Produção Literaria

CHUVA DE JANEIRO – Cyro de Mattos

Depois que o marido faleceu perdeu o interesse pela vida. Vivera com ele trinta anos de casada e soubera que o calor do corpo aquece o amor. Quando se é idosa, a experiência de vida diz que esse calor do corpo some, ainda mais quando o seu homem já não está mais ao seu lado para consumar o ato mais prazeroso da vida.

Os dois filhos estavam casados, viviam no exterior. Ela morava em um apartamento de quarto e sala. Passava com a aposentadoria de professora estadual. Todos os dias seguia para a pensão onde fazia a refeição do almoço. Sentava em uma mesa reservada para ela no canto da sala.  Lá viu pela primeira vez o homem de cabelos brancos que olhava para ela. Tinha um brilho diferente nos olhos.  O olhar dele se repetiu nos outros dias, deixando-a sem jeito. Ficou assustada quando ele se levantou de sua mesa e pediu permissão para fazer-lhe companhia durante a refeição.

Disse que era um viúvo aposentado, fora funcionário do Banco do Brasil. Um dia convidou-a para passear no parque. A princípio relutou, mas diante da insistência dele outras vezes, resolveu aceitar o convite.  Conversaram sobre a vida, seus momentos entre o alegre e o triste, foram se tornando íntimos.  Num ponto concordaram, viver sozinho, sem ter ninguém como companhia, era ruim. Deram uma volta no jardim, sentaram no banco embaixo da árvore frondosa. Jogaram migalhas para os pombos e para os peixes na lagoa.

Na tarde fresca, um vento morno passava no rosto dela em finura de  lenço e leveza de carícia. Um casal de namorados, em cada beijo que sorvia nas bocas ávidas, revelava que a vida era boa e bela, assim no calor que se estendia por toda a extensão da pele só podia ser dado valor a ela. Ele fez questão de levá-la até o prédio onde ficava o apartamento dela. Na entrada do pequeno edifício olharam-se em silêncio antes de cada um querer dizer algo ao outro, que eles mesmos já sabiam o que era e que pulsava como uma chama que lampeja dentro. Talvez um convite para conhecer o apartamento de perto por ele. Convite dessa natureza seria impossível, embora houvesse no rosto de cada um deles o olhar cintilante de brilho.

          Ele disse:

– Muito obrigado.

Ela disse:

– Obrigada digo eu.

Despediram-se com leve aperto de mão.

Era janeiro e ainda não havia caído a chuva de verão.

Daquela vez quando terminaram de fazer o passeio pelo parque, ele a convidou para conhecer o apartamento dele. Era também um quarto e sala. Ela perguntou quem fazia a arrumação e o asseio. Respondeu que havia contratado uma faxineira. Vinha duas vezes na semana fazer a faxina. Notou que certas coisas não estavam no lugar devido. Fez a arrumação com esmero.  Limpou a poeira na mesa e nas duas cadeiras. Deu brilho em alguns objetos domésticos. Um pouco cansada foi tomar um banho no chuveiro de água quente. Vestiu o roupão que pertenceu a ex-mulher dele.

Ela sorriu quando ouviu o convite para ir se deitar com ele.

Então vieram os primeiros beijos. O ato para que alcançasse o auge exigia concentração e esforço. E aconteceu o máximo quando o prazer de ambos ao mesmo tempo precipitou a vertigem. Souberam que ainda restavam um pouco neles daquilo que motiva a vida. Era preciso de agora em diante aproveitar bem antes que não restasse mais nada. Foram alguns anos de convívio harmonioso, decorrente da união sem atrito entre o espírito e o corpo, que acordava rejuvenescido, embora no estado de fuga repentina em cada vez que o ato se consumava dentro algo precioso ia ficando longe nos seus contornos definidos.

Quando ocorreu aquela primeira vez em que dormiram juntos, ela lembrava agora, acordou no final da tarde. Movimentou-se no quarto com cuidado, não queria interromper o sono tranquilo dele. Foi até a janela.

 E, cheia de vida, ficou olhando cair pelo vidro a chuva de verão.

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COLO-COLO: UMA LIÇÃO INESQUECÍVEL! Por Marcos Bandeira

 

O Colo Colo nasceu de um sonho de idealistas que buscaram inspiração no time chileno com o mesmo nome e nas cores do Boca Junior, um dos times mais apaixonantes da Argentina. A saga de vencedor que seu hino entoa brotou do coração de todos aqueles que lutaram e construíram sua história nos gramados baianos.

Fundado em 1948, sagrou-se campeão baiano de profissionais no dia 28 de maio de 2006 no Barradão, contra o poderoso Vitória. A cada jogo do Colo Colo naquele campeonato, irradiava-se a vibração de seus atletas, a emoção da torcida, a esperança de uma boa participação e ao mesmo tempo a sensação experimentada por alguns de que o time já teria chegado longe demais.

É de louvar-se naquele campeonato a inesquecível habilidade e o compromisso do presidente José Maria Almeida de Santana, o Joseph Marie, que diante de gritantes adversidades soube liderar e construir um elenco de vencedores: a sua determinação, competência e paixão conquistaram a confiança de seus atletas com pequenos e significativos gestos, quando por exemplo, ofereceu um Natal digno aos jogadores que mesmo possuindo vínculo com o clube, ainda não recebiam salários.

