Produção Literaria

Discurso de Cyro de Mattos na posse de Heloisa Prazeres

 Discurso de Recepção à Acadêmica Heloisa Prata e Prazeres  na Cadeira 14 da Academia de Letras de Itabuna                  

                       Por Cyro de Mattos

Destaco esses versos do enorme poeta Francisco Carvalho:

homem não é de pedra

nem de areia

homem é o que mora

no que semeia

Associam-se os versos citados ao percurso realizado pela conterrânea Heloísa Prata e Prazeres, fazendo lembrar quando ainda era uma sementinha   das letras até se tornar árvore frondosa com frutos reluzentes. Ela retorna agora como boa filha à sua morada primeira, procedente do universo do ensino mesclado com as letras, despontando no que semeou e colheu por toda a sua trajetória de vida.

A Academia de Letras de Itabuna sabe hoje o quanto se engrandece com a chegada às suas hostes dessa conterrânea com biografia rica, que acaba de ser empossada na cadeira 14, antes ocupada pela confreira Sônia Carvalho de Almeida Maron, de saudosa memória. Uma mulher itabunense singular substitui outra mulher itabunense de vida marcante.  Bom saber que a cadeira 14 tem como patrona a poeta Valdelice Soares Pinheiro. Que combinação valorosa o tempo nos apresenta com essas três mulheres valorosas, nascidas em mesmo chão grapiúna, de outrora ricas plantações de cacau.

Filha de Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata, nossa   confreira Heloisa Prata e Prazeres é casada com Jamison Pedra, um festejado criador de gente e vida na arte da fotografia. Heloísa e Jamison são pais de Letícia, Ana e Daniel. Avós de João Filipe, Samuel, Olívia, Pedro e Leonardo. Ela é irmã do poeta Renato Prata, também membro efetivo da Academia de Letras de Itabuna.

A douta conterrânea mantém até hoje fortes laços afetivos com suas raízes. Criatura afável, veio ao mundo nesta terra de importantes  artistas desde que os pais, migrantes sergipanos, para aqui se mudaram no apogeu da lavra cacaueira e fixaram residência na antiga Rua da Jaqueira, hoje avenida Félix Mendonça. Ali, o migrante sergipano, usando a roupagem do sonho e da vontade, buscando criar a família com trabalho e dignidade instalou um estabelecimento comercial de frente para o  rio Cachoeira.

A menina conviveu na infância com a paisagem agradável que emergia do Cachoeira, naqueles idos um rio com águas claras, fontes puríssimas, peixe em abundância. Um rio manso no estio, virado bicho  de outro mundo quando descia nervoso nas águas turbulentas da cheia. Um rio  com seus habitantes ribeirinhos, de caracteres próprios, que lhe davam vida no visual cheio de cantos e cores:  o pescador, o tirador de areia, a lavadeira, o aguadeiro e o canoeiro.  De lá, de uma das margens de seu querido rio, a menina avistava o entorno da Mata Atlânica, que despontava do verde milenar,  bem longe, com a serra do Macuco  apontando para o azul dos céus sem fim.

Em Itabuna, fez o curso primário no Colégio da professora Alzira Paim, uma mulher que contribuiu na pequena cidade, ainda tropeçando nas pernas, para o crescimento do fluxo escolar em seus primeiros passos,  como dessa maneira também procederam as professoras Lúcia Oliveira, Noide Hage, Lindaura Brandão e o professor Chalupe. A  adolescente transferiu-se para Salvador onde cursou o ginasial no Colégio Severino Vieira e o clássico no Colégio da Bahia (Central). Aprovada no vestibular de Letras, graduou-se em Linguas Vernáculas com Inglês pelo Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.

Seu currículo é vasto e rico na estrada do saber. Licenciada em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1969); Bacharela em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1972); Mestra em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia (1980); Doutora em Literaturas Românicas pela Universidade de Cincinnati, Oh, EUA (1986). Vê-se assim, sem esforço, numa síntese de seu percurso nas Letras, que possui larga experiência neste campo do conhecimento humano, atuando com ênfase nos seguintes temas: poesia portuguesa, poesia brasileira, poesia moderna, literatura latino-americana e literatura norte-americana. Seu desempenho na área do ensino universitário e execução de projetos culturais é esplêndido. Ressalte-se que criou e organizou o Núcleo de Referência Cultural da Fundação CulturaI da Bahia.

