Cyro de Mattos

CRÔNICA DE SÔNIA MARON –  Cyro de Mattos

Nunca vou dedicar um texto ou livro meu a quem andou comigo na jornada da vida. Não vou dedicar à Sônia Maron, inserindo abaixo do título o registro “de saudosa memória”. Recuso-me à submissão da homenagem com essa feição de saudade e afeto, memória e luto.  Simplesmente prefiro fazer assim: dedico à amiga Sônia, que sempre estará comigo. Fazendo parte de mim, não se desligará até quando chegar minha hora nessa verdade que pesa em cada um de nós.

O que tenho a dizer diante do inexorável, nessa hora que fere, dói, como dói? Viver é morrer o presente, houve quem dissesse. Lembro que ela brincava na matiné do carnaval infantil, animada no clube social.  Dava voltas no salão, cantando:

Chiquita bacana
Lá da Martinica
Se veste de uma casca
De banana nanica.
Não usa vestido,
Não usa maiô,
Inverno pra ela
É pleno verão,
Existencialista
Só faz o que manda
O seu coração.

Jogava confete, serpentina, cantava, não parava, seguia alegre dando volta no salão.

Era nossa infância como parte do encanto, igual à liberdade caminhava de mãos dadas com a inocência, a ternura e a esperança. Em noite clara, as meninas brincavam de ciranda na rua. Os meninos escutavam no passeio.

Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
A meia volta vamos dar

Prefiro lembrar a garota mais bonita de nossa juventude. Foi rainha dos estudantes, da primavera, da cidade. Foi rainha de tudo. Quando passava, arrancava suspiros dos rapazes com a pose de galã fatal. Já moça, nos bailes noturnos esbanjava alegria no carnaval do Grapiúna Tênis Clube. Às vezes romântica, no salão triste seguia, triste cantava.

Eu perguntei ao malmequer
Se meu bem ainda me quer
Ele então me respondeu que não.
Chorei, sofri, por saber que ele
Feriu o meu pobre coração.

Foi madrinha do time de futebol do Itabuna quando o Vasco da Gama do Rio veio jogar no Campo da Desportiva. Entregou um buquê de flores ao chefe da delegação dos visitantes. Uma flâmula da cidade ao capitão Belini do Vasco, que há pouco tempo tinha se sagrado campeão mundial de futebol pelo Brasil, nos campos da Suécia, ao lado de Garrincha, Didi, Vavá, Zagalo, Nilton Santos e outros craques. Fez um discurso improvisado, as palavras incandescentes, as imagens certeiras. Arrancou palmas de todos.

Um dia aconteceu como Juíza de Direito. Ficou assim para sempre no exercício eficaz da função. Atuava na Justiça criminal, gostava de presidir as sessões do Tribunal do Júri. Dizia: façam silêncio, se não vão sair do recinto. Estamos julgando duas paixões numa tragédia, a dos familiares do réu e a dos parentes da vítima, que teve a vida ceifada por motivo doloso.

Por mais que queira explicar o inexorável, nessa hora sob o peso do mistério, não consigo chegar perto, cambaleio.  Oi, Sônia, minha conterrânea, como eu e outros abnegados, gente sonhadora desta terra, foste fundadora da Academia de Letras de Itabuna. Com esforço, alma e vida fizemos o parto. Tenha cuidado agora, não se perca. Embora seja a hora escura, calada e fria, haverá na estrada a mão de Deus que guia.

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O GRAFITEIRO POETA – Cyro de Mattos

O Grafiteiro Poeta

Cyro de Mattos

          Ultrapassada a fase criativa sob o domínio da inspiração e da transpiração, um dia o autor imagina que o primeiro livro está pronto para ser editado. Vai ser útil ao outro na leitura do mundo. Ainda não sabe como é complicado publicar um livro por editor no circuito nacional, principalmente quando se trata de poesia. Com o mineiro Ney Mourão não foi diferente. Durante vinte anos, o poeta de Notas dispersas pelas paredes vinha   batalhando a publicação de seu primeiro livro. Chegou a ter uma ideia desesperadora nesse desejo de vê-lo finalmente editado. Começou a grafitar poemas nos muros da cidade.