Grandiosa foi a sua liderança ante o desalento dos atletas após uma cansativa viagem de ôni

bus quando sofreram uma derrota, substituindo um sermão por um churrasco, no propósito de fortalecer os laços daquela família de vencedores e transformando o time bom num time campeão. Inesquecíveis, a tranquilidade de Marcelo e suas portentosas defesas, a eficiência dos laterais Alexandro e Wescley nos aspectos defensivo e ofensivo, a qualidade técnica do zagueiro Rodrigo, a consistência de Sandro e Melqui na frente da zaga, a regularidade de Juninho, o talento de Jânio com seus dribles curtos e chutes de fora da área, a maturação de Gil, responsável pela maioria das articulações das jogadas e por vários gols de bola parada, a versatilidade de Jamaica e o encantamento do futebol de Ednei, artilheiro nato, que partia para o zagueiro, no estilo “Romário” dos bons tempos e que tinha como poucos, a tranquilidade necessária diante do arqueiro e qualidade apurada no arremate final.

Sem dúvida, o maestro Ferreira foi o melhor técnico da Bahia na época: pessoa simples, educada, estrategista e líder, sempre teve o time na mão, fazendo as correções no intervalo do primeiro para o segundo tempo e as alterações no momento certo e com a pessoa certa. A cada vitória, a cada avanço na tabela de classificação, o resgate da autoestima dos ilheenses carentes de uma grande conquista manifestada por sua frenética torcida utilizando bandeiras e camisas, transformou-se numa verdadeira “febre amarela ilheense”.

Mesmo apresentando um excelente futebol e tendo conquistado o 1º turno no Barradão contra o Vitória, o Colo Colo sempre foi visto com desconfiança por alguns jornalistas da capital, os quais, indiferentes, se referiam ao Vitória como o melhor time do campeonato e que a conquista do Colo Colo teria sido um acidente. Também a arrogância, a inquietude e a prepotência do técnico Arturzinho do Vitória contrastavam com a humildade, simplicidade, serenidade e competência do técnico Ferreira que enfrentou o Vitória por seis vezes e não perdeu nenhuma partida, ganhando três, duas delas na própria casa do adversário e conquistando títulos.

Aquela conquista do Colo Colo sob a liderança do grande técnico e o empenho incondicional de cada atleta servem até hoje como uma lição inesquecível a ser aplicada em qualquer atividade humana em grupo ou individual, pois a vitória final será sempre o resultado das perdas e ganhos das batalhas travadas ao longo de uma jornada: é preciso planejar, ter espírito de união, acreditar em si próprio, aglutinar forças em torno de um objetivo comum, liderar sem precisar utilizar o poder desmesuradamente, olhar além do horizonte, ter olhos de tigre, perseverar, respeitar o adversário sem se apequenar, ter serenidade para superar as adversidades mesmo que tudo pareça perdido e acima de tudo saber perder, pois a vida é feita de perdas e ganhos.

A conquista do Colo Colo no campeonato baiano de 2006 não foi somente de Ilhéus, mas de todo o interior da Bahia, por fazer acreditar que se pode construir uma equipe vencedora. Na verdade, essa conquista poderia servir de lição ao Bahia e ao próprio Vitória, pois assim, sem escamotear seus verdadeiros estágios, fariam seus dirigentes refletirem e repensarem seus projetos e reestruturarem seus elencos para retornarem à 1ª Divisão do Campeonato Brasileiro.

Grande admirador do Colo Colo e acompanhando quase todos os jogos, experimentei grandes emoções percebendo gradativamente a evolução da equipe e testemunhando o triunfo definitivo do time contra o Esporte Clube Vitória ao sagrar-se campeão baiano de 2006 no Barradão. Naquele dia glorioso, a convite do presidente da Federação Baiana de Futebol, tive acesso ao gramado do famoso estádio, dando a volta olímpica com a equipe do Colo Colo.

Ex-atleta do Colo Colo, aprendi a grande e inesquecível lição cravada na memória e na história do clube: um campeão não se faz de véspera e nem ocorre por acidente, como admitiu depois, o próprio técnico do Vitória, mas se constrói com muita luta, união, abnegação, respeito, competência, perseverança, simplicidade e serenidade. Aprendi que é preciso tempo para se formar uma equipe e que esta precisa de um líder que motive e incentive seus comandados extraindo o que de melhor cada um deles possa oferecer na certeza de que não há vitória sem luta, perseverança, humildade e respeito ao adversário, requisitos indispensáveis a um grande campeão.

*Marcos Bandeira – Juiz de Direito aposentado, advogado, professor de Direito da UESC, membro da Academia de Letras de Itabuna e ex-jogador de futebol do Colo Colo

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ELZA SOARES- Cyro de Mattos

Morre Elza Soares aos 91 anos

            Arrebatava a plateia com seu ritmo musical diferente, que arranhava a garganta e brincava com o som. Vi de perto em minha juventude quando deu um show de espetáculo cantante ao se exibir com uma voz esplendorosa no Cine Teatro Itabuna e no Clube Social de Itabuna. Sua voz era puro jazz na garganta inflamada, no melhor proveito, improviso e efeito. Uma desordem musical causando harmonia impetuosa e prazerosa.