Ela pertence à Academia de Letras da Bahia. Tradutora, autora de quatro livros de poesia e dois de ensaio. Sobre um de seus livros de poesia, Casa onde habitamos, em ensaio que incluí no meu livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia, nós dissemos  o seguinte:

“Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor consiste na boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa-nos ver que aqui estamos diante de uma construção poética segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema, que diz de emoções chegando da memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser. Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro, a boa referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de experiências, revelações tantas perante a existência. “

Aos seus predicados de natureza intelectual, ajuntem-se os hábitos da criatura prestimosa, como apanágios de seu caráter, a leveza, a sinceridade, a solidariedade e a gratidão.  Com ela se aprende que a vida tem sentido se marcada com o entendimento e o saber que inaugura momentos positivos advindos do diálogo constante entre os seres e as coisas. A vida reveste-se de esperança e se propaga com afeto nas circunstâncias e propósitos das relações que circulam com seriedade sob o enleio do difícil gesto do viver.

Consta na programação do evento de hoje uma leitura  de poemas de Heloisa Prata e Prazeres. Peço permissão para me antecipar a essa singela homenagem que lhe vão prestar no final com a leitura de alguns de seus poemas por alguns de nossos confrades e confreiras. Quero ler alguns poemas de nossa lavra, os quais também servem como homenagem que presto à estimada confreira Heloísa Prata e Prazeres.

Com todos os sons de minha alma lírica, vou ler esses poemas.

Soneto das Nuvens

Lá da balaustrada olhava as nuvens,

acima do rio carregando gente

e diversas coisas.  Antes que a noite

chegasse, ofereciam viagens.

Mostravam castelos, cada gigante,

um velho barbudo em pé no tapete.

De calção, peito nu, lá no pátio,

ficava vendo-as no azul do céu.

Como elas que voltavam, voltaria

pra brincar com os amigos de infância

quando já fosse um homem? Só havia

um jeito de regressar ao passado,

rindo a mãe disse, sonhando acordado.

Um homem com o menino conversando.

 

Soneto da Infância Minha

 

Os quintais frutíferos. Houve afoito

amanhecer, de galho em galho, rosto

 de suor molhado deixando as tardes

que inventavam mentiras de verdade.

 Inúteis, mas importantes. Lonjuras

alcançavam as puras aventuras

bebidas no nascedouro da vida

com gosto de fruta amadurecida.

Tomava banho na lua de prata,

na rua onde dorme agora, quieta,

a minha turma. A vida não prendesse

meu pássaro, infância minha, não desse

ponto final nas vagas amorosas,

onde corri nas horas primorosas.

 

Águas do rio Cachoeira  

Descendo em adeus,

Entressonho e lágrima

Que emerge do coração

Sem fontes puríssimas.

Nas águas sem escamas

Já não há o ribeirinho

Com o vento de manhã doce.

Vômitos e excrementos

No funeral das águas

Eliminaram a paisagem clara.

Houve a expressão livre

Do sol lavando as faces,

A vida se desvendava

Com a magia das cores.

Viver era a aventura

Desenhada pelas mãos

De quem tudo nos dava

Sem querer nada de volta.

Sem mergulhos agora,

Competente abundância,

Espumas se escondem

Tingidas de vergonha.

De que serves enfermo

Sem brilho nas escamas,

Sem teus cachos de água

 Que sempre inventavas?

Confreira Heloisa Prata e Prazeres, a poeta Cecília Meireles, contemplando a sucessão dos seres humanos no discurso do tempo, assim nos fala:

                 E, atrás deles, filhos, netos

                seguindo os antepassados,

                vêm deixar sua vida caindo

                nos mesmos laços.

