a rota fica mais fácil. Há milênios nós os humanos estamos construindo a história de nossa condição com intolerância, luxúria violência, egoísmo. Com uma escrita às avessas, desviada da ternura, mais para urubu do que para curió. O que sabe hoje o nosso pobre coração humano de Deus? Do enigma, da dor e do amor? Preferimos quase sempre o uso da avareza, ambição e inveja em forma de negações.

Essa lição fácil, dar alpiste aos desvalidos, pássaros tristes com as penas doídas, aquele homem de coração solidário ensinou no dia a dia. Por onde andou o seu coração foi para dizer que Deus existe. Podemos senti-lo na flor do coração. Basta amar o outro para o Cristo, eterno salvador da humanidade, renascer em cada um de nós. A flor do coração se percebe em outros que a ele, com o gosto de ser missionário, se juntam. O semeador de esperança no país dos frutos dourados, valendo como ouro, mostrava que viver tinha sentido com o gesto frequente da fraternidade, de amor sem apego aos valores materiais, o qual inúmeras vezes faz os seres humanos subalternos aos lados escuros da alma. Mostrava isso no chão onde o emblema da vida consiste em perseguir o dinheiro como a chave de todas as coisas. É usado para ferir a virgindade e a pureza fazendo da vida um ato de cobiça que se fundamenta na rota do poder e a glória.

 Homem filho de um território onde no início matava-se e morria por um pedaço de terra fértil, numa fome sem precedentes. Ensinou que a vida tem sentido com excesso de pobreza. Como pode vencer léguas do chão áspero e construir grande abrigo para centenas de pássaros sem voo e canto? Recolhidos aos dias tristes, de abandono e solidão? Acreditava que a morada neste planeta é possível com todas as mãos numa só mesa como cantiga geral da universal comunhão.

Ghandy lembra que a cada dia a natureza produz o suficiente para nossas carências. Se cada um de nós tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo. Ninguém morreria de fome. O genial Charles Chaplin fala do caminho da vida com beleza e liberdade. Lamenta que tenha ocorrido o desvio da ternura. A cobiça envenenou a alma dos homens, ergueu muralhas de ódio no mundo, fazendo-nos marchar a passos de ganso para a miséria e horror dos morticínios.

Aquele homem, que usava um boné xadrez, gostava de oferecer uma rosa a qualquer um quando percorria a cidade, em seu rito de recolher donativos para os pobres. Em linguagem simples dizia que todos nós somos missionários. Consistia a prática em doar-se ao outro, semear o amor entre os excluídos de uma vida digna, muitos deles sem saber a razão de tanta fome e sede.

Ele, Bionor Rebouças, o pai, o filho, o irmão. Um homem como outro qualquer. Homem do bem, desprovido da ganância e outras mazelas. Um libertador para os enfermos do Albergue Bezerra de Menezes. Um anjo que desceu do céu.

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