            Uma mulher negra, que veio da pobreza, na favela com a lata d’água na cabeça, no morro ainda adolescente subia e descia, não se cansava, noite e dia.  Em condições precárias cantava para enganar a difícil dureza da vida e foi se descobrindo com uma entonação musical que só ela tinha, cheia de malabarismos vocais.

            Voz das vozes, flor do samba que expandia alegria para quem a ouvisse, contagiando a todos com aquele timbre musical forte. E assim com seu jeito de cantar versátil ganhou o mundo, nos lugares mais distantes mostrou que o Brasil é grande quando beneficiado com criaturas como Elza e outras do mesmo naipe.

            Que mulher incrível com sua entonação musical! Eu só acreditava porque estava vendo, como era que ela fazia aquilo com a voz? Só podia ganhar o mundo, com indiscutíveis méritos e receber os beijos merecidos da glória.

            Trouxe no coração Garrincha, o gênio de pernas tortas, a alegria do povo com os seus dribles incríveis. Quando o craque já não mais valia para o futebol, como mulher corajosa deixou que se fosse no jogo adverso da vida. Amparou seu menino grande, aquecendo o corpo do campeão mundial de futebol com a febre do amor, adoçando o seu coração quando o sentia com a cor triste da manhã e a incerteza da noite.

            Notável exemplo de vida. Acredito que tenha ido para o lado de lá, na sua viagem sem volta, cantando e sambando. Levou Elza, na sua chegada do lado de lá, meu beijo gravado no lado de cá quando eu a ouvia cantar e ficava com uma vontade assanhada para sambar. Não somente eu, mas quem gostasse de viver com o ritmo delirante do samba.

Elza Soares morre aos 91 anos; cantora faleceu de causas naturais
*Cyro de Mattos é escritor e poeta, premiado no Brasil e exterior.

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TRÊS POEMAS DA LUA- Cyro de Mattos

Moça bela

Em luares de relva
Na rede embala-me
Nudez tão pura.
Bafeja meu rosto,
Veste-me de sonho.
Para o céu me leva
No colo que flutua

Lua, ó lua,
Moça bela,
Toda nua.

O menino e a lua

O menino sonha com a lua
acima da nuvem escura
fazendo descer para o rio
uma comprida luaranha.

O menino sonha com a lua
no céu de estrelas, cintilante,
aquele pedaço da frente
ele abocanhou na crescente.

O menino sonha com a lua
chamando-o pra brincar no areal
deixado pela grande enchente.

Lá ele cata muita prata,
depois é levado pro céu
no colo da lua risonha.

A cidade e a lua

Toda ela iluminada
flutua no colo da lua
que lhe trouxe rosas.

Ó encantos! Ó perfeições!
Carícia e frêmito de sonho.
Suspiros de ternura.

Brilha cantiga da beleza,
a cidade no eterno pervaga,
perfumes a noite exala.

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SOBRE “A SOMBRA NO ESPELHO” O SECRETO ARQUIVO DE ENIGMAS- Tica Simões

 Sobre

A SOMBRA NO ESPELHO

O secreto arquivo de enigmas

O olhar de Tica Simões

Um livro para leitores curiosos…

Esta obra sobre afrodescendência intriga especialmente pela repetição especular que ocorre na estória e a multiplicidade de focos do discurso. A estória, em abismo, contém outras narrativas dentro de si, provocando a reflexividade literária. O discurso faz narrador dentro de narrador, um gestando o outro. O engendramento ficcional autotextual[1], enquanto reduplicação interna, se resolve em processo de  mise en abyme[2]: “um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos”[3].   Embora possa se configurar somente no nível do enunciado, esse processo em abismo pode ocorrer, de forma mais complexa,  abrangendo a enunciação, como é o caso deste livro de Ruy Póvoas. Por que utilizar estórias dentro de estórias? E vários focos de discurso? Qual a intenção do autor?  Como ele se beneficia disso para a produção do texto literário?  São perguntas (enigmas?) a serem respondidas (ou não) no caminhar da leitura…

A estratégia em abismo é insinuada desde o título, A sombra no espelho. Que sombra? Por que espelho? Uma identidade cindida? Ou uma chamada para narciso? E o narciso seria o personagem ou o autor? Mas qual autor? Já, aí, um abismo anunciando uma questão de estrutura. Será a intenção de RP criar um jogo capaz de produzir, no leitor, uma sensação de estar entre espelhos, contemplando suas inúmeras reflexões? Ou faces?? Se o título sugere o olhar  a si mesmo, “a circunstância do não dito”, a epígrafe Orixá metá  aponta crença. E o subtítulo – O Secreto arquivo de enigmas –  anuncia um jogo interminável de “segredos” a descobrir? Prevê abismos contidos no secreto arquivo  a ser relatado? A primeira epígrafe já promove a dúvida: “o que se diz nem sempre é tão importante”.

Em sintonia, os paratextos: agradecimentos, dedicatória, epígrafes abrangem as  áreas ligadas à busca de si mesmo, da análise do discurso e do religioso nagô.

Ruy Póvoas apresenta o livro, circulando entre o real e o imaginado. Fala da condição do povo nagô, com olhar sobre o social. Enquanto apresentador, diz que são quatro os narradores ficcionais:  Alcina, enquanto organizadora do texto; Ranieri, autor da estória; Marcelo, personagem/narrador; o Marotti, editor. Autotexto de enunciação, portanto. São, pois, esses narradores-personagens que promovem os abismos do discurso. Ao final da sua apresentação, RP instala dúvida no leitor, quando inverte o preceito e diz: “qualquer semelhança com a realidade será a vida  imitando a arte”.  Será isso o primeiro Enigma a desvendar?

Embora semelhando paratextos, “Três bilhetes” são falas de personagens; iniciam o processo ficcional. O primeiro bilhete é de Alcina que envia o livro do marido Ranieri para a publicação pelo editor Marotti.  O segundo e terceiro bilhetes são de Marotti,  para Luisa,  revisora do texto; e para Alcina, em resposta.  E por que um editor-personagem? Esses três bilhetes, então, promovem abismo de enunciação, chave dessa trama autotextual do afrodescendente Marcelo.

Em “Missão executada”,  prefácio ficcional, Alcina esclarece a história do manuscrito do marido. E conta como tratou todo o material recebido.  Fazendo isso, Alcina não se torna coautora? Afinal, como ela afirma, recebeu um material que “era uma verdadeira barafunda” e o organizou a seu critério e deu corpo ao texto! E o leitor pode-se perguntar: nesse trabalho, Alcina não terá dado uma especial base tonal ao texto?  Terá se imiscuído, dessa forma, no discurso da narrativa de Ranieri? E  outro possível enigma: O texto de Ranieri será autoficção?  As insinuações de Alcina alertam o leitor a se questionar sobre o discurso; de quem é o ponto de vista narrativo? Então, será todo o texto construído a partir de dúvidas?  Enigmas?

Ao assumir a narrativa (capítuloRompimento”), Ranieri já velho, mudado, relembra a infância e resolve criar Marcelo, a sombra no espelho, que assume o relato e fala para um bem-te-vi morto.  Morto o passado??

Entre vivências e sonhos (capítulos deSonho” ao “Chamado”),  Marcelo relata a busca de si mesmo, através dos vários processos terapêuticos. Inicialmente, devido à incompreensão sobre a sua condição mental; e o seu percurso, vida: doenças, psiquiatras…  Depois, leitura de búzios, astrologia, psicologia analítica, interpretação de sonhos… Serão autotextos da “sombra” de Ranieri?  O capítulo “Chamado” finaliza o arquivo de Ranieri, com a conclusão da narrativa de Marcelo que, finalmente, assume a sua religiosidade nagô. Fica, para o leitor, a compreensão da identidade, na solução da cisão da personalidade: luz e sombra.

A circularidade do texto leva o leitor de volta a Ranieri ou ao autor Ruy Póvoas, agora Babalorixá? A vida imitando a arte ou a arte imitando a vida? E aqui lembro as palavras de Mia Couto, na live de 20/5/2020, sobre os seus personagens: “sou sempre eu, alguma face de mim”.

Mas não acaba aí o texto ficcional; termina a estória, mas não termina a ficção. Alcina retoma a narrativa, em “Elegia”, provocando outros questionamentos ou…  abrindo, mais, o secreto arquivo de enigmas? Enigma 1: um livro é como um filho – a arte faz permanecer depois de morto. Enigma 2: a dubiedade de uma personalidade: ser um, sendo outro.

Enigma 3: entendimento da sombra; as “estranhezas” de Marcelo; o percurso dos vários caminhos; personalidade cindida ou uma questão espiritual?  Enigma 4: “Creio-te vivo, e morta te pranteio” –  o enigma maior:  vida e morte.

Os enigmas do discurso estão no texto integral de Ruy Póvoas: uma narrativa dentro da outra; um narrador puxado pelo anterior…

A mudança de Alcina, no primeiro texto confusa, buscando vencer uma sua lacuna de possível incompetência; no final, vitoriosa, tranquila, seria também um resgate do feminino, através da mãe de Marcelo, coitada, sempre culpada de tudo…  Porém, no fim, com a vitória de Marcelo, reconhecida e resgatada? Seria mais um enigma ligado ao feminino?

E mais: Ruy Póvoas cria personagens agnósticos (como também aconteceu no seu livro A Viagem de Orixalá) como forma de justificar e explicar os estudos de religião de matriz africana? São muitas as questões. E a enunciação, em discurso múltiplo, sustenta os enigmas: Ruy Póvoas, Alcina, Ranieri,  Marcelo, Marotti. ­­ Esses, apenas alguns dos abismos …  A circularidade discursiva insinua o eterno recomeço.

