VÓ CARMINHA- Por Ceres Marylise

VÓ CARMINHA

Ceres Marylise*

Caminhava apressadamente, pois recebera o chamado que tentava evitar havia muitos dias. Uma chuva fina tamborilava no guarda-chuva da mocinha que seguia à minha frente, dispersando um pouco meu pensamento. Finalmente, e com um nó a paralisar-me a garganta, parei diante da casa que me era tão familiar e toquei a campainha. A gentil cuidadora recebeume em silêncio e, vagarosamente, dirigi-me para o quarto.

No silêncio daquela manhã em que a percepção da morte rondava por dentro despedaçando o melhor de mim, olhei para a frágil e pálida mulher reclinada na cama com gestos e voz enfraquecidos, cuja presença aos poucos se findava.

Mantive-me de pé refletindo sobre o tênue fio de vida que a prendia a este mundo, onde entre os seres vivos, só o homem tem consciência de sua própria finitude. Sentindo-se finito, desmorona seu mundo de certezas ao imaginar-se em algum momento, na iminência do limiar dessa outra realidade. Existencialista, o homem tem dificuldade de lidar com a morte, exatamente pela sua incapacidade de conviver com as circunstâncias da vida de tantos significados e tantas insignificâncias.

Olhei mais uma vez para aquela mulher de tantos anos: minha querida Vó Carminha, a mulher que ainda chamava a atenção pelo contraste do seu olhar transbordando candura e firmeza, quando nada mais poderia ser feito; a mulher marcada pela simplicidade e pela fortaleza que a faziam saltitar como uma menina sobre a trilha dos dias e ao mesmo tempo, agigantar-se diante dos desafios, sabendo-se envelhecer; a mulher de sóis e chuvas que nunca se intimidou diante do difícil e do improvável; ao contrário, fez deles seus motivos para sonhar, lutar e viver, doando-se sem descanso à sua família.

 Nessa perda prenunciada, senti-me sozinha sem o dedo e o olhar que sempre me apontaram os caminhos por onde deveria transitar na outra margem. Uma sensação de incompletude apossou-se de mim ao perceber-me nela e saber que ela também carregava parte  mim. Beijei-a ternamente na fronte, tomei suas mãos entre as minhas e orei ao Nosso Pai. Confortei-me na fé e me amparei entre a dor e a certeza de que nunca mais a teria ao meu lado vivendo pedacinhos soltos de felicidade.

Com esses pensamentos, e sob o pesado silêncio do ambiente, revi-me ainda muito pequena, quando ela segurava minhas mãos e me dizia de coisas grandiosas que eu poderia ser e que eu nada entendia, pois o tempo e a conquista de algo, nada significavam para mim naquela idade; lembrei-me de quando se punha a rezar mostrando a fé de sua alma pura; de quando me ensinava deveres e direitos e me dava conselhos, dos quais nunca poderei esquecer; também das valsas e de algumas canções, principalmente Menino de Braçanã e Guarânia da Lua Nova, eu já adolescente, que entoávamos juntas e ela se fazia acompanhar de batidas suaves na mesa; da traquinagem de algum neto que a fazia ameaçá-lo de mentirinha com um abano nas mãos; da poesia que escreveu e me presenteou no aniversário de 15 anos, da qual ainda lembro a primeira estrofe: “Quinze anos hoje completas / alvorecer do existir / quantas esperanças adejam / em teus lábios a sorrir.”

Entre chorosa e meio perdida dentro de mim mesma, baixei minha cabeça e meus olhos se fixaram no chão. Ficaram os chinelos debaixo da cama… sem ela. Haveria algo mais triste naquele momento? Saí do quarto e me refugiei num local mais afastado da casa tendo a certeza definitiva de que só o tempo é eterno e deixa as marcas inexoráveis de seus passos em cada um de nós; que é na triste experiência da perda do outro que podemos refletir e entender sobre a vida dando-lhe valor e novo significado.

 

  • Natural de Ubaitaba, Sul da Bahia, é graduada em Pedagogia e Letras, pós-graduada lato sensu em Alfabetização com concentração na área de Linguística e pós-graduada stricto sensu em Linguística. Docente aposentada pela Universidade do Estado da Bahia, onde também ocupou os cargos administrativos de Coordenadora de GT de Implantação dos Campi XIII e XX, Diretora do Campus XIII, Chefe de Departamento do Campus XIII e Coordenadora de Colegiado de Curso no Campus XX. Possui produção literária publicada no Brasil e no exterior em várias antologias, inclusive bilíngues, e é autora do livro Atalhos e Descaminhos lançado em Brasília no XI Encontro Internacional de Escritoras, no Salão do Livro em Paris – França e nas Bienais do Rio de Janeiro e São Paulo. É associada efetiva do Rotary International, onde assumiu os cargos de Presidente de Clube, Presidente de Imagem Pública, Presidente de Desenvolvimento do Quadro Associativo, International President District Scolarship Subcommittee Chair – District 4391 and Honorary Member. Membro efetivo da Academia Brasileira Rotária de Letras – ABROL, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB, da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia e faz parte de diversas instituições literárias no Brasil e no exterior. Na Academia de Letras de Itabuna – ALITA, ocupa a Cadeira 16 e tem como patrono, Abel Pereira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *