DISCURSO DE POSSE- Heloísa Prata e Prazeres

DISCURSO DE POSSE

HELOÍSA PRATA E PRAZERES

19 DE NOVEMBRO DE 2022

 

Senhor Presidente da Academia de Letras de Itabuna, Professor Wilson Caitano de Jesus Filho

Senhoras e senhores acadêmicos, autoridades, familiares e amigos

Saúdo-os, ilustres Sras. e Srs., neste ato solene de posse, consciente de que a Academia de Letras de Itabuna, ALITA, que ora me recebe, é o resultado do sonho de apaixonados pela arte literária, a cultura o saber e a Língua Portuguesa.  Agradeço a honra e o privilégio desta indicação de titularidade ao Ilm.º Sr. Presidente de Honra da Instituição, insigne escritor, Dr. Cyro de Mattos, e aos apoios confiantes das confreiras e confrades que me recepcionaram.

Encontro-me feliz entre vocês, mestres e mestras. Cabe-me, também, saudar e agradecer aos que me prestigiam, nesta noite festiva. Se somos o tempo que nos resta, encontro-me em circunstancial completude. E, consciente do nobre significado da distinção, aqui me apresento, presencialmente, após prolongado período de privação social, em face da pandemia, que ainda nos impacta.

 Almejo que eu possa contribuir com ações literárias e culturais, implementadas pelo ilustre corpo colegiado acadêmico da nossa ALITA. Já antes, estive em reunião deste honorável sodalício, quando com emoção assisti ao seu nascimento, em 2011, na solenidade, que empossou os membros fundadores, entre aqueles, o premiado poeta itabunense, Renato de Oliveira Prata, meu irmão.

A Academia de Letras de Itabuna demonstra lealdade à sua missão ao promover a literatura, a riqueza e o dinamismo da Língua Portuguesa, com um espírito, que defendo, honro e ao qual me associo, “O Abraço das Letras” (Litteris Amplecti), conforme insígnia inscrita no seu símbolo.

I

Inicio pedindo passagem às nove musas do Olimpo, ao padroeiro da cidade, São José e às forças espirituais, responsáveis por portas e portais, que acolham esse gesto de gratidão, deferência e admiração, que devoto às vozes, que me antecederam, na expectativa de que a homenagem, em memória de duas ilustres escritoras, conterrâneas, seja merecedora.

  Começo com a patronesse, escritora e pensadora grapiúna, referência inspiradora da cadeira número 14, que ora ocupo, Valdelice Soares Pinheiro (1929 – 1993). Cito sua voz, para nos conectarmos com a emoção:

[…] eu sou artista, este ser que não precisa se comprometer com nada, porque ele próprio, por si, já é o olho mágico que descobre o presente, que recria o objeto e o fato para o ângulo maior da história[1].

Valdelice Soares Pinheiro nasceu em Itabuna, em 24 de janeiro de 1929. Formou-se no Magistério, mais tarde, licenciando-se em Filosofia, em Porto Alegre, RS. Titulada nos estudos superiores, a Prof.ª Valdelice Pinheiro engajou-se, em sua terra, como uma das fundadoras da Faculdade de Filosofia de Itabuna, tendo sido, também, sua diretora[2]. Mais do que paradigmática, a sua obra contribui para a diversidade, que caracteriza o mundo Sul baiano. Valdelice Pinheiro[3], nos textos poéticos (poemas, prosa poética), filosóficos ou autorreflexivos, bem como na expressão visual dos seus desenhos, rascunhos e fotografia, opta por caminhos que não acolhem interpretações simplistas, adotando a complexidade do pensamento crítico.

Algumas de suas obras:

De dentro de mim. Itabuna: Itagraf, 1961; Pacto. Rio de Janeiro: Olímpica, 1977; Retomada. Revista FESPI, Ilhéus, p. 131-135, 1984; e aqueles estabelecidos pela confreira, professora e pesquisadora, Dra. Tica Simões: Restauração: um canto brasileiro. Ilhéus: Editus, 2000. (Poema de Folha Solta, Projeto Inéditos Valdelice Pinheiro. Coord. MLNSimões); Poesias. In: SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Expressão poética de Valdelice Pinheiro. Ilhéus, BA: Editus, 2002. 150 p.

Valdelice Soares Pinheiro faleceu em Itabuna, no dia 29 de agosto de 1993.

Com peculiar emoção, ocupo-me, a seguir, da biobibliografia de homenagem e preito de gratidão à minha ilustre antecessora, Titular da Cadeira nº14, Sônia Carvalho de Almeida Maron (1940 – 2021). A magistrada nasceu em Itajuípe e viveu em Itabuna; percorreu os caminhos do saber, nas áreas jurídica, acadêmica e literária. Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi uma das fundadoras da Academia de Letras de Itabuna (ALITA). Na Instituição, confirmada presidente por dois mandatos, dispensava formalidades, preferia ser chamada pelo primeiro nome, sem títulos que a afastassem do interlocutor, porque queria proximidade e afeto ˗ palavras raras em nossa civilização “líquida”, descrita pelo do teórico polonês Zygmunt Bauman.

Ex-aluna do Ginásio Divina Providência. Sônia Maron foi juíza do Tribunal de Justiça da Bahia. Atuou nas cidades de Salvador e Itabuna, na Universidade Estadual de Santa Cruz, Uesc, na docência do curso de Direito. As suas contribuições para as áreas jurídica e acadêmica encontram-se na dissertação “O Instituto da Legítima Defesa: sua relevância no contexto da dogmática penal”. Seis anos após, lançou Legítima defesa no tribunal do júri. Mais alguns títulos, O Instituto da Legítima Defesa: sua relevância no contexto da dogmática penal, 2003; Sócrates, o homem e o mito. Diké: Revista jurídica do curso de direito da UESC, Ilhéus, BA, v.3 e artigos, como colaboradora de sítios eletrônicos, inclusive no da ALITA. A saudosa Sonia Maron, nos legou textos, que comprovam vontade de participação, em todas as instâncias do seu fazer, com voz amigável e lírica, ela anotou registros pessoais,

Aquela amiga que caminhou ao nosso lado para o colégio, dividiu o lanche, posou para retratos em preto e branco na máquina fotográfica Kodak, cantou de mãos dadas as cantigas de roda é única […]

(Cf. Amiga de ontem, amiga de sempre, in: alitaacademia.blogspot.com/2015/05)

Os seus companheiros lembram-se com apreço de histórias compartilhadas. Cyro de Mattos dela despediu-se, com uma elegia, da qual cito excerto:

[…]

Hora que não tem cura,

Vez que não tem volta

Enquanto a noite chega

Para soterrar o dia.

[…] [4].

Sônia Maron faleceu aos 81 anos, deixando-nos um exemplo de excelência e protagonismo feminino. Ave, Sônia Carvalho de Almeida Maron, sua memória é uma inspiração para todos nós, que tanto lhe agradecemos e admiramos.

II

Não cessaremos nunca de explorar

E o fim de toda nossa exploração

Será chegar ao ponto de partida

E o lugar reconhecer ainda

Como da vez primeira que o vimos.

(T.S. Eliot. (“Little Gidding”) Quatro Quartetos.

 Tradução de Ivan Junqueira)

 

Aqui nasci e esta cidade continua a evocar a minha identidade. Pessoal e literariamente vivo este vínculo espiritual e telúrico, preso à amizade, à raiz e à benignidade de minha herança familiar, conforme registros poéticos, que podem ser considerados um mesmo e único livro, pois, não se esgotando na biopoética, ocupam um espaço emocional e geográfico. Identifico-me como poeta, ensaísta e professora adjunta, aposentada, da Universidade Federal da Bahia. Titular da Cadeira nº 26 da Academia de Letras da Bahia.

Se somos o tempo que nos resta, tenho, para o meu próprio bem, mais de um daqueles sucessivos lugares a que o meu espírito viajante me levou. Concentro, porém, muitas das minhas predileções na maleável noção de pátria natal ˗ pois mais sedutoras são as lembranças da terra de origem, tema poetizado por Fernando Pessoa, nas composições do seu Cancioneiro (1930).

Ao recordar o consentimento, em manhãs luminosas de janeiros, no final dos anos 1950-1960 ˗ faixa temporal, companhia e memória literária para toda a vida ˗ há espaços essenciais, que me vêm à lembrança como o pedaço de costa da Mata Atlântica. Experiência que é a minha semente, extensão humana, que vejo da janela da vida. A casa onde vive a intimidade, o lugar onde sempre fui feliz, como resume a frase latina “Ubi bene ibi patria”, ou seja, onde se está bem, aí é a pátria.

