DISCURSO DA COMENDA DOIS DE JULHO-  Cyro de Mattos

Estou saudando os componentes da mesa na pessoa do deputado Marcelinho Veiga. Agradeço a Deus por ter me dado a vida; à esposa Mariza, pela tolerância e amor durante 55 anos de união física e afetiva, aos filhos e netos pelo incentivo na construção de meu legado.

Agradeço ao amigo de longa data, Joaci Goes, pela generosidade, apanágio de seu caráter, ao lembrar-me de maneira acalorada, em várias oportunidades, que eu merecia essa honraria.

 

Senhoras e Senhoras.

Eu era aluno do curso clássico no colégio da Bahia (Central) quando escutei de meu professor Luís Henrique Dias Tavares que a Bahia e o Brasil eram inseparáveis. Meu professor era um homem de estatura pequena, mas que carregava no coração um forte amor e na razão um grande saber pelos caminhos históricos da Bahia. Observara em sala de aula, naqueles idos de 1956, que essa união insuperável procedia do fato de que o Brasil exerceu sua verdadeira independência em solo baiano. No entorno deste chão amado, onde aconteceu o embate, houve o abraço dos mares da Baía de Todos os Santos para que os baianos se libertassem do jugo do império português.

O movimento social e militar começou em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho vitorioso em 2 de julho de 1823.  Este memorável Dois de Julho tornou-se data de máxima importância para os baianos, que a festejam todos anos com a alma revestida de fervor e sentimentos de louvor. Foi um movimento pelo desejo federalista emancipador do povo baiano, com vistas a inserir a então província na unidade nacional brasileira.

Sabemos que a independência do Brasil na Bahia não foi feita em gabinetes e salões, não aconteceu com um brado retumbante, mas nas ruas, nos campos de batalhas, com feridos e mortos. Contou com a participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos, gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance significativa no desenrolar da pugna. O general Labatut sobressai como comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.

É bom não esquecer   a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os portugueses tomassem o convento da Lapa.  E a de Maria Quitéria, valorosa mulher com coragem incomum para combater os adversários portugueses no Recôncavo.  Vestida numa farda de soldado, com a arma na mão, lutou contra os portugueses na barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações. João Francisco de Oliveira Botas, conhecido como João das Botas, português de nascimento, aderiu à causa brasileira da Independência. Comandou uma flotilha de embarcações e protegeu a parte interna da Baía de Todos os Santos e a Ilha de Itaparica.

Cronistas registram que, na madrugada de Dois de Julho de 1823, a cidade de Salvador amanheceu quase deserta: o exército português deixou em definitivo a província da Bahia. Alguns dizem até que o dia nasceu bonito, sem as chuvas de junho. O sol brilhou com seus raios de cegar a vista. Dois de Julho daqueles longes acontecia assim com o esplendor do sol, para ficar na reverência patriótica dos baianos que, desde então, estabeleceram a tradição de comemorá-lo anualmente com a repetição da entrada do Exército Pacificador na cidade de Salvador. De uns anos para cá, o caboclo e a cabocla foram introduzidos no cortejo patriótico como homenagem prestada às gentes indígenas que contribuíram para a vitória dos baianos no confronto.

Foram brasileiros que, com armas em suas mãos, de fato libertaram a Bahia da opressão do Império Português, começando o movimento em Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, São Francisco do Conde, Nazaré das Farinhas, Jaguaripe, Saubara. Formavam um exército em frangalhos. Depois se juntaram a esses pobres brasileiros outros que desceram lá de Caetité, de outras partes do sertão e da Chapada.

            Na pugna ferrenha não se sabe ao certo como o corneteiro Luís Lopes tenha ficado no coração dos baianos.  Se a versão da história contada é verídica ou não, tudo se torna mais intrigante e ao mesmo tempo mais nebuloso.  Nenhum estudioso tem informações aprofundadas sobre o assunto, mas o que se sabe é que ele participou do conflito que ficou conhecido como a Batalha de Pirajá, onde provavelmente teve um papel decisivo. Propaga-se no imaginário popular que em vez do toque de “recuar”, deu o sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros tinham recebido reforços.

