Produção Literaria

DESCASO E MELANCOLIA: MEMÓRIA HISTÓRICA EM AGONIA- Janete Ruiz de Macêdo

A cidade de Itabuna, mais uma vez, foi obrigada a se confrontar com perdas irreparáveis. Perdas que levam à melancolia e ao enfraquecimento da memória, do sentimento de si, da sua identidade. Alguém se importa? Após os acontecimentos deste 19 de outubro de 2024, a demolição do sobrado do comendador José Firmino Alves, construído no final do século XIX, local onde foi pensado e gestado o processo emancipatório da cidade, centro social e político da vila da Tabocas e da cidade de Itabuna, a impressão que fica é de que não. Lá se processaram duros debates para escolha do primeiro Intendente, planos para prover a novel cidade dos aparatos urbanísticos e culturais necessários.

De onde veio mesmo essa cidade? Que imagem queremos construir? Estamos dispostos a apagar a imagem que a cidade adquiriu ao longo da sua trajetória, a imagem que lhe foi construída e que tem sido apresentada aos outros e a si própria?

A ideia de uma identidade cultural coletiva pautada em referentes materiais parece ser uma impossibilidade para os governantes municipais. Da mesma forma, é impossível encontrar quem se identifique com a ideia de patrimônio cultural. Nietzsche, em sua obra Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, afirma que os seres humanos precisam ter futuro, “estabelecer-se como garantia de si mesmo como futuro”, por isso desenvolveram uma vontade ativa de guardar impressões, apreender o acontecimento necessário, antecipar-se ao possível no tempo com segurança. Para tanto, foi preciso, pois, criar a responsabilidade. E esta seria algo vazio se a promessa de ontem caísse no esquecimento.

Dentro dessa perspectiva, onde está a nossa responsabilidade? Sociedade civil itabunense organizada, representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos calados, todos coniventes com a demolição da casa do fundador de Itabuna, um dos poucos prédios históricos da cidade, até então, sobreviventes. Mais uma vez a estratégia foi a de demolição na surdina. Diante do seu susto e indignação, alguém escreveu ao memorialista Moacyr Garcia: “calma, foi a família que vendeu e não foi tombada a pedido dela própria”. Assim foi também com o Castelinho, casa de Aurea Alves Brandão Freire, localizada no canto norte da praça Olinto Leone, construída entre os anos de 1919 a 1924 e demolida em 1989. Deixo aqui registrado fragmentos do texto de Helena Borborema Era uma Vez um Castelo:

“Era uma vez… muito tempo atrás, bem no início da década de vinte, um rico senhor de terras e cacauais[…] desejou dar a uma de suas filhas noivas, como presente de casamento, uma bela mansão. Mas, como realizar o seu sonho numa terra onde tudo faltava, onde as coisas belas do espírito nem eram cogitadas… Queria uma bonita vivenda, algo que embelezasse a sua cidade… era aquela construção o testemunho de uma época endinheirada, monumento de amor à terra que tanto prodigalizou as benesses aos que a ela se dedicaram, nela fizeram fortuna e souberam retribuir a sua dadivosidade. Era ele o símbolo, a expressão da crença de um homem, Firmino Alves, no futuro de uma cidade. E num triste dia, silenciosamente, na calada da noite, impiedosamente, sem protestos, sem o menor respeito […] sem nenhuma causa justificável, o Castelinho foi jogado abaixo, como se com ele jogassem no lixo as relíquias do passado de um povo, de uma cidade”.

Renegamos esse passado? Que memória queremos construir? Para que conservar o que nada significava de amor para elas?

A memória de pedra e cal da cidade é praticamente inexiste: já não existe o teatrinho ABC, o prédio de Martinho Luiz Conceição, o casarão de Tertuliano Guedes de Pinho, a casa pertencente a Carlos Maron e o mesmo destino, em breve, terá a Cadeia Pública Municipal de Itabuna, o Museu Casa Verde e o pouco que resta do sobrado do médico Moisés Hage. Se quisermos ir um pouco adiante, por que não falar da deformação do prédio da Maçonaria Areópago Itabunense e o da Associação Comercial de Itabuna?

É certo que a memória coletiva itabunense não é um baú de tesouros depositados democraticamente, ao longo do tempo por razões afetivas, por todos os cidadãos da cidade. Sabemos que é uma memória exercitada por poucos, uma memória pouco ensinada, e a derrubada da casa de Firmino Alves, atesta, mais uma vez, a falta de efetividade da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania (FICC), e do Conselho Municipal de Cultura, órgãos que deveriam ser guardiões do nosso patrimônio histórico e cultural.

Parece só restar, então, a escriturística da saudade, buscando soluções na memória para oferecer uma sensação de identidade sólida apesar dos efeitos do tempo, pois por meio dela, como afirma Joel Candau em sua obra Memória e Identidade, “o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança. Juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente”. É isso que alguns memorialistas itabunenses têm realizado incessantemente, buscando soluções na memória para manter viva a história da cidade como um legado para o tempo presente.

A escriturística da saudade busca impedir que no fluxo temporal o esquecimento engula as memórias e a história de um povo e de um lugar, mas para uma memória forte e uma consciência viva sobre seu passado, é necessário a preservação de referentes materiais que lhe deem suporte. Para tanto, se faz necessário o exercício da Responsabilidade que tem faltado de forma profunda a grande parte dos agentes sociais que, direta ou indiretamente, labutam no campo da história e daqueles que ocupam cargos estratégicos no campo da política e da cultura.

Legenda da Imagem:  Praça Olinto Leone no final dos anos trinta. Na foto a Igreja Matriz de São José. O Castelinho e o sobrado do Comendador  José Firmino Alves.

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CRISTAIS QUEBRADOS- Rilvan Santana

Cristais Quebrados – R. Santana

     Doutor Fernando D´Angelo Consetti jamais desconfiou de sua esposa Maria Eduarda, ambos tinham cumplicidade de vida invejável, ambos se amavam, ambos eram referências de casamento, ambos eram presenças obrigatórias nos eventos sociais e ambos se completavam com o amor das filhas Milena e Mariana. Porém, o destino faz surpresa que a razão condena, naquela noite, enquanto Maria Eduarda dormia, o médico Fernando Consetti, impulsionado por estranha curiosidade, pegou seu celular, no canto do sofá, e começou bisbilhotar seu Whatsapp:
“O nosso segredo está cada dia mais insuportável… Fernando e as meninas têm que saber, não dar mais para esconder, senão vou à loucura!”
“Depois que te encontrei, lamento o tempo que tivemos longe um do outro, quero dizer ao mundo quanto tu és importante em minha vida.”
“Calma! Calma! Depois da formatura das meninas, irei dar um jantar de apresentação, é difícil viver nessa farsa, todos irão nos compreender…”
“Posso comparecer à festa de formatura de Milena e Mariana?”
“Não! Como iria lhe apresentar?”
“Soube que será uma festa de arromba… ninguém daria por mim!”
“Sim!”
“Então?”
“Fernando é muito perspicaz…”
“Mas não me pedirá identificação!”
“De jeito nenhum!”
Naquela noite, Fernando Consetti não mais pregou os olhos, relutava em acreditar que sua amada esposa o estivesse traindo, mas o diálogo e as imagens do Whatsapp não lhe deixavam dúvidas: Maria Eduarda estava lhe traindo com um homem bem-apessoado e muito mais novo! Agora, ele tinha as respostas de suas saídas pra visitar uma pobre tia paterna do outro lado da cidade, que Maria Eduarda resistia lhe apresentar com pretextos estapafúrdios.
Quando ele a conheceu seu pai já havia morrido. Sua mãe possuía uma pequena lanchonete e Maria Eduarda estudava faculdade de enfermagem, 27 anos atrás. Ambos se amaram e se apaixonaram nos primeiros encontros, simbiose de sentimentos. Ambos com trabalho e determinação construíram um patrimônio considerável e mais importante do que o material, construíram uma família linda.
Daquela noite em diante, Fernando Consetti de comportamento alegre, brincalhão, otimista, tornou-se sério, taciturno e arredio. Já não ficava nas refeições conversando abobrinhas ou conjeturando projetos com a família, sentava-se mudo e saía calado, quando Milena e Mariana cutucavam-no com o objetivo de lhe envolver nas conversas de família, ele era econômico nas palavras:
– Paizinho, já contratou o “Buffet” para nossa festa?
– Sim! – então:
– Já contratou o mestre de cerimônias?
– Não! – as meninas aflitas:
– Ainda não contratou o mestre de cerimonias, paizinho!?
– Não se preocupem…
– Sugerimos-lhe o jornalista Egydio Antonelli!
– Tá!
Suas filhas conversavam e tergiversavam, às vezes, sobre coisas que não lhes diziam respeito, a exemplo da bebedeira do vizinho, o sortudo da Mega-Sena, Bill Gates, etc., mas ele não falava nem rosnava. Sisudo estava e taciturno continuava, nada lhe cheirava nem fedia, um estranho no ninho.
Maria Eduarda não sabia mais como lhe agradar, pois o homem gentil, carinhoso, amável, de antes, quase não lhe dava uma palavra, substituiu a doçura pela rudeza, as palavras lhe saíam de estucadas, atropeladas, quase inaudíveis, com raiva, deixando-a apavorada, aí se refugiava no quarto em choro contido e pressentimento ruim.
Pressentia que o marido havia descoberto o seu segredo e se perguntava: “Como?”, “Será que me seguiu?”,      “Será que foi no celular?”, “O celular tem senha, e o trago com cuidado. Será que ele realmente descobriu?      Não vejo como?…”
Uma força estranha brotava dentro de si, pressentia que algo sinistro estava pra acontecer… O quê? Não tinha resposta. Esperava que todos lhe compreendessem, pois Carlos Eduardo não carrega culpa, ela sim, escondeu de Fernando Consetti, das filhas e da sociedade que tinha outra pessoa em sua vida, portanto, era a única responsável por ter escondido das pessoas queridas o que não se esconde: o amor maior! Jurou pra si que depois da formatura, revelaria o que já deveria ter sido revelado fazia tempo e não o fez por falta de coragem.
Maria Eduarda conhecia bem seu marido, talvez ele resistisse, por amor próprio, no primeiro momento, porque ninguém gosta de ser enganado, porém, com o tempo, ele assimilaria tudo mais do que os outros, pois sabia que Fernando Consetti é mais coração do que razão. E o bom coração não alimenta ódio, mágoa, desprezo, ou, ressentimentos menores. Por isto, estava decidida por um fim naquela situação que lhe tinha dado o destino.
Milena e Mariana amavam sua mãe, mas o prato da balança pendia mais pra o pai. Ele desde cedo cuidou delas com cuidados extremos: do banho ao penteio dos cabelos. Nas reuniões da escola, ele mais do que a mãe, era presença constante. Qualquer folga no trabalho, saía e se divertia com as filhas, na rua, nos jardins, nos parques de diversão, nas brinquedotecas, sempre com as filhas, por isto, a situação atual deixava as moças preocupadas, aguardavam a formatura pra colocar os pontos nos ís.
A deslealdade da pessoa amada talvez seja o sentimento mais pérfido do ser humano. Ninguém gosta de ser traído… A traição transforma o amor em ódio, destrói todos os sentimentos bons alimentados por uma pessoa ao longo da vida, até o traidor não justifica sua traição, mesmo em graves circunstâncias, o segredo mais pérfido, o mal absoluto, a verdade liberta.
Maria Eduarda transformou o amor de Fernando Consetti em ódio, o tempo seria o bálsamo para fechar todas as feridas, mas até lá, a deslealdade e o ódio deixariam muitos corações despedaçados, mágoas e decepções eternas. Todavia, juízos precipitados causam danos e injustiças irreparáveis.
A mansão dos Consettis parecia coisa de cinema: iluminação direta e difusa (em alguns ambientes), garçons espelhados por todos os cantos, cadeiras e mesas espalhadas à borda da piscina, cozinha repleta de servidores para que tudo fosse a contento, na parede frontal, um grande banner exibia as imagens de formandos de Milena e Mariana, Fernando Consetti se desdobrava em gentileza para ser um anfitrião perfeito e Maria Eduarda, toda graciosa, vestida à moda de Grace Kelly.
Não se podia reclamar do “Buffet”, comida e bebida de qualidades aos montões, os garçons se esmeravam no atendimento.
Música para todos os gostos, a Banda “Xis” se revezava com dois vocalistas: um com música jovem, popular; o outro, com música menos popular, afeita para homens e mulheres cinquentões.
O jornalista Egydio Antonelli cerimoniava com competência, nada saía da pauta, um vídeo lhe ajudava contar a trajetória de vida dos formandos, ambas tinham lutado pra chegar até ali, porém, os pais tinham sido decisivos, mas num trecho do depoimento, ambas destacaram a dedicação especial do pai.
A certa altura da festa, Egydio convidou os pais para falar, Maria Eduarda foi sucinta: elogiou as filhas, agradeceu aos presentes o comparecimento e elogiou o marido. Fernando Consetti fez um discurso:
“Senhores e Senhoras”:
“Os pais se realizam no sonho cumprido de seu filho. Quando o destino frustra esse sonho não sofre somente o filho, os pais sofrem mais do que o filho, hoje, o destino está do nosso lado, Milena e Mariana realizaram seus sonhos.”
“Embora ficasse lisonjeado com a fala de minhas filhas, não fui mais que minha esposa nessa caminhada, pois se não fosse seu trabalho administrativo no hospital, nas fazendas, na lida doméstica, no seu apoio emocional, jamais eu teria desempenhado bem o papel de paizão! Maria Eduarda é guerreira, é companheira e mãe estremada.”
“Portanto, nós queremos agradecer a presença de todos os amigos e amigas nesta festa, nossa felicidade, agora, nunca será empanada no que possa vir no futuro”
“Muito obrigado, que Deus lhes pague… E, Parabéns para Milena e Mariana!”
Às 3 h: 30 min do dia seguinte, os convidados deixaram pouco e pouco a mansão dos Consettis, a festa foi encerrada.
12 horas depois:
Os empregados da mansão dos Consettis estranharam os patrões dormindo àquela hora, evidente que a festa de formatura terminou de madrugada, mas não era costume o casal dormir até tarde, festa ali era constante e os patrões acordavam sem prejuízo de suas atividades de trabalho, naquele dia, os ponteiros do relógio marcavam 15 h:30 minutos, nada… Então, eles levaram suas preocupações pra Milena e Mariana.
A surpresa e o pavor tomaram conta de todos: Fernando e Maria Eduarda abraçados na cama e a caminho da eternidade… Tudo estava em seu lugar, exceto dois cálices de cristais quebrados!
Um mês depois:
Cedo ainda, o mordomo anuncia a presença de um moço às herdeiras Consetti:
– Ele deseja falar com as senhoritas!
– Quem é? – apresentou-lhes um cartão onde se lia: “Carlos Eduardo N. Souza – Engenheiro Civil”
– Mande-o entrar! – minutos depois:
– Meus pêsames!
– Obrigado! – responderam ao mesmo tempo Milena e Mariana e completam:
– Deseja o quê?
– Meu nome é Carlos Eduardo… – interromperam-no:
– Lemos o seu cartão!
– Eu sou filho… filho… filho… – desembuche rapaz!
– Eu sou filho bastardo de Maria Eduarda Nascimento Consetti!
Elas desabaram em choro, e choraram… Compreenderam que aquele segredo mantido por sua mãe por mais de três décadas, fez de seu pai vítima e assassino-suicida! Jamais a perdoariam…