Se a principal razão da narrativa em abismo é traçar paralelos com a estória principal, cada camada pode ser encarada como uma releitura, ou um simbolismo do que o leitor acompanhará nos outros níveis. Essas camadas adicionam novos sentidos à estrutura e podem servir para suscitar enigmas, incutindo algumas ideias no leitor; acrescentam opiniões atuais às suas memórias do passado, os fatos apresentados mudam de forma: passamos a olhá-los de outra maneira. Nesta obra de Ruy Póvoas, essa estratégia é forma de enfatizar as buscas do processo terapêutico. Tal processo afirma, também, uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência autoral estética, que se evidencia através da redundância textual, e que reforça a coerência ficcional .

Ilhéus, outubro de 2020

MLNetto Simões

 

[1] DÄLLENBACH, Lucien . “Intertexto e autotexto”. In: Intertextualidades. Poétique, 27. Trad.: Clara Rocha. Coimbra, Almedina, 1979, p.53.

[2] Termo de André Gide.  In: 1893 ( Gallimard, Pléiade, 1948)

[3] DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur la mise en abyme. Paris, Editions du Seuil, 1977, p.64.

 

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CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos

Nunca vou dedicar um texto ou livro meu a quem andou comigo na jornada da vida. Não vou dedicar à Sônia Maron, inserindo abaixo do título o registro “de saudosa memória”. Recuso-me à submissão da homenagem com essa feição de saudade e afeto, memória e luto.  Simplesmente prefiro fazer assim: dedico à amiga Sônia, que sempre estará comigo. Fazendo parte de mim, não se desligará até quando chegar minha hora nessa verdade que pesa em cada um de nós.

O que tenho a dizer diante do inexorável, nessa hora que fere, dói, como dói? Viver é morrer o presente, houve quem dissesse. Lembro que ela brincava na matiné do carnaval infantil, animada no clube social.  Dava voltas no salão, cantando:

Chiquita bacana
Lá da Martinica
Se veste de uma casca
De banana nanica.
Não usa vestido,
Não usa maiô,
Inverno pra ela
É pleno verão,
Existencialista
Só faz o que manda
O seu coração.

Jogava confete, serpentina, cantava, não parava, seguia alegre dando volta no salão.

Era nossa infância como parte do encanto, igual à liberdade caminhava de mãos dadas com a inocência, a ternura e a esperança. Em noite clara, as meninas brincavam de ciranda na rua. Os meninos escutavam no passeio.

Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
A meia volta vamos dar

Prefiro lembrar a garota mais bonita de nossa juventude. Foi rainha dos estudantes, da primavera, da cidade. Foi rainha de tudo. Quando passava, arrancava suspiros dos rapazes com a pose de galã fatal. Já moça, nos bailes noturnos esbanjava alegria no carnaval do Grapiúna Tênis Clube. Às vezes romântica, no salão triste seguia, triste cantava.

Eu perguntei ao malmequer
Se meu bem ainda me quer
Ele então me respondeu que não.
Chorei, sofri, por saber que ele
Feriu o meu pobre coração.

Foi madrinha do time de futebol do Itabuna quando o Vasco da Gama do Rio veio jogar no Campo da Desportiva. Entregou um buquê de flores ao chefe da delegação dos visitantes. Uma flâmula da cidade ao capitão Belini do Vasco, que há pouco tempo tinha se sagrado campeão mundial de futebol pelo Brasil, nos campos da Suécia, ao lado de Garrincha, Didi, Vavá, Zagalo, Nilton Santos e outros craques. Fez um discurso improvisado, as palavras incandescentes, as imagens certeiras. Arrancou palmas de todos.

Um dia aconteceu como Juíza de Direito. Ficou assim para sempre no exercício eficaz da função. Atuava na Justiça criminal, gostava de presidir as sessões do Tribunal do Júri. Dizia: façam silêncio, se não vão sair do recinto. Estamos julgando duas paixões numa tragédia, a dos familiares do réu e a dos parentes da vítima, que teve a vida ceifada por motivo doloso.

Por mais que queira explicar o inexorável, nessa hora sob o peso do mistério, não consigo chegar perto, cambaleio.  Oi, Sônia, minha conterrânea, como eu e outros abnegados, gente sonhadora desta terra, foste fundadora da Academia de Letras de Itabuna. Com esforço, alma e vida fizemos o parto. Tenha cuidado agora, não se perca. Embora seja a hora escura, calada e fria, haverá na estrada a mão de Deus que guia.

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UM ADEUS DE CORAÇÃO- Ruy Póvoas

Hoje, 21 de dezembro de 2021.

Natal se aproxima e a variante Ômicron se torna uma grande ameaça.

Um misto de alegria e temor nos envolve de um amanhecer a outro.

Como se isso não bastasse, ameaça maior rodeia e campeia as imensidades: é Iku, conforme o povo nagô denomina a morte. Impiedosamente, vai decepando o fio da vida de nossos queridos parentes, amigos, colegas, benfeitores. E hoje, Iku passou pelos nossos campos e cortou o fio da vida de Sônia Maron.

Em nós, que tanto bem lhe queríamos, um choro embargado faz doer a garganta. Mulher, mãe, avó, amiga, professora, juíza, fundadora da Academia de Letras de Itabuna, para além de inúmeras ligações outras que ele manteve com diversas instituições.