A poesia se manifesta em minha vida precisamente por recobrir essa perspectiva existencial, liberdade da arte, virtude do silêncio. Desde que nasci aqui, junto à elevação do Pontalzinho, retorno, em estado de percepção absoluta ˗ navegação em todas as geografias que conheci, são pueris réplicas desses mapas essenciais. O Cachoeira, em sua realidade visível e, de modo algum, totalmente compreensível ˗ o que poderia muito bem assemelhar-se à dimensão aventureira da infância. Nesta cidade, pela primeira vez senti a espécie de contato único com a natureza e a cultura. Anos, muitos anos após, ficcionalmente, em poemas, narro descobertas, como quando, pela primeira vez, senti a comunicação imediata com a natureza criadora e aniquiladora. Deu-me a paisagem grapiúna lições de nova sensibilidade. Foi ali mesmo, na solidão sonora do mar da Barra de Itaípe, de Pontal de Ilhéus ou de Olivença, onde me apropriei de uma noção de geopoética. De não menor importância, a evocação da literatura, que herdei das estantes familiares e o sentimento de fascinação e medo, que me provocou a primeira visão dos cacauais. Não sem alguma aflição e considerável dose de dúvida, despedi-me desta cidade, onde fui recompensada por não poucas experiências, hoje, na poesia, percebo que não há percepção de obra poética completa, a escrita está sempre a se manifestar.

 A participação mítica com o mundo natural, os homens e todo o cosmos constituem o segredo da criação artística e seus efeitos, segundo a Fenomenologia ou como nos comprovam a obra poética de Cyro de Mattos, o universo narrativo de Adonias Filho ˗ Dono e Senhor desta Casa ˗ a prosa de Jorge Amado ou o luxo do universo do belmontino Sosígenes Costa; a liberdade de Firmino Alves; o Reverdor da recuperação épico-lírica, de Florisvaldo Mattos.

 Lembro-me e aqui homenageio as mestras, Prof.ª Alzira Paim, a Maestrina Zélia Lessa e a minha sensível professora de piano, Lourdes Dantas. Faço essas vivas referências, pois, foi assim que elos livrescos e musicais da minha história particular foram decantados e enriquecidos, com soldas poderosas, jamais esquecidas. Ressalto a importância de familiares e amigos, num caminho de busca literária, tudo impulsionado pelo desejo de ir além das últimas fronteiras, uma vez que a grapiunidade é inclusiva.

A linhagem dessa correlação de contingências serviu-me para inventar transferências juvenis, já que me sinto herdeira desse mundo rico, que é também devido aos escritores, os quais, considero minha própria tradição, no que diz respeito a criadores, que antecederam a contemporaneidade. Poetas clássicos, renascentistas, barrocos, românticos e modernos do cânone ocidental; lusos (António Vieira, Luís de Camões, Fernando Pessoa), brasileiros (Castro Alves, Casimiro de Abreu, Augusto dos Anjos, Cecilia Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade); ingleses, franceses, espanhóis e latino-americanos  (Emily Dickinson, Paul Verlaine, António Machado, Gabriel García Lorca, T.S. Eliot, Gabriela Mistral, César Vallejo, Octavio Paz), e prosadores nacionais ( Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Adonias Filho, Guimarães Rosa, Clarice Lispector); estrangeiros (Tolstoi, Kafka, Juan Rulfo, Jorge Luis Borges, Montaigne, Marcel Proust, Ernest Hemingway, William Faulkner, Thomas Hardy, José Saramago). Uma tradição sincrética e fecunda, na qual, deve-se lembrar, que o conceito de tradição ou patrimônio literário não pode ser dissociado de sua operação, graças ao cruzamento de hábitos, culturas e arquétipos da magnífica mestiçagem da qual somos filhos.

Junto à presença terna dos meus avós, pais, tios, irmãos e parentes, que me fazem sentir o ramo sergipano da família, e, principalmente, o ensinamento pelo exemplo. Vitral de memórias, conhecimentos, que acessam o dom das recapitulações, concepções de mundo até o alcance de eixos mais nobres, algumas verdades, sempre no território da poesia.

 Tudo isso intensifica o caráter mítico, quase sagrado, que as terras grapiúnas possuem para aquela borda da mata; para a margem do rio Cachoeira ou junto ao primordial oceano. Cito o poeta Cyro de Matos, cujo eu-lírico nos adverte: Bebo tudo no mistério (Cf. MATTOS, 2020. “Cerco das águas”, p. 454)

Ou como anotou José Dantas de Andrade, meu tio e preceptor,

quando as terras do Sul do Estado da Bahia começaram a criar fama, atraindo sergipanos, sírio-libaneses, sertanejos e gente de todos os pontos do Estado e do país, o arraial de Tabocas foi um dos preferidos por esses imigrantes.[5]