 

A cadeira 14 estava vacante durante bom período. Esperava por alguém de seu timbre intelectual, de alma cativante, de pensamento reflexivo e sensitivo que ilumina a parte obscura da matéria. Há tempos ela vos pertence de fato. Sua antiga ocupante, a magistrada e juíza de Direito Sônia Maron, lá na sua nova morada, erguida em outras dimensões cósmicas, certamente está dizendo que não há outra mulher que dignifique mais a cadeira 14 neste segundo momento do que a competente pedagoga e talentosa escritora.  A confreira Sônia Maron certamente está sorrindo de alegria, nessa noite festiva, com a feliz escolha da Academia de Letras de Itabuna.

Ilustre conterrânea, todos nós, membros da Academia de Letras de Itabuna, que gostamos de chamar com carinho de alitano uns aos outros, uníssonos em uma só corrente de abraço afetivo estávamos esperando a vossa chegada. Como expectantes de esperança aguardávamos para vos aplaudir com a beleza que se entreabre na parição da flor, e mais, com o encanto mágico do vento que é chegado ameno para se fixar na memória como sonho.

Professora, doutora, escritora, poeta Heloisa Prata e Prazeres, grapiúna  nessa linda floração das letras, nesta cadeira que vos pertence agora de direito e, ao mesmo tempo, na sua realidade existencial, sentai-vos.

E porque sois também uma alitana, estimada por vossos pares, ficai vós à vontade, com a permanência de vosso brilho. Obrigado.

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LANÇAMENTO DE RASCUNHOS REAIS – Tica Simões

Tive o prazer de prefaciar Rascunhos Reais.  Esse primeiro livro de poemas de Alessandro Fernandes de Santana resulta de uma experiência inicialmente realizada através de redes sociais, especialmente facebook e Instagram.  A socialização da sua produção poética, por esse caminho, suscitou uma comunicação imediata.  A positividade da sua recepção foi estímulo para o autor. Daí à publicação impressa, foi um passo…

Surpreendente é a juventude e a jovialidade  da poesia de Alessandro, especialmente quando se conhece a sua formação em economia e administração. Reitor da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC,  com o peso que uma administração universitária demanda, surpreendem a leveza e a temática do seu livro que realiza um olhar sobre o amor. Ao lê-lo, lembrei de  Mia Coito, quando diz:  “Todos temos duas sombras. Apenas uma é visível. Há, porém, aqueles que conversam com a sua segunda sombra. Esses são os poetas.”  (O Mapeador de Ausências:  )

E, claro,  logo tb se impõe a ideia pessoana:  “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”.

Pois é… Rascunhos Reais surpreende. Conquista o leitor com  uma poesia que fala de amor. E encanta pelo ângulo sob o qual  trata o tema. Encanta pela visão filosófica, de  pureza e positividade.

  Depois, arrebata  com a bela ilustração de Sanqueilo Lima. São  20 belos desenhos em bico de pena,  que  conversam com os poemas,  linguagens que dialogam – a poemática e a pictórica –   em simplicidade lírica, através de traços espontâneos e expressões existenciais e intimistas.  O livro é, mesmo, uma produção sem apego a escolas ou a  cânone.  Em sintonia com a linguagem deste milênio, como preconizou Itálo Calvino,  são textos que se realizam em  leveza, visibilidade, multiplicidade, rapidez.   A visão romântica do poeta – sempre em  busca de expressar o amor –  alterna-se com a linguagem dos delicados desenhos, que semanticamente confluem ao mesmo tema. Poesia, portanto, apresentada nas duas linguagens!

Como o autor revela, o título do livro foi extraído do poema Sonhos. Tal afirmação induz à compreensão de que, com a sua publicação,  Rascunhos Reais transforma em realidade um sonho que existia em rascunhos  …  Esse poema parece ser uma mensagem para Letícia, filha a quem o livro é dedicado: “Sonhos […] esquecê-los jamais!”. E o refrão, que se repete nas quatro estrofes desse mesmo poema, enfatiza o foco: persistência! É uma poesia de crença no amor verdadeiro.