Autor: Rilvan Batista de Santana

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UM OLHAR SOBRE O RISCO E O LAÇO – TRAÇADOS DO DESTINO NAGÔ- Tica Simões

Um olhar sobre O Risco e o Laço – traçados do destino nagô

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Maria de Lourdes Netto Simões*

 

Da larga produção de Ruy Póvoas, deparo-me agora com o seu mais recente livro, de 2024:  O Risco e o Laço – traçados do destino nagô.

Perpassando um olhar pelas publicações que tenho acompanhado desde Vocabulário da Paixão (1985), posso afirmar da riqueza e singularidade dessa produção que, através do olhar do Babalorixá que é Póvoas, resgata a história da gente nagô, ao tempo em que ensina, passa uma cultura singular e diverte o leitor.

Afora a sua produção literária, há a científica, desse que também foi Professor Titular de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Santa Cruz–UESC, onde recebeu o título de Doutor Honoris Causa (2018).

A exemplo das publicações não ficcionais, é imprescindível referir a trilogia que denominou O labirinto Preto e Branco. Num mundo preto e branco, essa rica e instigante trilogia culmina com o terceiro volume, publicado neste 2024: Perfis da Resistência – deslindando as várias faces. A trilogia evidencia uma caminhada de reflexões, relatos de lutas e conquistas sobre o status quo do negro no Brasil.