            Assinava-se “poeta à procura de editor”. Ante o espanto de alguns e indiferença de muitos, grafitou cerca de duzentos poemas. Andou quilômetros, em três anos, a pé e de ônibus. Cobriu quase todos os bairros da cidade. Várias vezes foi preso e humilhado. Serviu como tema de redação nas escolas. Foi dado como morto. Souberam que o poeta estava vivo. Foi entrevistado e virou notícia na mídia. Mas nada de encontrar até então o editor de seu livro de estreia.

            Em seu destino de ser poeta, com a marca da vida e do sonho nos muros, nunca desistia. Fazia, no itinerário das madrugadas de um homem só, que Belo Horizonte amanhecesse riscada de versos comoventes. Como estes do conhecido poemeto “Lampejo”: “Apague/a rua/que a lua/tá linda!”. Ou ainda estes de “Light”, de conotação surrealista: “Às vezes / de tão feliz/ ela acorda/ e sai por aí/ a t r o p e l a n d o b o r b o l e t a s”. Ou também nestes de “mercadolivrepontocom”: “Troco/ um apito de fábrica/por um canto de pássaro”. Entre tantos poeminhas, que lembram o haicai, pela síntese construtiva, intencionalidade de grande beleza imagética, não posso deixar de citar estes versos primorosos de “Litúrgico”: “Grafite de Deus/é arco-íris/ no horizonte!”.

            Em sua composição técnica e estética, como numa peça sinfônica, o conjunto destas gritantes Notas dispersas pelas paredes reúne poemas curtos na maioria das vezes. Acordes no elétrico emocional do espírito para iluminar o ar. Repercutir nas ruas e invadir as casas. Coexistem, em sua partitura musical, como elementos constituintes do discurso terno quase sem o liame entre o poeta e o leitor, leia-se ouvinte, eliminando-se o que se considera ser tão-somente um formalismo desnecessário, na esperança de aumentar em suas conexões sensoriais o poder emocional que emerge em cada verso.

Mas esse mineiro criador de uma poesia nas paredes e tapumes também se sai bem quando escreve o poema com desdobramento da razão emotiva. Nesse particular, anotem como fatura exemplar do eu lírico os textos denominados “Inventário”, “Poema Musical para Roer as Unhas” e “Indo”. Neles o poeta não pretende explicar a vida, o que para o poeta Drummond, o trivial lírico de Itabira, é inexplicável. Sob aspectos pungentes, transmite a beleza inevitável da poesia na vida, também inexplicável, em momentos de chuva, lágrima e solidão colados em nossa condição humana, nestes agudos ritos de passagem no sempre.

            Trata-se de uma poesia de captação fácil, como talvez deva ser nos tempos atuais de velocidade, como quer Calvino. Seu discurso articula-se com rapidez para ser ouvido pelo outro mais o mundo, seduz com a enunciação sensitiva de seu conteúdo. O leitor vai encontrar nessas estridentes Notas dispersas pelas paredes o andamento da beleza com motivações múltiplas no exercício da vida.

            Nos tempos de hoje, em cujo ritmo uma sociedade pós-industrial impele-se pela automação, pela massificação e pelo consumo, vale a pena tomar conhecimento da estreia desse poeta mineiro. Sua voz de grafiteiro poeta lateja emoções lindas. Em nervura e cumplicidade de palavras polivalentes, mostra o quanto o homem tem de grandeza em sua consciência grafitada com razão e emoção.

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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POEMAS DO NEGRO Por Cyro de Mattos (DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA)

 

Abolição

Na zoeira do terreiro

Batucam que batucam

Tambores sem cambão.

Trepidam nesses punhos

O suor, a lágrima, o sangue

Nos rastros do negro fujão.

Todos batem nesse tambor,

Pode até não ser de fato

A tão esperada abolição.

Mas é o começo duma hora

Que se faz tão grandiosa

Como o verde na amplidão.