As frases, períodos e parágrafos que agora se negam a nos socorrer numa homenagem sincera, fluíam facilmente do intelecto de Sônia quando ela se dava ao trabalho de escrever. Suas crônicas e artigos permanecerão conosco, num testemunho de seu brilhantismo. Sônia Maron, professora exemplar. Sônia Maron, que com justeza aplicava a Lei nos seus julgamentos. Sônia Maron, senhora de um olhar mais espraiado e participou ativamente na FESPI e da fundação da UESC. Sônia Maron, nossa confreira fundadora da ALITA.

Gestada e nascida de dois Arquétipos Criadores: as Águas de Oxum Apará e o Fogo de Oyá, assim ela se definia para os íntimos que comungávamos de suas crenças. E o tempo-espaço deste aqui e deste agora tornou-se pequeno para sua alma grandiosa, generosa, atuante. Quando soou a trombeta do término de sua luta, verdadeiramente sua missão já tinha se cumprindo. Agora cabe à inteligência grapiúna velar por sua memória. Aos seus ex-alunos e ex-alunas, o exercício de seus exemplos. À classe jurídica, lições de como proceder quando a injustiça for praticada.

Para seus confrades da ALITA, a obrigação de seguir suas pegadas. Aos que morejam na UESC, a herança de quem soube batalhar pelo brilho da luz do saber.

E em todos uma imorredoura saudade de tão nobre pessoa. A ela devemos o privilégio da convivência com tão refinada criatura. Senhora de si e de seu destino. Portadora de gestos de nobreza e esmerado trato para com os demais.

Sônia Maron partiu, mas deixou conosco o que ele soube construir de melhor no processo de toda a sua existência. E isso se constitui dívida impagável por parte de quem ela contribuiu, de uma forma ou de outra, para um viver mais leve.

Saudades eternas de seus parentes, aderentes, amigos, confrades e colegas. E aqui, fico eu, seu babalorixá, para continuar o que, juntos, tantas vezes discutimos na nossa caminhada religiosa e intelectual. Axé!

Ajalá Deré – Ruy Póvoas

 

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HOMENAGEM PÓSTUMA A SÔNIA MARON- Marcos Bandeira

Coube a mim, por determinação da presidente da Academia de Letras de Itabuna, Silmara Oliveira, prestar a última homenagem a nossa confreira querida, Sônia Maron, que nos deixa num momento ainda difícil e conturbado por que passa a humanidade.

Ainda não era meio-dia, quando recebi a triste notícia no silencio do meu lar. Algumas vozes distantes, o canto de um pássaro… E as asas da minha memória me levaram a um cenário, a um horizonte, onde encontrei uma grande mulher….

Sônia Maron, mulher de personalidade forte, perfeccionista, bonita, elegante, sensível e inteligente….

O dramaturgo Bertold Brechi deixou a seguinte lição:

“ há pessoas que lutam um dia e são boas ; há outras que lutam um ano e são melhores; há aquelas que lutam muitos anos e são muito bons ; mas há os que lutam toda a vida e estas são imprescindíveis”.

Sônia Maron era esta mulher pujante, guerreira, generosa, de personalidade forte, que defendia suas convicções com uma dignidade admirável. A tua bandeira era a educação como um meio de transformar o ser humano, a generosidade e a justiça como a razão de ser de sua luta.

A conheci de longe como magistrada, mas a sua boa fama já corria por todo o Estado da Bahia, delineada como juíza estudiosa e firme nas suas decisões. Assim de tanto admirá-la, acabei também me tornando magistrado; a tua postura como profissional exemplar serviu de inspiração para muitos, inclusive para mim!

Os ventos do destino me empurraram para a Universidade estadual de Santa Cruz– UESC, onde também fomos colegas na cátedra da ciência jurídica. Guerreira e com aguçado senso de responsabilidade, saía algumas vezes de salvador para ministrar aulas na UESC, instituição na qual ela se dedicou de corpo e alma. Chamava-me a atenção, a tolerância e o prazer com que ela orientava os discentes da UESC, e por essas e outras, acabou sendo professora também das minhas filhas, Michelle e Danielle.

Finalmente, por mais uma dessas coincidências ou caprichos do destino, fui morar no prédio do condomínio Carlos Drumond de Andrade. Ela morava no 6º andar, eu no 5º.  A sua sensibilidade era tamanha que recebeu toda a minha família com um buquê de flores e um jantar. Nunca me esqueci desse detalhe que revelava toda a sua lhaneza e sensibilidade no trato com as pessoas. Onde passava, nos corredores ou no elevador, deixava o aroma do seu perfume. Era exigente na preservação do condomínio e algumas vezes emprestava o seu apartamento para receber os confrades e confreiras da ALITA. Reuniões inesquecíveis com intelectuais, artistas, poetas, escritores e pessoas comuns, sempre com seu refinado trato e elegância, regado a um bom vinho e ao som de um violino.

Como magistrada, como professora, como acadêmica, escritora, não  permitia a si própria o auto elogio, pois como dizia sempre: “ elogio em boca própria é vitupério”.