Agora, na sua vertente literária, está o quinto livro de contos, O Risco e o Laço – traçados do destino nagô.  É uma ficção que, valendo-se dos Odu de Ifá, ensina e diverte. Ilustrado pelo autor, os desenhos e figuras remetem ao seu tema de fundo – o jogo de búzios, prática dos terreiros de candomblé para tratar dos arquétipos da criação, representados nos Odu de Ifá.

Em verdade, no livro, não só a apresentação gráfica dos desenhos e figuras comunica; também, a referida comunicabilidade com o leitor é acrescentada pela estrutura, integrada de esclarecedores paratextos. Aliás, esse uso dos paratextos já é uma estratégia do autor, em trabalhos anteriores, dos quais especialmente cito A Viagem de Orixalá (2015).

Em O Risco e o Laço – traçados do destino nagô, os paratextos deixam entrever o conhecimento do babalorixá que é Ruy Póvoas, como o articulador da ficção, que recorre a dois tipos de paratextos, para informar ao leitor a sua estratégia ficcional (não autoral e autoral).

​         Conforme esclarece no paratexto que abre o livro, Odu de Ifá é “oráculo dos babalaôs, sacerdotes de Ifá”. O livro é estruturado em dezesseis Odu. Os vários contos se relacionam com os Odu que “representam os Arquétipos da criação; as narrativas são voltadas para as variadas vivências humanas” (2024, V).

O paratexto autoral, que interroga “Por que narrar os Odu de Ifá?”, é bastante esclarecedor para o leitor que não conhece os preceitos nagôs. Por outro lado, também informa a concepção da criação literária dos dezesseis Itan –  contos que buscam se relacionar exemplarmente com os Odu.

Assim, as 16 partes em que se estrutura O Risco e o Laço, cada uma é um Odu, antecedido pela descrição-síntese de cada arquétipo: Òkànràn,

Òyèkú, Ògundá, Ìròsùn, Òsé, Òbàrà, Òdí, Èjìogbè, Òsá, Òfun, Ówónrín,

Ìwòrí, Òtúrúpòn, Ìká, Òtúrá, Ìretè, Opira. E são dezesseis contos, itans que exemplificam os traços de cada signo – “o caminho, isto é, aquilo que faz parte da destinação da pessoa” (2004, p. 18). São textos que, em contando uma história, ensinam, sinalizam caminhos, divertem e dão lições.

         E o texto finaliza, mas fica com o leitor o sugestivo convite apresentado no paratexto inicial, para que, cada um se identifique com uma das narrativas.

Eu, cá para mim, busquei a minha identificação… E conclamo cada leitor a fazer o mesmo; mas sem que deixe de observar o pensar do citado Paul Sagan (p. 213):

A imaginação

muitas vezes nos leva

a mundos

que nunca sequer existiram.

Mas sem ela

não vamos a lugar nenhum

 

E o leitor não negligencie essa última lição do livro!

 

Em julho de 2024

 

___________________

 

*Maria de Lourdes Netto Simões (Tica Simoes)

 

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POEMAS de Ruy Póvoas

PIXANINHO

A saudade dormia
um sono profundo
e não foi casual o seu acordar,
meu Pixaninho fez isso por mim.
A saudade emergiu
do antigo lajedo
e veio me dizer
também fazer parte
do complexo de mim.
Depois, Pixaninho
se foi, talvez, para sempre,
mas comigo deixou
uma doce saudade
daquele momento.
Subiu no meu colo
e rolou para lá,
rolou para cá.
Foi o bastante
para minha saudade,
de vez, acordar.
Todos os dias,
volto ao lugar
onde meu Pixaninho
também se sumiu.
Oh, meu Pixaninho,
onde você estiver
que seja um lugar
zelado e quentinho
igual à saudade
renascida em mim.

Ruy Póvoas
25/7/24

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XIRÊ

A roda gira no mundo,
o mundo gira na roda,
a gira vai com a roda,
a roda se move na onda.
A sala está repleta,
cada um no seu lugar.
O agogô marca o ritmo,
a cabaça acompanhará.
O rumpi faz a marcação,
o runlé a segunda voz.
O xirê está começando,
o Dono da Rua esperando
os pedidos que vai levar.