 África agora é uma só voz

Na esperança das manhãs

Sem o ferro do vilão.

……….

Canga

Não se logra extrair

Os ossos dessa massa,

Os músculos mutilados

No esforço dos anos.

Tuas mãos, escravas,

Alimentadas na turva

Ferida, dor sem cura.

A atrocidade no ferro

Que furou o coração,

 A enchente na vala

Que transbordou de mágoa,

Nuvens não tocadas.

Nunca será paga a conta

Na mancha que envergonha.

Como herança os rastros

Dessa noite escura na pele

Que te lança nos muros,

Agarra-te  nas  manhãs

Com sua claridade vista

Apenas pelos não pretos.

Até quando barreiras

De tua  cor opaca farão

Da vida  uma coisa qualquer,

Desigual, desvão sem canto?

…………….

Pelourinho

Como suportar?

Treze… trinta… cinquenta…

Até o último gemido.

Os outros olhando

Cada chibatada. Tristes,

Sem nada fazer.

Ladeiras gastas.

E esse vento que recusa

Ao largo a desgraça.

……….

Escravo

Uma mão

Feito casca

Não lava

A outra

Feito lixa.

Ásperas

As duas

Feito bucha

Limpam

As duas

No esmero

Do senhor.

Limpam

As sobras

Ou  largura

Depois de lá

De dó em dó.

Perto

De o dia

Clarear

Até o sol

Morrer.

……………
Zumbi

Falo Zumbi,

Digo Palmares,

Ritmo da liberdade.

Falo Zumbi,

Digo Palmares,

Batuque da igualdade.

Falo Zumbi,

Digo Palmares,

Manual da fraternidade.

Falo Zumbi,

Digo Palmares

Sem o açúcar insaciável.

Falo Zumbi,

Digo Palmares,

Gente em grito, indignada.

Falo Zumbi,

Digo Palmares,

No abismo a África salta.

………………….

Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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SONETOS DA MÃE AUSENTE- Cyro de Mattos

 

A casa era pequena, mas em tudo
os dias tinham tuas mãos zelosas.
Colocavas nos vasos aquelas  rosas,
como sonho na manhã perfumando,

esbanjavam pelos ares ternura.
Davam vida à máquina de costura
tuas pernas ativas. Os bordados,
beleza tecida, sempre lembrados.

Como o mundo de Deus era grandão.
Dizias que primeiro a obrigação,
depois, filho, é que vem a diversão.

Só de lembrar me dão água na boca
teus doces. Cativando com açúcar
das mãos divinas as amargas nunca.

II
A casa toda alegre, a manhã sente
tua voz comovendo desde cedo,
os afazeres no ar iluminado
por teu jeito de torná-la cantante.

No quintal do vizinho passarinhos
faziam o coro com outros cantos.
Não sei qual dos cantos era o mais lindo,
o teu com o filho contente, sorrindo

ou o deles na festa, entre tantos,
a manhã pura bicavam, afoitos.
Como se fossem hoje os teus gestos

ainda estão nítidos dentro de mim
ligados num sonho que não tinha fim.
Tua voz, mãe, não ouço, teve um fim.

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DE DRUMMOND PARA CYRO DE MATTOS

UM CONTISTA BRASILEIRO

Com Os Brabos (1979) , Cyro de Mattos venceu por unanimidade o Prêmio Nacional de Contos e Novela da Academia Brasileira de Letras. Comissão julgadora: Alceu Amoroso Lima (relator), José Cândido de Carvalho, Adonias Filho, Afonso Arinos, Herberto Sales e Bernardo Elis. Autor de 54 livros, de diversos gêneros, com Os Recuados, contos, foi premiado com o Jabuti em 1988 (Menção Honrosa). Ficou entre os quatro finalistas do Concurso Internacional da Revista Plural, no México, com o conto “Coronel,  Cacaueiro e Travessia”, concorrendo com mais de 600 autores da América, Europa, África e Ásia. Premiado ainda pela Academia Pernambucana de Letras (duas vezes), União Brasileira de Escritores (duas vezes) e no Concurso Nacional Jorge Amado do IV Centenário de Ilhéus.