Um certo dia, por mais uma dessas coincidências, a convidei em nome do acadêmico e escritor, Cyro de Matos, para fazer parte da Academia de Letras de Itabuna, que estava nascendo naquele dia 19/04/2011. Ela não hesitou e passou a contribuir decisivamente para a consolidação da academia, ajudando na elaboração do estatuto e do seu regimento interno. Participava ativamente de todas as reuniões. Fui o seu primeiro presidente e contei com sua inestimável ajuda até para sediar a academia no antigo escritório de seu filho, Otavio César. Ela me sucedeu e foi presidente por dois mandatos seguidos, realizando vários projetos voltados para a sociedade e propiciando as condições para a produção do conhecimento, através da revista Guriatã e do site da ALITA.

Querida confreira Sônia Maron, o seu corpo físico vai nos deixar, porque ele é material e perecerá, mas o teu legado imaterial jamais morrerá em nossos corações e nas nossas memórias, porque você será sempre uma pessoa imprescindível em nossa caminhada!

Agradeço pelo privilégio de compartilhar da tua amizade, e para despedir, permita-me recitar um verso de Saint Exupery:

Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”.

Obrigado!

Marcos Bandeira

 

 

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Homenagens dos Alitanos à querida Sônia Carvalho de Almeida Maron- Uma das fundadoras e ex-presidente da Instituição.

Apaixonada pelas causas que abraçava, palavra forte, corajosa e, talvez até escondesse isso um pouco, capaz de grandes delicadezas. Recebi dela um enorme apoio quando resolvi fazer um lançamento bonito, em nome da ALITA, do meu segundo livro, em 1918. E, naquele momento, ela nem estava bem de saúde. Mas Sônia era assim: sincera, às vezes de franqueza muito fácil , mas um coração leve e pronto a ajudar. Dela, recebi sempre o carinho e a palavra incentivadora.
Bonita, vaidosa, orgulhosa do belo cabelo, porém pronta para qualquer luta, sem medo ou subterfúgios. Isso é apenas um pouco de Sônia Maron.
Que seus filhos e netos e nós, seus amigos que sempre a admiramos, a cubramos de bênçãos.

Margarida Fahel

 

Sônia querida, nos conhecemos ainda bem jovens, você no Quartel Velho, eu na Fazenda Castelo Novo e Ubaldo na Benjamin Constant. Você sempre linda, irradiando alegria e muita vontade de viver. Partilhamos de muitas festas na nossa cidade. Você sempre amorosa e muito delicada comigo e com Ubaldo. Você foi aquela mulher forte e corajosa, capaz de quebrar barreiras. Fez seu próprio destino e escolheu sua nobre missão. Passou por cima de inúmeros obstáculos, deixando para os que ficam um exemplo de coragem e persistência na sua trajetória de vida. Ficamos muito felizes quando se tornou juíza. Acompanhamos os seus sucessos na profissão. Desejamos que você feche esse círculo terreno com o mesmo vigor e a mesma esperança. Siga o caminho de luz que você mesma traçou, enquanto aqui esteve.

Descanse em paz.

Com eterno carinho Ritinha e Ubaldo.

 

Sônia Maron, elegância e simplicidade na mesma medida!  Ela abriu as portas da Academia de Letras de Itabuna para novos integrantes, apostando na soma entre a tradição e a modernidade em favor da literatura.
Gostava de compartilhar histórias, vivências, gargalhadas, sempre deixando à vontade todos que com ela convivessem. Avessa a formalidades, preferia ser chamada apenas de Sônia. Sem títulos que afastassem o interlocutor. Porque ela queria proximidade, amizade, afeto – palavras tão caras nesta era de “modernidade líquida”, da qual Zygmunt Bauman tanto nos falou (ele figurava, inclusive, como um dos autores favoritos dela).
Ah, Sônia! Seguimos daqui buscando escrever boas histórias pela vida afora e aplaudindo o caminho vitorioso que você percorreu e tanto inspira quem cruzou seu caminho.
Rogamos a Papai do Céu que a conduza por um caminho de luz e que seu brilho resplandeça para sempre em nossa memória.

Com imenso carinho,
Celina Santos

 

PESARES DE SÔNIA MARON

 

Cyro de Mattos

Quem entende esse gesto?
O passado não tem volta.
Não se esvaem as dores
Prisioneiras do presente.

O vento que se aloja
nessas asas fabrica
vozes em rito de pesares,
que não se decifram.

Ó tempo rigoroso
no musgo desse muro,
sinto frieza no meu peito,
como fere nesse inverno.

Até no encanto assustas,
a flor que aparece
é a mesma que breve
no pó desaparece.

Imutável nesse estar
que ceifa a inocência,
a solidão de anoitecer
teu enigma que ofertas.

Hora que não tem cura,
Vez que não tem volta
Enquanto a noite chega
Para soterrar o dia.

Ó tempo quão amargo
É teu rigor nesse gesto
Que só a ti pertence,
Sufoca no meu peito.

De ti em dó e lágrima,
o que dói não é o calor
que aqueceu o coração,
mas as coisas que não virão.