Ruy Póvoas
27/5/24

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ENCHENTE

A sopa grossa
desceu as encostas
e levou de roldão
as casas, as ruas,
o casebre e a mansão.
A correnteza de entulhos,
irada, raivosa,
rodopiando a destruição,
rompeu, agressiva,
os liames da vida,
tão provisórios, tão frágeis,
já sem noção.
Ficaram os abismos
na alma, no chão,
na alma enchacada
de desilução.
Sobrou desalento,
restou desamparo
e grande amargura
no coração.

Ruy Póvoas
27/5/24

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VERBALIDADE

Oh, verbo defectivo,
me valha mesmo
com seus defeitos.
Ensina-me não ter
todas as pessoas.
Algumas bastam
para um viver tranquilo.
Teu parente,
o impessoal,
é por demais arrogante
e atua sem pessoa alguma.
Diferente dele,
sou a própria pessoa
que precisa de pessoas
no meu viver em rumas.

Ruy Póvoas
13/4/24

 

 

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POEMAS de Cyro de Mattos

EM MEU CANTO

Cyro de Mattos

 

Embora alguns não queiram,
Sou do bem, logo penso:
Existo blindado por Deus.

Nessa estrada comprida
O corpo reclamando,
Quero ficar no meu canto.

Desconheço o desencanto,
Na paz desse encontro melhor
Ouvir uma música primaveril.

Entre gorjeios e volteios,
Enquanto as nuvens passam
Conversar com os passarinhos.

II
Escritor

Dentro das letras viveu.
Nunca quis leitor aos montes.
Desejou o belo.

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FLOR
Cyro de Mattos

Bela! bela!
Mal desponta,
Desaparece.
Mas a da alma
Sempre perdura
Porque na alma
Tece e acontece.

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MALANDRINHO PEPEU
Cyro de Mattos

Sou pesado mesmo,
Quieto, isso não,
Meu dentinho no doce
Eta satisfação.

Ô papai, ô mamãe,
No domingo me levem
Pra brincar de nadar
Na onda azul do mar.

Só não me deixem afundar!

 

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IMAGINANDO NAVIOS
Cyro de Mattos

Navio no mar
Com sereia e luar,

Navio no azul
Sopra nele o vento sul,

Navio encalhado
Chegará ao outro lado?

Navio no porto
Sob o sol de agosto,

Navio de pirata
Carregado de ouro e prata.

Navio na guerra
E o canhão que não erra,

Navio no fundo
E o silêncio profundo.

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ALFAIATE

Cyro de Mattos

Pijaminha.
Calção.
Calça curta.
Farda.
Calça comprida.
Paletó.
Terno preto.

Nas mãos
caprichosas
o tempo
paciente
sempre
costurava
suas medidas
exatas.

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SINO DE BELÉM
Cyro de Mattos

Blem blem blem,
Toca o sino de Belém.

Faça o bem, faça o bem,
Não importa a quem.

Tudo bem, muito bem,
Toca o sino de Belém

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RENÉE ALBAGLI: UMA REITORA IMENSA- Cyro de Mattos

Baiana de Ilhéus, a professora Renée Albagli teve uma atuação ímpar quando exerceu por dois mandatos sua elevada função de Reitora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), acompanhada pela Vice-Reitora Margarida Fahel. Ela é graduada em Biologia pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, com especialização na Universidade Católica de Minas Gerais e em Genética, na Unicamp. Fez especialização também em Gestão Universitária, na Universidade Estadual do Ceará, Mestrado em Gestão Universitária, na Universidade Estácio de Sá. A última etapa deste mestrado foi concluída na St. Paul University, em Chicago (EUA), e Doutorado em Educação foi terminado em 2010. Na FESPI (Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna), foi diretora acadêmica, diretora de graduação e extensão. Na UESC, foi pró-reitora de graduação e vice-reitora, e eleita reitora em 1996, tendo permanecido no cargo até janeiro de 2004, quando terminou seu segundo mandato. Foi membro e presidente do Conselho Estadual de Educação (CEE.

Sua gestão profícua na UESC, nos dois mandatos, traz como marcas importantes a ampliação do corpo docente e o projeto acadêmico. Encontrou a UESC com apenas 14 doutores e 48 mestres, deixando a Universidade com 102 doutores e 253 mestres.  Viabilizou essas características da Instituição através de um plano de capacitação docente arrojado, em parcerias com outras universidades brasileiras, por meio de  convênios, também encaminhando os professores para mestrado e doutorado no Brasil e no exterior. Estabeleceu uma política de concursos públicos somente para mestres e doutores, para acelerar o processo de competência. Como resultado positivo da proposta, conseguiu consolidar o processo de expansão na oferta de graduação.