 O cacau protagoniza narrativas; possui ressonância merecida, pelo tratamento literário, que o insere no espaço das letras brasileiras. A densidade e a qualidade da produção artístico-cultural da região constituem fato incontestável. Representado por grandes romancistas, como os citados, Jorge Amado e Adonias Filho, dela fazem parte os ficcionistas Jorge Medauar, Cyro de Mattos, Euclides Neto, Hélio Pólvora, Ruy do Carmo Póvoas, Marcos Santarrita, e poetas como Sosígenes Costa, Telmo Padilha, Firmino Rocha, Minelvino Francisco Silva, o poeta Cyro de Mattos, Florisvaldo Mattos, dentre tantos.

Encaminho-me para a conclusão e relembro a alegria genuína, que relaciona a disposição para o novo, como vitória do espírito acadêmico, que permite a esta Casa de Adonias Filho receber vocações diversas. A ALITA também está viva, no Facebook, no Instagram, na sua página institucional, por iniciativa e talento da confreira, Raquel Rocha.

 Já finalizando, peço-lhes licença para a referência a um legado familiar, povoado de preceptoras, mundo feminino, que tem muitos nomes: Georgina, Aurora, Alzira, Amélia, Lourdes, Louralina e Athaíde, tia Sulinha. Preito e memória de gratidão aos meus pais, Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata; afeto e fidelidade aos irmãos, Renato de Oliveira Prata e Regina Amélia Prata Vidal; primas e primos, companheiros de infância, aqui representados pelos Martins de Oliveira, Marcia, Mercedes e Marcelo; Oliveira  Dantas, Marilene, Ronaldo, Marisa e Maruse e Roberto; Oliveira Menezes, Rubem e Rosevaldo; e, em memória, Rita, Raimunda Elba e Margarida Menezes;  também, em memória, os meus mentores afetivos, intelectuais e culturais, a quem dedico não poucos textos: João Martins de Oliveira, José Dantas de Andrade, Chiquinho e Raimundo Oliveira Cruz, esses últimos, filhos de Luís Manoel da Cruz, meu avô materno.

Alcanço por derradeiro o meu porto seguro, que me apoia e acompanha, Letícia, Ana e Daniel, joias geradas de uma vida cinquentenária, em comunhão, com Jamison Pedra Prazeres, esposo e companheiro de vida, presença que enriquece com  beleza visual todo o meu projeto de escrita ˗ família nuclear,  multiplicada, que alcança treze vidas, com Nilson Bolgenhagen, Oscar Goodman e Michele Mascarenhas Prata, e os amados cinco netos, João Filipe, Samuel, Olivia, Pedro e Leonardo, vidas vinculadas, que abraço, como meu patrimônio  amoroso .

Muito obrigada!

 Itabuna, 19 de novembro de 2022

[1] PINHEIRO In :.HISTÓRIA de Itabuna: Valdelice Pinheiro, poeta e artista plástica. Itabuna, 14 abr. 2020. Disponível em: http://www.historiadeitabuna.com.br/2020/04/valdelice-pinheiro-poeta-e-artista.html . Acesso em: 30 ago. 2022. p.1.

[2] MIRANDA, Antonio. Valdelice Soares Pinheiro (1929 – 1993). [S.l: S.n.], 2020. Disponível em: https://academiadeletrasdeitabuna.com.br/2021/12/24/adeus-a-juiza-sonia-maron-exalta-mulher-a-frente-de-seu-tempo/. Acesso em: 30 ago. 2022.

[3] PINHEIRO, Valdelice. Restauração: um canto brasileiro. Ilhéus: Editus, 2000. p. 8. (Poema de Folha Solta, Projeto Inéditos Valdelice Pinheiro. Coor. MLN Simões).

[4] MATTOS, Cyro de. Pesares de Sônia Maron. In: ROCHA, Raquel (Prod.). Homenagens dos Alitanos à querida Sônia Carvalho de Almeida Maron: uma das fundadoras e ex-presidente da Instituição. Itabuna: Academia de Letras de Itabuna (ALITA), 2021b. Disponível em: https://academiadeletrasdeitabuna.com.br/2021/12/22/homenagens-dos-alitanos-a-querida-sonia carvalho-de-almeida-maron-uma-das-fundadoras-e-ex-presidente-da-instituicao/ . Acesso em: 18 set. 2022.

[5] ANDRADE, José Dantas de. Documentário histórico ilustrado de Itabuna. 2. ed. Itabuna: Gráfica, 1986. p.84.

 

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