A atemporalidade do amor é marcada por uma visão intertextual, que passa por Shakespeare, Homero, Machado; Agatha Christie, e mesmo Álvaro de Campos, o heterônimo pessoano,  que diz:  “cartas de amor são ridículas”.  Drummond, Bandeira, Stendhal, Tchekhov… E, até mesmo, leva a pensar na instabilidade do amor líquido,  de Zygmunt Bauman.  Falando do amor, a poesia de Alessandro induz também o leitor a lembrar de outros poetas que falam da dor do amor, a exemplo de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver […] se tão contrário a si é o mesmo amor”. No entanto, de todos discorda. E o eu lírico de Rascunhos Reais diz: “Diante de tanta gente/com histórias interrompidas/reescrever o amor/se faz urgente”.   Assim, ao contrário,  o amor que a sua poesia traz é o amor encontro,  comunhão,  perenidade. Ideal, sem ser platônico. Amor companheirismo, presença, cumplicidade. Por isso, diz que “histórias que falem de dor/ ficam proibidas”.

                 Se a  positividade sobre o amor é inquestionável, isso é tb afirmado   ao olhar através da natureza, quando pensa  metaforicamente a vida, e afirma: “voar sozinho/ para um passarinho/ dói como espinho/ a machucar”.

 A sua apologia é ao tempo presente, porque o tempo é fugaz.  E reconhece que a vida é de conquistas, construção … e o amor, esse deve ser perenizado.  Então, os textos são como reflexões sobre o amor; são lições…  E afirma:   “o amor verdadeiro/ Não é uno/ É par” (Coração Real). E, é doação.  Finda o livro com o poema-conselho Metas, que refere quatro metas, enquanto o desenho com o qual dialoga, mostra  escalada de busca.

Assim, tematizando o amor, Rascunhos Reais  conceitua, indica estratégias, oferece  conselhos à guisa de um manual sobre  amor e vida.

 Para quem? – pergunta-se o leitor, que volta a  reler a dedicatória do livro…  para Letícia!

 Parabéns, Alessandro. Bons caminhos para o seu livro!

Ilhéus, novembro de 2022.

Tica Simões

 

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Poemas de Ruy Póvoa

ASTRONOMIA

Estou construindo
um james webb
com lentes potentes
que possam fazer
o meu verbatim.
Mas em vez de planetas
quero sondar
o arquivo lacrado
que me faz ser assim.
O meu james webb
vai me mostrar
os meus escondidos
do princípio ao fim,
tudo o que eu,
até o momento,
ignoro de mim.

Ruy Póvoas
10/11/22

 

 

ASTROFÍSICA

Me deram uma passagem
exclusiva, só de ida,
para um horizonte de visagem
assim que cheguei à vida.

O espaço-tempo do agora
se abria a todo instante
e comecei sem mais demora
a ter sonhos vacilantes.

Desde então, venho me sentindo
um verdadeiro paradoxo,
cheio de irregularidades.

A astrofísica me ferindo
porque só entendo a doxa
de minha singularidade.

Ruy Póvoas
10/11/22

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AZÁFAMA- Ruy Póvoas

AZÁFAMA

O aniversário de fulano,
o batizado
do filho de beltrano,
os quinze anos
da neta de sicrano,
a exéquias de vez em quando.
Ainda tem mais:
o seminário,
a mesa redonda,
a entrevista,
o lançamento
do livro do famoso.
A missa de sétimo dia,
a chegada de Luzia,
a comemoração
nem sei mais de que dia.
A live, o link,
a chave de acesso,
as centenas de cards,
a tsunami de mensagens,
o prefácio que pediram,
a formatura da netinha.
Não deixe de vir,
esperamos você,
não desculpo sua ausência.
E todos esquecidos
das famosas ordenanças,
do grande profeta Ageu.
No meio dessa agonia,
será que eu
ainda sou eu?

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POEMAS- Cyro de Mattos

Versículos
Cyro de Mattos

Reparem
O beija-flor,
De Deus
Aviãozinho,
Frescurinha
De ventilador.
No corrupio,
No frufru,
Alegrinho
Quando vê
A suave flor.
Amar e beijar
Essa a vida do ar.

Do espírito
Maligno,
Impiedoso,
Invejoso,
Esfacelador,
Deus vos livre
Desse bicho
Horrendo
Com seu jeito
Pervertido
De machucar
O que é belo.

Cruz-credo!
Da cegueira
Do espiritado,
Do espinho
Que fura
E não cura
Deus vos livre.

Da empáfia
Do indigno
E seu veneno
Estejam atentos.

 

Soneto de Luís de Camões
Cyro de Mattos

Falarei aos que param pra escutar
do Amor, que é fogo a arder sem se mostrar,
também do desconcerto de Fortuna:
quanto mais se dá mais soberba engana.

Sôbolos rios que vão, desses danos
chorarei onde a mudança dos anos
consiste em nos prender com triste sombra
e em desfiar os corações com sobra.

E tu, terra estranha, vasta de ser
por mares nunca dantes navegados
contarei de mágoas e esperanças.

 

 

Trova de Amigo
Cyro de Mattos

Eu vivo Itabuna,
Itabuna vive em mim,
Nunca pensei ser grande,
Tudo fica é mesmo aí.

Quem quiser se engane,
Ache até que é um deus,
Na cidade dos pés juntos
Onde estão os sonhos seus?

Tudo cabe nas gavetas,
Essa fome não sossega,
Já pensou quanta soberba
Ela engole mais e mais.

Procure ter mais juízo,
Não se julgue um porreta
Nas asneiras do que faz,
Quem te avisa aqui jaz.

 

 

Quadrinhas
Cyro de Mattos

Ingratidão tira afeição,
Pior se feita pelo irmão,
Sendo a vida boa e bela,
Uns não dão valor a ela.

O ímpio com certeza
Faz a beleza ficar feia,
Põe as amargas na pança,
Rancor grande na veia.

A soberba é farto vício,
O duro orgulho também,
Bebe e lambe essas drogas
Quem nunca gosta do bem.

Sem justeza o audaz vivente,
Descontente chuta o menos,
Sua cegueira não permite
Ter remorso, volte atrás.

Deus o livre do pequeno,
Sua presença mal lhe faz,
Com os comparsas comilões
O seu arroto vale mais.

 

 

INFÂNCIA
(ao sublime e inspirador Carl Gustav Jung)

Ilha que brilha
num mar de alegria,
ciranda de cores,
maré cheia.
Soprando a vela,
o verde é ternura,
o branco no céu
compõe o carrossel.
Pintando a criança
– peixinho dentro d’água –
o azul silencioso.
E esse sol que escorre
em minha lágrima.

*
CANÇAO DE NINAR

(ao inspirador e sublime Sigmund Freuf)

Adormecendo,
diz o neném:
Papai me ama,
mamãe também.

Azul de amor,
sonha a criança.
No berço meirgo,
que é o seu pódio,

ela boceja,
abrindo os olhos:
Ô revoltado,

quem te pariu
foi a inveja,
a mãe do ódio.

*
O IDIOTA ÚTIL

( a Lacan e seus discípulos)

Cara emburrada de anjo sem asas,
sem jardins, sem quintais.
O cão fareja:
“Ou não teve infância,
ou não teve pai”

*
Se você nega a infância, nega a vida
Audrey Hepburn

A BELEZA É A PRISÃO QUE NOS LIBERTA
(ao mais do que sublime e inspirador Sir Roger Scruton)

Mimo do céu, infância alada:
lua, rosa e borboleta.
Azul, azul-celeste,
igual ao girassol, gira o planeta.
Conto de fada, encanto:
lua, crisálida; sol, pirilampo.
Entre os astros da flora recende o amor-perfeito,
floresce a sensitiva, voam pavões,
canta a cigarra, a lua se deita.
Enquanto a borboleta beija a flor da correnteza,
As Três-Marias,
pétalas de um trevo na haste de um cipreste,
refletem à luz do dia:
– Pequenino bem-te-vi, desenvolvendo tua pena,
não perca o sentido da vida,
não menospreze a Beleza,
bondade e consolação
que nos afirma na alegria
e nos conforta na tristeza.

BL, o decano da Geração Prefácio, Verba Pública e Privada, autor de Flores de Ocaso, o único livro publicado sem nenhuma nota em todos os jornais de Salvador, agradece a leitura.