 

 

 

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O MENINO QUE VIA A VIDA ACONTECER- Sônia Carvalho de Almeida Maron

        O melhor mirante da cidade era o alto do telhado, de onde se via a vida acontecer no céu e na rua, por onde passavam personagens e fatos importantes que iriam marcar a vida do menino para sempre. (In: Cyro de Mattos, contracapa do livro Histórias do mundo que se foi, editora Saraiva, SP, em sexta edição, Prêmio Adolfo Aizen da União Brasileira de Escritores-RJ )

           Aquele menino da Rua Ruy Barbosa tinha mesmo um jeito diferente. Em nossa rua não existiam estranhos: do primeiro ao último quarteirões, famílias trocavam sorrisos e cumprimentos, das crianças aos mais velhos. E o menino passava para o colégio, muitas vezes em companhia do irmão mais velho, compenetrado e sério, segurando a pasta com os livros como se fossem uma carga preciosa. O irmão mais velho tinha o riso fácil e todas as vezes que passava em frente à minha casa sorria de forma amistosa. Os pais do menino gostavam de mim, eu tinha certeza, pois sabiam o meu nome e conheciam meu pai.

         Na vida mansa da nossa rua todos eram conhecidos e a maioria amigos de verdade. As famílias visitavam-se, sentavam-se em cadeiras colocadas nos passeios nos dias de domingo, enquanto as crianças pulavam corda, jogavam bola de gude, pulavam amarelinha e cantavam cantigas de roda nas noites de luar. O menino fazia parte desse nosso mundo, mas eu sentia que participava de uma forma diferente:  meus olhos de criança não sabiam definir se era tímido ou se não queria participar de nossas brincadeiras por ter coisa melhor para fazer. Eu desconfiava que fosse mais amigo dos livros do que de nós.

         E o tempo foi passando. Os colégios da cidade não permitiam que os jovens sonhassem com as carreiras mais nobres, não existiam faculdades. O menino e o irmão contaram com o apoio do pai e seguiram para a capital identificada pelos mais velhos como “Bahia”. Àquela época diziam com orgulho “meu filho foi estudar na Bahia”, como se Itabuna fosse um lugar distante e fora do mapa do Estado. É que o privilégio de estudar na capital era restrito aos mais abastados da classe média. As famílias de milhares de arrobas de cacau enviavam os filhos para os colégios e faculdades do Rio de Janeiro e São Paulo.

          Não é que o pai do menino fosse um homem arrogante e rico como muitos coronéis do cacau. Ao contrário. Era um homem simples e trabalhador, sem diplomas e títulos, mas vislumbrava um futuro grandioso para os filhos e, para ele, o estudo era o único caminho. Acertou em cheio e ganhou um filho médico e o outro advogado.

         O jovem advogado iniciou, sem muito entusiasmo, o caminho das lides forenses. Gostava mesmo era de escrever, escrever de verdade, coisa diferente das petições dos processos cíveis e criminais. E enfrentou o desafio. A força que o conduzia para a carreira sonhada era mais poderosa que o encanto dos embates da advocacia. Determinado, passo a passo, conquistou o reconhecimento do mundo literário do país conseguindo o que poucos alcançaram: Cyro de Mattos é um escritor. Não um escritor qualquer. O itabunense que via “a rua acontecer no céu e na terra, do alto do melhor mirante da cidade, o telhado de sua casa”, como podemos ler na contracapa de um dos seus livros, Histórias do mundo que se foi, coleciona prêmios e títulos como ficcionista, cronista, ensaísta, poeta e demais variantes que pode assumir um verdadeiro escritor. Por último, representará sua cidade na Academia de Letras da Bahia, na cadeira de nº 22, que teve como membro fundador o mais conhecido e ilustre dos baianos, Ruy Barbosa. Sem esquecer que leva em seu currículo os títulos de membro da Academia de Letras de Ilhéus e membro fundador e idealizador da Academia de Letras de Itabuna – ALITA.

         Cyro de Mattos é “prata de casa” da melhor qualidade. Todos sabem que seu currículo é conquista de poucos e nossas academias são citadas primeiro por motivo puramente sentimental.  Em resumida amostragem, registre-se o título de membro efetivo do Pen Clube do Brasil e Ordem do Mérito da Bahia, no Grau de Comendador. Em suas incursões pelo mundo integrou a delegação brasileira de Poetas da Universidade de Coimbra, em Portugal, e no XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Salamanca Cidade de Cultura e Saberes, na Espanha. Foi agraciado com vários prêmios literários de expressão, sendo autor de mais de cinquenta livros no Brasil e no exterior.

         A Rua Ruy Barbosa, na cidade de Itabuna, Bahia, Brasil, passou à imortalidade. A geração de Cyro de Mattos, que é também a minha, festeja a conquista de um dos seus meninos do Ginásio Divina Providência. Festejamos o amigo que desenvolveu a admirável arte de observar o mundo com os olhos e o sentimento que só conhece quem adquiriu o conhecimento guardado nos livros, sobre terras, homens e tempos e serve de exemplo para a geração que se recusa a reconhecer a força mágica que o livro empresta à nossa vida.

  • Sônia Carvalho de Almeida Maron é escritora, juíza de Direito aposentada, ex-professora de Direito da UESC, uma das fundadoras da Academia de Letras de Itabuna, foi presidente da instituição por dois mandatos.
  • Fonte Alita, 2016

                                                          

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