O movimento que deflagrou a independência do Brasil na Bahia motivou a Castro Alves a escrever um poema de versos magníficos.  Em Ode a Dois Julho vemos um discurso eloquente elaborado com imagens candentes da esperança e da liberdade. Numa só voz, juntas, evocam a peleja entre o clarão e as trevas.  O libertário poeta dos escravos, construtor de uma poética solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos veementes canta a liberdade como o sentimento mais valoroso que envolve os baianos no palco do confronto.  Como noiva do sol, a liberdade, essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta mais amado pelos baianos.

Em um dos trechos do célebre poema, ele diz:

 

Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!…

            E finalizava seu ardor de poeta libertário com esses versos:

 

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito…
Um trapo de bandeira — n’amplidão!…

           A Assembleia Legislativa do Estado da Bahia veste-me agora com as cores pátrias dessa data histórica, que expressa os sentimentos libertários de brasileiros em terras baianas, nos mares da Baía de Todos os Santos, nos céus de Nosso Senhor do Bonfim, nas veias históricas de nossos irmãos. Distingue-me com honraria tão elevada, que recebo como reconhecimento ao meu legado forjado ao longo de mais de sessenta anos no ofício de escritor e divulgador da cultura.

Graduado em direito pela Universidade federal da Bahia, exerci a advocacia durante mais de 40 anos na comarca de Itabuna e outras do sul baiano. Fui advogado por profissão, meu pai assim queria, pensando no melhor ´para o filho. Dessa experiência colhi frutos ricos sobre as circunstâncias críticas dos humanos no seu estar da vida. Soube que sem o direito não há democracia, a liberdade, como o valor mais poderoso que adquirimos ao longo dos séculos. Não se dá a cada um o que é seu.  Não há a paz. Predomina a lei do mais forte. Exerci o jornalismo com passagem na imprensa do Rio. Foi um aprendizado importante para saber da linguagem precisa e ágil sobre o fato que se pretende divulgar ou analisar no seu teor informativo da verdade. Mas ser escritor e poeta foi sempre a minha paixão.  Nesta fico caracterizado por força do destino como o animal gregário entre o alegre e o triste, o fabricante de incertezas e contradições no uso da palavra mítica que reinventa a vida.

Já escutei dizer que não serve para nada tal ofício diante das necessidades que a vida propõe no cotidiano. Sonhos não enchem a barriga de ninguém. De fato, pode até não resolver nossos problemas econômicos, políticos, sociais, filosóficos, religiosos, porém, devolve aos seres humanos o que só a eles pertence. Sem as artes não se tem a emoção, a vida passa sem graça, não se dá novos sentidos à razão e, na pobreza mental, sucumbimos como aderentes à ignorância da matéria. Não passamos de cadáver ambulante que procria, como observou o poeta Pessoa. Nesta vida do ar, sonhar e amar, é, portanto, o que sou de fato.

Ah, poesia, flor e vento, ao inventar-me como um grão no deserto onde tudo arrisco, no qual inocente respiro, mostras o quanto gostas de mim. É quando então sou das incertezas erguido muitas vezes, afugentas os meus medos e me sustentas nos meus ermos. Sem a tua companhia, que irriga minhas artérias como a chuva a terra nas suas mil línguas, não há a lágrima, o beijo, o riso, o epitáfio. Não há o reconhecimento, a cumplicidade, o sentido.

É assim que recebo dessa ilustre Casa Legislativa a relevante distinção dessa Comenda Dois de Julho, como reconhecimento aos meus mais de sessenta anos dedicados ao bem-estar dos outros, à progressão da cultura e à valorização da arte literária.

Aos que acreditaram em minha aventura para chegar até aqui, àqueles que com as suas presenças abrilhantaram este momento, fazendo-me cativo do afeto com seu gesto bondoso, externo nosso agradecimento. A todos vocês que vieram prestigiar o evento de elevada importância para o homenageado, agradeço comovido. Muito obrigado.

Salvador, Bahia, 10 de agosto de 2023

* Cyro de Mattos é autor de 67 livros pessoais, de diversos gêneros. Publicado também em Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha, Dinamarca, Rússia, México e Estados Unidos. Conquistou com Os Brabos, novelas, 1978, o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, Menção Honrosa do Jabuti, 1988, com Os Recuados, contos, o Prêmio de Romance do Pen Clube do Brasil, com Os Ventos Gemedores, 2017, e o Prêmio Internacional Casa de las América, 2023, para Infância com Bicho e Pesadelo e Outras Histórias. Membro das Academias de Letras da Bahia, de Itabuna e de Ilhéus. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador e Comenda Dois de Julho da Assembleia Legislativa da Bahia.

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