No gênero conto   tem nove livros publicados. Seus contos participam de antologias internacionais, como “Ladainha nas Pedras”, inclusa em Espelho da América Latina, publicada na Dinamarca, organizada por Peter  Poulsen e Uffe Harder, na qual figuram Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Juan Rulfo,  Alejo Carpentier, José Revueltas, Augusto Roa Bastos, Juan Carlos Oneti, Clarice Lispector, Mário de Andrade e Aníbal Machado, dentre outros. Seu conto  “O Velho e o Velho Rio” figura na antologia Ao Sul do Rio Grande, publicada na Rússia, ao lado de Rosário Castellanos, Julio Cortázar e Mário  Benedetti, e na Modernos Contistas do Brasil, de Carl Heupel, Alemanha, na qual estão os contistas Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Luís Vilela, Ricardo Ramos, José J. Veiga, Aníbal Machado, Mário de Andrade, Sônia Coutinho, Adonias Filho e  Hélio Pólvora, dentre outros. Além disso, Cyro organizou as antologias Contos Brasileiros de Futebol, O Conto em 25 Baianos e Histórias dos Mares da Bahia.

                        

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O MENINO JORGE AMADO- Cyro de Mattos

           Nos livros de ficção desse escritor popular percebe-se que o narrador de linguagem fluente dá voz aos humilhados e ofendidos, ao povo do candomblé, às gentes do cais, prostitutas, seresteiros, pescadores, operários, poetas populares, meninos de rua. Com esse elenco de tipos populares fica nítido que para ele é mais importante o conteúdo na trama, muitas vezes interligada com humor, do que a palavra com a qual a vida é recriada.

           Íntimo dos poetas populares, sua inspiração é dotada de um lastro humanitário que se expressa através da esperança na mensagem, da liberdade como o sentimento mais valoroso e o amor o mais forte.  A   solidariedade se faz presente na sua obra, na escrita irreverente que se transmite fascinante, tantas vezes sensual, mesclada com suas ondas de indignação.

           Aqueles que o conheceram sabem que ele tinha a amizade como uma coisa nata. Dava-se conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida   o artista vaidoso como o homem.  O compromisso que sempre teve com as letras foi o da verdade, honestidade, promoção do reconhecimento do valor no outro e a defesa da liberdade de expressão. Daí ser reconhecido por justeza como um legítimo romancista da vida, um poeta da prosa que encanta.

           Detentor das mais belas páginas de nossas letras. De O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, retira-se essa passagem, com sabor e saber que resultam de um criador que adota o simbolismo do amor como o sentimento mais poderoso no caráter do homem e da mulher. Ele alude que o mundo só tem graça e encanto quando se vive nele fora das prisões.

O mundo só vai prestar

Para nele se viver

No dia em que a gente ver

Um gato maltês casar

Com uma alegre andorinha

Saindo os dois a voar

O noivo e sua noivinha

Dom Gato e Dona Andorinha.

           Qualquer escritor que se preze gostaria de assinar uma joia de versos como essa, simbolizando o amor que a vida deve ter sem preconceitos e dominações. Uma joia singela com brilho de verdade.  O amor como eterna armadura sustentável na leveza do ser, que não se cala e diz que a vida é bela, muita gente quer vê-la  com desprezo,  sem dar o valor que ela merece.

           Tal como acontece com O gato Malhado e a andorinha Sinhá, depois que se acaba a leitura de A bola e o goleiro (1984), história escrita para o público infantil, como para o adulto que ainda não deixou de ser criança, certamente dirá, “uma pena, que um inventor de ingenuidades, com alma tão infantil, leve, cheia de humor, dotada de surpresas e sustos coloridos, que cativam e encantam, não tenha se dedicado mais à escrita de livros para os leitores pequenos.”