Em 1997, implantou o curso de Medicina Veterinária; em 1998, Ciências da Computação; em 1999 foram implantados Comunicação Social, Biologia, Física e Química; em 2000 foi criado o curso de Medicina; em 2001, Ciências Contábeis; em 2002, Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (LEA); e no vestibular 2004 a Universidade passou a oferecer três novos cursos: Engenharia de Produção de Sistemas, Educação Física e Biomedicina. Não se pode deixar de considerar  a implantação do curso de Formação de Professores para a educação infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, a Licenciatura Plena em Pedagogia. Foram duzentas vagas em Camacan, Mascote, Santa Luzia, Arataca, Pau-Brasil, Juçari e Porto Seguro. Vale ressaltar que a UESC também passou a atuar na educação à distância, com o curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas, participando de um esforço empreendido pelo Governo do Estado para habilitar docentes em nível universitário.

Nesse aspecto extensionista, merece destaque o Centro de documentação e Memória Regional, que agrega a pesquisa e a extensão objetivando a preservação do patrimônio regional, além de incluir projetos de arquivos públicos e implantação de museus, como O Museu da Casa Colonial, em Porto Seguro, e o Centro de Documentação e Memória da Costa do Descobrimento. Anote-se ainda o curso de LEA, que tem convênio com a universidade de La Rochelle e constitui-se numa experiência pioneira para ambas, já que o eixo de cooperação é inovador.

Com relação à Pesquisa, na sua gestão foi criada a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado da Bahia (FAPESB), que se constitui num elemento essencial como política de pesquisa, ampliando a perspectiva de captação de recursos externos, que já se fazia através do Finep e do CNPq. Foi algo muito significativo não só para a UESC como para todo o Ensino Superior.

Nas áreas de pesquisa não se pode deixar de lembrara de animais silvestres com financiamento da União Europeia, que serviu para a implantação do mestrado em Zoologia Aplicada. Já na Rede Genômica Brasileira foi criado o projeto Biodiesel e o de Física Médica, que serve de suporte para a implantação do Centro de Controle de Qualidade Radiológica. Este projeto tem uma ação social muito forte, trata-se de um serviço que ainda não existia na região. A UESC também passou a atuar na Biodiversidade Marinha e Turismo, mantendo um projeto do curso de mestrado em Cultura e Turismo.

A incansável Reitora Renée Albagli, auxiliada por uma equipe eficaz, durante o exercício de sua digna missão, criou  a EDITUS – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, que passou a integrar a Associação Brasileira de Editoras Universitárias do Brasil. A editora foi inaugurada com os livros Berro de Fogo e Outras Histórias, de Cyro de Mattos, Prêmio Nacional da Academia Pernambucana de Letras, Antônio Conselheiro, Louco?, de Flávio Simões, e Dicionareco das Roças de Cacau, de Euclides Neto. Possui um catálogo enorme, com centenas de títulos publicados em diversos gêneros. Agrega nas suas publicações livros da autoria do corpo docente e de autores regionais, renomados ou emergentes. Tornou-se há anos no Brasil uma das mais importantes no setor de assuntos universitários.

É de sua coordenação e autoria o livro Histórias e Memórias do Instituto Nossa Senhora da Piedade – 100 Anos de História -1916 – 2016, publicação da EDITUS.

Com esse trajeto de uma vida dedicada à gestão do ensino superior, faz-se visível que a Reitoria Renée Albagli é uma singularidade na História da Universidade Estadual da Bahia, daí ser reconhecida como a Eterna Reitora da UESC, essa valorosa Instituição do patrimônio do saber universitário na Bahia.

 

Cyro de Mattos

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SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE ITABUNA- Cyro de Mattos

A Santa Casa de Misericórdia de Itabuna nasceu quando a cidade ainda tropeçava nas pernas, estava prestes a completar seu sexto ano de emancipação política, com a finalidade de atender às precárias e muitas necessidades da população no setor da saúde, em especial para prestar atendimento às pessoas carentes. Veio acompanhada da expectante esperança para proteger a vida na experiência do cuidar.