 

O Comilão
Cyro de Mattos

Era um comilão incorrigível. Não passava um dia em que não comesse por quatro vezes um prato fundo com uma comida apetitosa. Insaciável, constante. Quando não tinha dinheiro para fazer uma merenda no restaurante, que constava de um prato fundo com a iguaria farta, vestia a roupa maltrapilha, de pés descalços, saía para a rua, pedindo, clamando aos transeuntes por um dinheirinho para comprar alguma coisa, estava se esvaindo de tanto passar fome.
– Um dinheirinho, moço, ainda não comi hoje.
Apertou a barriga com uma cinta de compressão para não dar na vista que estava com a pança estufada, armazenada de comidas várias.
O bigodudo homem sisudo respondeu:
– Dou-lhe dinheiro grande pra comprar um prato fundo de comida, se você morder essa pedra e mostrar que está de fato faminto.
Arregalou os olhos, a proposta vinha em boa hora da fome impiedosa. Prontamente mordeu a pedra como se fosse um pedaço de carne, bem temperado, refogado no arroz gostoso. Voou da boca dentes para todos os lados. Cuspiu sangue, deu um grito lancinante. Ficou chorando, ui, ui, quebrei meus dentes, meu Deus, me socorre, que vou dar um troço!
De agora em diante passou a ser um comilão mais comedido, sem farsa nem artimanha.
Fazia apenas duas refeições modestas, diariamente. Não queria correr o risco de perder a dentadura nova, paga em dez prestações, com sacrifício do que recebia da aposentadoria modesta.

 

 

Não há estrela no céu
Cyro de Mattos

Havia sido aprovado no concurso do Itamaraty para a carreira diplomática. Sonhara muito tempo com isso. Desejara começar a exercer a carreira na Alemanha. Era um país perfeito. Culto, de grandes artistas. Dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel. Foi nomeado como adjunto do Consulado do Brasil em Frankfurt.
Quando o avião aterrissou em solo alemão, sentiu pulsações boas no coração sonhador com o bem, a perfeição na vida. No entanto, sensações expectantes de que iria aprender muito com o mundo civilizado da Alemanha tiveram a primeira cena decepcionante quando viu no jardim a tabuleta avisando que ali estavam proibidas de brincar crianças não arianas.
No dia seguinte viu na rua um judeu de rosto apatetado, desfilando com o cartaz de papelão pendurado no pescoço. O cartaz dizia: SOU UM JUDEU PORCO. Jamais ia imaginar que encontraria cenas piores do que aquela contra o povo judeu. Naqueles idos de 1938, a Alemanha nazista agia como um povo selvagem, que vomitava ódio contra os judeus. Havia uma vontade inconcebível para espancar, humilhar, usurpar os bens conquistados por um povo com inteligência e trabalho.
Encontrou um grupo de jovens soldados nazistas querendo estuprar uma moça judia em plena luz do dia. Empurravam, davam tapas no seu rosto enquanto soltavam gargalhadas histéricas e tentavam espremê-la contra a parede. Interferiu. Falou alto: “Parem com isso! Sou o adjunto do Consulado Brasileiro!” O grupo largou a moça contrariado, melhor dizendo, revoltado com aquele brasileiro querendo defender uma judia, se metendo onde não lhe cabe.
Getúlio Vargas era o presidente do Brasil no Estado Novo. O ditador brasileiro namorava com as ideias nazistas de Hitler. Determinou que os diplomatas brasileiros não se metessem com os problemas internos da Alemanha. Não queria complicações. Reduzira o visto em passaportes de judeus que queriam sair da Alemanha e vir para o Brasil.
O mal prenunciava que o mundo estava prestes a ser abalado com a Segunda Guerra Mundial. Hitler estava mandando judeus de volta para a Polônia. Sua raiva cresceu, alardeava que iria invadir a Polônia, os judeus estavam roubando a Alemanha, eram os donos do comércio, das fábricas e estaleiros. Seu império com bases na inutilidade do amor estava prestes a ser instalado, a fera ressurgia da caverna para banir a pomba na légua, destruir a relva, só queria a selva.
Estarreceu o mundo a Noite do Cristal quando lojas de judeus foram quebradas, os donos espancados, numa fúria do horror sem precedente. Sinagogas foram queimadas, a ordem era reduzir a cinzas os estabelecimentos comerciais, tudo o que havia sido adquirido pelos judeus com esforço nos dias.
Não era justo o que vinha assistindo, a selvageria assassinar a razão. Não se conformava com o que os olhos viam a todo momento quando saía na rua. Homens separados das mulheres, pais dos filhos, irmão do irmão. Eram levados para os campos de concentração como uma carga imprestável. Sujos, vestidos numa roupa fina para enfrentar o forte frio. Tossiam, o rosto ossudo, a pele amarelada. As marcas do desprezo e abandono nos olhos tristes, apagados de qualquer vestígio de luz. Entravam nos caminhões empurrados pelo cano do fuzil, os olhos já não tinham a lágrima, a inocência não tinha qualquer possibilidade para contradizer uma condenação sem sentido.
As noites mal dormidas, o pesadelo tomara conta dos sonhos alimentados no Brasil sob a expectativa de viver em paz com um mundo justo e civilizado. Até quando iria suportar conviver com uma raça que se dizia superiora, sustentada em sua natureza ariana com as botas de ferro de soldados impassíveis?
Depois que teve navios bombardeados na costa por submarinos alemães, o Brasil rompera as relações com a Alemanha nazista. Passou para o lado dos aliados, que tinham declarado guerra ao ditador de bigodinho nervoso, o que comandava passadas de ódio na matança de milhões indefesos por manadas desenfreadas.
No retorno, assim que desembarcou do avião, ao deixar a escada, a primeira coisa que fez foi se abaixar e dar um beijo no solo da pátria saudosa.