            Certo que a infância tenha recebido tratamento importante ao longo da construção de seu legado romanesco para o leitor crítico. Mas o que se lamenta, repito, é que no olhar para o mundo com visões líricas e reflexões críticas para o leitor generalizado, esse consagrado autor de uma soberba literatura adulta, rica de imaginação e sentimento popular do mundo, não fizesse de seu ofício também um recanto dedicado ao leitor infantil, amante da boa prosa e do verso engraçado, e não se deixasse ficar como um bissexto autor para crianças.

              Essas considerações agora vêm a propósito de O goleiro e a bola uma beleza de texto infantil, que tem o futebol, uma das paixões do povo brasileiro, como tema.  Com maestria fina, sutilezas e manhas, Jorge Amado escreve a história de amor entre a bola Fura-Redes e o goleiro Bilô-Bilô Cerca-Frango, que não se cansava de tomar gol, por razões óbvias era considerado o pior do mundo na posição. Até que um dia aconteceu o inesperado. Amor à primeira vista entre Fura-Redes, o pavor dos goleiros, e Bilô-Bilô Mão Podre.

           Depois chegou o dia de o Rei de Futebol fazer o gol milésimo da sua carreira, marca que jamais seria alcançada por qualquer goleador. Todas as bolas se ofereceram para ter a honra de ser a vítima do gol milésimo do Rei de Futebol. E o que aconteceu?

           Mudou Cerca-Frango de posição, fugindo rápido para o outro lado. Fura-Redes fez o mesmo, a buscá-lo. Assim ficaram os dois durante alguns minutos, um tempo enorme, correndo em frente às traves, de uma à outra, até que, desesperado, Bilô-Bilô disparou campo afora deixando o arco à disposição da bola. Mas Fura-Redes partiu atrás de seu goleiro e o perseguiu até que o alcançou diante do arco do adversário e em seu peito se aninhou redondinha e amorosa.

         Como terminou essa história futebolística entre a Bola Fura-Redes e o goleiro Cerca-Frango, que foi o pior e o melhor de todos?

          Se casaram e viveram felizes para sempre.

Referência

AMADO, Jorge. O gato Malhado e a andorinha Sinhá, Record, Rio de Janeiro, 1976.

              ——– A bola e a rede, Record, Rio de Janeiro, 1984.

  ………..

*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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DISCURSO DO HERÓI DE PALMARES- Cyro de Mattos

Ao receber a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador, em sessão solene, online, às 20 horas, no dia 3 de novembro de 2020.

Boa noite a todos.

           Ilustre jurista, vereador e confrade Edvaldo Brito.

Primeiro quero agradecer esse momento a Deus, depois à  minha esposa Mariza, que tem sido minha base durante 52 anos de casados, aos meus três filhos André Luís, Josefina e Adriano, que tanto me  motivam para que eu seja um cidadão digno, e aos meus seis netos, Rafael, Pedro Henrique, Gabriel, Luís Fernando, Marizinha e Murilo, que me dão alegria e certeza de que quando eu estiver em outra dimensão continuarei ainda aqui, neste velho mundo, em cada um deles.

Faço um agradecimento especial ao professor emérito e jurista consagrado, vereador Edvaldo Brito, o autor do projeto para que esta Casa me concedesse a distinção. Muito me honra ter sido colega daquele estudante pobre na turma de 62 da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Aquele rapaz de corpo comprido, que foi o orador da turma. Esse homem de cor, cidadão digno, um símbolo vitorioso da negritude na Bahia e no Brasil. Essa criatura rara, de cultura adquirida com esforço nos livros, brilho de sua inteligência, crença na força dos antepassados, e que se sabe herdeiro da fraternidade e compromissado com a verdade, portador do axé, que, como se diz no candomblé, é “a luz do dia”. É por sua iniciativa generosa que estou aqui sendo homenageado, apesar de surpreso até agora ao receber essa láurea, e comovido.