Naqueles idos de 1900, a cidade estava em plena expansão econômica e social decorrente de sua pujante economia com bases na lavra cacaueira, que começava a se impor como uma auspiciosa fonte de divisas para a Bahia.  Itabuna, que no início havia sido um burgo de penetração, na época da conquista da terra, com o seu povo vocacionado para o trabalho necessitava de uma casa hospitalar digna. As precárias condições de saneamento favoreciam a eclosão de epidemias e a manutenção de endemias, que ensejavam altas taxas de doenças e mortalidade nos dias e anos.

Em boa e abençoada hora, na noite de 4 de julho de 1916, na residência do Monsenhor Moysés Gonçalves do Couto, reuniram-se trinta senhores da comunidade com o objetivo de fundar a Santa Casa de Misericórdia, que a princípio se incumbiria de criar um hospital e um cemitério, paralelamente à sua atuação se prestaria em atender às obras de caridade.

Segundo pesquisadores locais, em 28 de janeiro de 1917, tomam posse nessa humanitária instituição os que foram eleitos para o seu corpo associativo, tendo como seu primeiro provedor o Monsenhor Moysés Gonçalves do Couto. Fixada a data de 07/09/1922 como a de seu marco inicial, nesta foi inaugurado o Hospital Santa Cruz, hoje Calixto Midlej Filho; logo após veio o Cemitério Campo Santo, em 07/09/1925, e, em 29/06/1953, era a vez do Hospital Manoel Novaes acontecer e se incorporar ao seu patrimônio. Em 1993 criou-se o Plano Próprio de Saúde, como forma de agregação de receita, e em 2009 o Hospital São Lucas.

Ao longo de sua saga de natureza humaníssima, a Santa Casa de Misericórdia tem sido um espaço valoroso para o exercício da Medicina, em suas diversas manifestações de sacerdócio e sacrifício.  Tornou-se com a passagem das estações um centro de atuação médica exemplar, inovadora, com profissionais e equipes competentes fez-se referência maior no ofício de salvar e curar a vida, nessa atividade em que homens e mulheres de branco não se intimidam em lutar contra a morte.

Médicos ilustres exerceram sua vocação no Hospital Santa Cruz e contribuíram para o desenvolvimento das ciências médicas na comunidade e Região. E, entre eles, figuram na Galeria da Experiência do Cuidar o legendário Alício Peltier de Queirós, José da Silva Pinto, Sílvio Porto, José Orlando Mattos, Amilton Gomes, João Otávio, Raimundo Freire, Pedro Bezerra, Moacir Oliveira, Júlio Brito, Antônio Menezes, Pedro Bezerra e Ana Paula Shr Barreto. Alguns deles foram alçados ao patamar de Provedor da Santa Casa de Misericórdia.

Os serviços prestados por essa instituição de valor inestimável são reconhecidos com prêmios e distinções por excelência, em nível estadual e nacional. Sua marca de importância ímpar consolida-se cada vez mais por meio de padrões nacionais de qualidade, com foco no ensino, inovação, pesquisa e sustentabilidade. Seus ideais são cristãos, sua ética prima pela transparência, responsabilidade social, ambiental e cultural. A galeria de profissionais competentes que vem atuando nos seus diversos setores, médicos, enfermeiros, técnicos, funcionários e outros servidores formam um corpo consistente em cuja alma aflora a força da Medicina para sustentar a vida.

Capítulo de rico significado na história de Itabuna, a Santa Casa de Misericórdia motivou-me a escrever um poema, que está incluído em nosso livro Cancioneiro do Cacau, uma epopeia da saga grapiúna, evocativa de seus mistérios e da caminhada do homem na selva hostil e impenetrável, rumo à construção de uma civilização com caracteres próprios, desde os tempos primitivos na infância da selva aos da vassoura de bruxa.  Transcrevo abaixo o poema:

Santa Casa de Misericórdia

Cyro de Mattos

Era preciso um leito
que abrigasse a agonia.
Para aliviar, curar
era preciso um leito.
Monsenhor Moysés Couto
sem hesitar dizia.
A esperança plantou-se
lá no alto da colina.
Canto de um dia novo
soube a cidadezinha.
Santa Casa que aclara,
Santa Casa das dores.
No leito esse duelo
da noite contra o dia.

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Poema Santa Casa de Misericórdia, de

Cyro de Mattos, fixado em monumento,

como homenagem ao Monsenhor Moysés

Couto.

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