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PERIPÉCIA DE JORGE AMADO- Cyro de Mattos

 

Eu te louvo pelos oprimidos
nos subterrâneos da liberdade,
teu pulso erguido com amor
fale da seiva de servos,
calo sem orvalho na trama
do ouro vegetal com rifle na curva.
Teu verde galope sem sono,
na seara vermelha tua face
carregando sede e fome,
o olho do sol crepitando
céu de fogo na aurora,
fósforo aceso no crepúsculo.
Teu riso leonino fendido
com os capitães da areia,
esse trauma de ladeiras
e ruas do mundo sem teto
manchado na hora da ciranda.
Numa tenda dos milagres
toda a Bahia mestiça cabendo,
no sumiço de uma santa
a arte incrível de um feiticeiro.
Eu te louvo no peito lírico,
a garra de Teresa Batista,
fome de Dona Flor, agreste Tieta,
rosa de Gabriela, cravo de Nacib.
Quem te fez pastor da noite,
Vasco Moscoso, flor do povo,
Pedro Bala, amado guerreiro,
boêmio, malandro, meretriz, violeiro,
guardador de chaves africanas,
verdade absoluta em Pedro Arcanjo,
duas mortes de Quincas Berro Dágua,
gargalhada da Bahia ao infinito?
Ó meu capitão de longo curso,
para te louvar com aplausos,
risos grandes e muitos vivas,
tua cidade de mares e santos
amanhece repetida de foguetes,
de estrelas e atabaques anoitece,
nos terreiros orixás estão descendo.

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A TRANSGENERIDADE NA VISÃO FENOMENOLÓGICA- Raquel Rocha

Um dos temas mais discutidos na contemporaneidade e que se apresenta como um grande desafio para os Psicólogos é a Transgeneridade. Transgêneros são pessoas que possuem uma identidade de gênero diferente do seu sexo biológico. A transgeneridade não é uma orientação sexual é uma identidade.

A hipótese científica pra os transgêneros é a de que nesses indivíduos o cérebro não se desenvolve em sintonia com a genitália do embrião. O psiquiatra do Hospital das Clínicas, Alexandre Saadeh em entrevista ao programa Fantástico da Rede Globo corrobora com essa explicação, segundo o médico no embrião humano a genitália se desenvolve por volta da décima semana mas nessa fase o cérebro ainda está se desenvolvendo e ainda não tem uma identidade de gênero. Somente na vigésima semana é que se denine a área no cérebro onde ocorre a identidade de gênero. Normalmente no embrião com órgão sexual masculino o cérebro se define como masculino. Da mesma forma, quando o órgão sexual é feminino, o cérebro se define como feminino. Mas em alguns casos o cérebro se desenvolve no sexo oposto ao órgão sexual, dando origem ao indivíduo transgênero. Um transgênero já nasce transgênero, não se torna transgênero pela criação dos pais, nem por escolha própria.