Certa vez minha tetravó materna contou à minha trisavó que contou à minha bisavó que contou à minha avó que uma gente que vivia nas suas aldeias foi retirada da África como bicho, pior do que bicho, para a escravidão no Brasil Colonial.  Filho foi retirado da mãe, marido da mulher, irmão do irmão, acorrentados foram trazidos com os rostos tristes, até que se viram jogados para o embarque como um fardo deplorável no porão fétido do navio negreiro.  Longe, tão longe, foi ficando atrás na savana a lágrima de Deus.  No rumo desconhecido, seguia aquela gente na carga desgraçada, feita com vozes sofridas na cena lastimada. Uma pobre gente solitária vagando pela imensidão das ondas salgadas. Viajava marcada sem perdão, o corpo amassado, a fome e a sede nas horas de aflição, menos para o traficante branco, que conduzia o navio por entre as águas de cobiça e perversidade.

No poema “Navio Negreiro”, de meu livro Poemas de Terreiro e Orixás, dou minha versão dessa sinistra embarcação com sua carga sofrida numa rota dos infernos.  Eis o poema:

Navio Negreiro

não adiantava

gemer

não adiantava

mugir

não adiantava

 viver

muito melhor

morrer

funda a ferida

amargo o ferrão

ardido o sal

aguda a solidão

negro negro negro

o mugido anuncia

a sede e a fome

 de boi em agonia

todo esse mar

é a desgraça

não branca

que até hoje

das entranhas

rola nas ondas

o seu mal-estar

o despejo na praia

diz de um tesouro

alimentado do pai

alimentado da mãe

do filho e do irmão

como ofensas no amor

do suor fabricado

para a saborosa canção

do constante senhor

 Na rota da desgraça foi submetida essa gente ao trabalho servil do Brasil colonial. Alguns negros inconformados fugiam da senzala em busca da liberdade na mata fechada. Não conseguiam reter o suor e a amargura que derramavam todos os dias para irrigar o canavial do senhor de engenho.  A fome do Brasil açucareiro era insaciável, nunca se satisfazia com o trabalho de graça dado pelo braço escravo. O feitor com os cachorros logo ia atrás do negro fujão, que terminava castigado com a sua afronta no pelourinho. Treze, trinta, cinquenta chibatadas. Muitos não suportavam o castigo, morriam esfacelados.  Tristes, os outros olhavam, não podiam fazer nada. Calados, lambiam o vento, que soprava no peito a sina feita de atrocidades, assim guardadas como ruínas dos dias nos gemidos mudos.

Quem de novo fugisse e fosse apanhado, o remédio agora era cortar um pé, para que o exemplo fosse melhor disseminado.  Minha avó contava que em outros casos de insubmissão a língua era cortada daquele negro falador, inflamando os outros para fazer a revolta. Contou mais que minha tetravó tinha o seio farto, foi lambido, bebido como gostosura o seu leite puro para o anjinho do senhor não sucumbir.  Senhores bigodudos, sisudos doutores provaram do leite morno e doce, saindo ilesos das sombras da morte.  A paga daquele ofício era na roupa lavada, engomada, no fogão aceso e abanado, no asseio de inúmeros cômodos, no carrego de feixes de cana, em tudo que tinha o gosto amargo para que a vida continuasse no seu ritmo invariável de dor e solidão.

O mel da cabaça da negrinha era para servir a seu dono, que deixava o fel nas entranhas. Matava a sede do que batia os dentes, montava nela com todas as forças que pudesse reunir e perfurava, sem remorso, umas carnes tenras. Arrancava os tampos com sua flor guardada entre as pernas, olhe lá, não tens que gritar, é pra ficar abafada nos lamentos, entorpecida pelo som e a fúria dos meus punhos, o querer é só meu, ninguém se atreva a interromper.  Passava o inverno, passava o verão, o tempo e as dores essa gente desgraçada ia moendo, remoendo. Como devia ser, os céus ordenavam. As horas se resumiam na fome e na sede de animal em passividade e agonia. O final todos sabiam, uma coisa, que teve a vida toda em luto perpétuo, era enterrada na cova rasa, mais nada.

E dizer que o Brasil foi carregado nos ombros dessa gente vítima de mazelas, violência e injustiça. De toda sorte de vilanias, preconceitos, desigualdades. Essa gente da qual também procedo, que deu o suor de sol a sol ao jugo do senhor branco e de volta recebeu a canga. O Brasil tem uma dívida com o negro que é impagável. Esquecido dessa dívida, ainda se vê hoje, em pleno século vinte e um, atos pusilânimes que alimentam a mancha que envergonha, essa chaga que subtrai e faz da vida um horror com fendas acumuladas de aversão, feridas que não curam.

Ontem na televisão, diante do rosto da humanidade pasma, a notícia veio com a cena do negro que teve a vida esmagada pelo policial branco.  Tiros foram desfechados nas costas de outro, que, indefeso, tentou fugir da perseguição como fúria canina. É comum a rejeição ao negro, considerado ao longo dos séculos como um ser inferior, de gradações baixas, daí não ser nada de mais ser visto até hoje no semblante inocente dele o ladrão ou o assassino.

Diante de tantas atitudes para alimentar o império do mal, destruir o espírito universal do bem, mais que nunca é preciso resistir, denunciar, lutar para desfazer a mentira e ao invés disso gritar a todos pulmões que a liberdade é o valor maior, a igualdade não é privilégio de ninguém, Deus fez todos nós com a mesma alma, o amor é o sentimento mais forte.

Devo lembrar que o Quilombo dos Palmares era formado por três aldeias. Aí por volta de 1640 viveram cerca de dez mil quilombolas. Eram fortes e contentes, plantavam de tudo e não se serviam da terra como fonte única de riqueza, através do açúcar. Cada família em Palmares ocupava um lote de terra, o que tirava dela era para o seu sustento. Em 1670, já inúmeros povoados cobriam muitos quilômetros de terra na serra do Barriga, em Alagoas.  Palmares havia se transformado em um Estado, situado na borda do litoral do mundo canavieiro. Tornava-se por isso mesmo em grave ameaça ao império do açúcar, com seu sistema fixo calcado no braço escravo, em benefício exclusivo do senhor de engenho.

         Tinha uma população de trinta mil almas quando sob o comando de Zumbi sucumbiu às investidas de Domingos Jorge Velho, chefe de um exército armado de canhões, constituído de nove mil homens. Sucessor do trono de Ganga Zumba, Zumbi mostrara ser um guerreiro implacável antes mesmo de ser derrotado por Domingos Jorge Velho. Há quem diga que ele se pareceu aos heróis de guerra Aníbal, Alexandre, Ciro e Napoleão. Diferente deles porque não combateu para conquistar territórios e glórias, mas para fazer de Palmares uma flecha a ser atirada para o coração da liberdade.

Muitos historiadores esconderam dos compêndios oficiais a grandeza do caráter de Zumbi dos Palmares, mas a verdade prevaleceu. Ele se tornou um verdadeiro herói do Brasil, símbolo da resistência negra perante o ferro do colono usurpador. De maneira que a essa altura só me resta dizer nesse momento de especial reconhecimento o quanto me dignifica receber da Câmara de Vereadores de Salvador, a mais antiga do Brasil, uma honraria com o nome desse herói negro. E assim terminar minha fala com um poema inspirado nessa figura, que por sua coragem e amor à liberdade, lealdade ao seu povo, tornou-se um marco elevado da tão esperada abolição.

Zumbi

Falo Zumbi,

digo Palmares,

ritmo da liberdade.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

batuque da igualdade.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

manual da fraternidade.

Falo Zumbi,

digo Palmares

sem o açúcar insaciável.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

gente em grito indignada.

Falo Zumbi,

digo Palmares,

no abismo a África salta.

Luzes da Manhã,

força do amor

pelo chão e nos ares.

Espero que minha voz como um grão nos ventos da resistência venha se juntar ao movimento que vem lutando nos anos pela sanidade da razão, expandindo-se para a valorização e conscientização do universo do negro.

A todos, o meu muito obrigado por esse momento gratificante em minha jornada de vida.

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