Um artigo feito por pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Boston avaliou 40 trabalhos sobre o tema e aponta que a identidade de gênero é uma condição biológica que não pode ser modificada através de intervenção psicológica. A literatura até o momento monstra que ha diversas particularidades biológicas que podem definir a identidade de gênero, como características de algumas áreas do cérebro e genes relacionados à produção hormonal. (Fonte BBC)

A identidade de gênero independe da opção sexual uma vez que a pessoa transgênera pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. No Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais 5.ª edição ou DSM-5 da Associação Americana de Psiquiatria de 2013 a transgeneridade ainda aparece como um distúrbio nominado de Disforia de Gênero (Códigos 302.6, 302.85 e 302.6) conceituada como “Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa” tendo como primeiro critério “Forte desejo de pertencer ao outro gênero ou insistência de que um gênero é o outro (ou algum gênero alternativo diferente do designado).”

Em 2015 a Organização Mundial de Saúde- OMS anunciou que deixaria de considerar transgeneridade um distúrbio. Segundo a organização estima-se que uma em cada cem pessoas sejam transgêneras.

Essa questão tem sido debatida como nunca antes em meios acadêmicos, médicos e religiosos, as vezes com informações científicas sérias as vezes permeada de preconceitos. Dentre todas as áreas de conhecimento que precisam compreender esse fenômeno a Psicologia se faz fundamentalmente importante. É condição sine qua non que os profissionais da atualidade debatam sobre a despatologização da transexualidade de forma séria, ética e embasada nos estudos mais recentes. As correntes psicológicas clássicas não se debruçaram especificamente sobre o tema transgeneridade, por motivos diverso: tabu, preconceito, desconhecimento médico da época. O que a princípio parece ser um fator limitador é na verdade uma ferramenta que nos deixa livre para pensar no sujeito por trás do rótulo de transgênero, sem tentar encaixa-lo em teorias.

Como a corrente Humanista na visão Fenomenológica pondera, é importante pensar na pessoa por trás do diagnóstico. Pensar no sujeito trans dentro do seu contexto de dificuldades, enfrentamentos e principalmente dentro dos seus fatores de riscos. Muitas vezes o sujeito transgênero apresenta histórico de tentativas de suicídio, de automutilação, muitos são rejeitados pelas famílias e pelos amigos, sofrem assédio, preconceito e discriminação. Como resultado de seu sofrimento psíquico eles podem vir a desenvolver transtornos mentais como depressão, transtorno de estresse pós traumático e síndrome do pânico. É importante que a psicologia atue no sentido de fortalecer o sujeito para lidar todas as adversidades apresentadas e ao mesmo tempo  reconhecer-se como sujeito em toda sua singularidade.

A despatologização nesse processo é de fundamental importância. A Fenomenologia busca justamente a especificidade do ser. Para o psicólogo Humanista, Marcos Alberto  Pinto (2007) “ precisamos encontrar a pessoa que existe e que está por trás do rótulo, pessoa esta que como todas, possuem sentimentos, histórias e sentidos.” O olhar para o sujeito, para sua história de vida, sua constituição psíquica, suas dores, suas angustias e acima de tudo trabalhar com sujeito, qualquer que seja a corrente psicológica, para que ele possa ser quem realmente ele é.

REFERÊNCIA

PINTO, Marcos Alberto. A Pessoa por trás do Diagnostico. VII Forum Brasileiro da Abordagem Centrada na Pessoa- Nova Friburgo 2007
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. 992p.
BBC Brasil  “Na escola e na família, a difícil batalha de crianças transgênero por aceitação” http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150407_criancas_transgenero_uk_fn
PROGRAMA FANTÁSTICO- Rede Globo http://g1.globo.com/fantastico/

A TRANSGENERIDADE NA VISÃO FENOMENOLÓGICA- Raquel Rocha Read More »