Produção Literaria

O AMIGO JORGE AMADO – Por Cyro de Mattos

Enviei o primeiro livro que escrevi para Jorge Amado, seguindo conselho do amigo João Ubaldo Ribeiro, companheiro de geração. Não esperava que viesse alguma opinião dele sobre o meu pequeno volume de contos, riscado anos depois de minha bibliografia por ter sido escrito por autor imaturo. O texto envelheceu cedo. Fiquei surpreso por ver um livro de autor desconhecido ser apresentado à Academia Brasileira de Letras com palavras favoráveis do consagrado romancista Jorge Amado.

Outros livros meus foram merecedores de artigos com elogio por parte de Jorge Amado. Eram opiniões impressionistas, mas abonadas com a sensibilidade de quem mais conhece os caminhos do fazer literário na recriação da vida. E mais: ele publicava os artigos que escrevia sobre meus livros em jornais importantes como A Tarde, Jornal de Letras (Rio), Suplemento do Jornal do Brasil, Jornal do Comércio (Rio) e Suplemento Literário de Minas Gerais.

Esses gestos do criador de Tocaia Grande (Record,1984) aconteceram com outros escritores, emergentes, com obra em andamento, consagrados, baianos ou não. Ele sempre enriquecia o companheiro de letras com suas opiniões, sem esperar nada em troca. Prefácios, orelhas, artigos, depoimentos, apresentações à Academia Brasileira de Letras, um legado literário da melhor qualidade está aí espalhado com o abono do escritor tão lido e traduzido em língua portuguesa sobre livros de nossos escritores. Textos que formam um valioso legado, se coligidos, servindo como importante contribuição à nossa literatura.

Com João Ubaldo Ribeiro era diferente. Certa vez, o autor maiúsculo do romance Viva o povo brasileiro (Nova Fronteira, 1984), disse-me que não escrevia prefácio ou artigo para quem recorresse aos seus préstimos porque podia não gostar do livro e aí o suplicante, que certamente queria receber elogio, poderia com a sua sinceridade se tornar um inimigo dele. Além disso, não queria se desconcentrar de seu ofício, sempre estava escrevendo um livro ou texto, não ia deixar de lado o que estava escrevendo e centrar-se sobre quem devia abrir seus próprios caminhos com suas ferramentas e crenças, sem se apegar na muleta alheia, mas acreditando nas suas qualidades.

Neste sentido, sempre concordei e respeitei as atitudes de João Ubaldo. Ele se tornou um dos meus amigos prediletos, criatura do bem, espírito alegre, colega inesquecível da turma de 1962, na Faculdade de Direito da UFBA. Nunca quis me aproveitar de meu bom relacionamento com o consagrado ficcionista e receber dele a opinião favorável de meus escritos. Fiz minha carreira literária com os meus textos publicados em livros, meus prêmios relevantes, que tornaram minha obra com mais visibilidade. Enviei em vários casos os originais de meus livros para as editoras, sem temer que fossem aprovados ou não para publicação, depois da leitura crítica do conselho editorial.

Ao escrever sobre Palhaço Bom de Briga (L&PM Editores, 1993), um dos meus livros para as crianças, em artigo publicado em forma de missiva, dirigida ao romancista Josué Montelo, então presidente da Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado chegou ao ponto de lembrar meu nome para fazer parte daquela importante instituição das letras brasileiras. Houve exagero. Só mesmo Jorge, com o seu coração doce como mel de cacau, podia distinguir assim meu nome, em gesto que comovia, servia como incentivo para que eu nunca desistisse em minha jornada literária. Embora eu já fosse autor nessa época de mais de vinte livros, entre volumes de contos, poesia e literatura infantojuvenil. Havia conquistado alguns prêmios literários importantes e, entre eles, o Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, por unanimidade, para o meu livro Os Brabos (Civilização Brasileira, 1979), o da Associação Paulista dos Críticos de Artes para O Menino Camelô (Atual Editora, 1992, 12ª. Edição), Menção Honrosa do Jabuti para Os Recuados (Editora Tchê!1987) e várias vezes fui agraciado com o primeiro lugar nos certames promovidos pela União Brasileira de Escritores (RJ).

Jorge Amado exercia a amizade como uma coisa nata, tão dele. E me mostrava sempre que com as mãos nas mãos, o gesto desprovido de interesses pessoais, desligado da religião do egoísmo, tudo fica mais fácil. Com ele não entravam no exercício da vida a inveja e a intriga. Dava-me conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida o artista vaidoso e invejoso como o homem.

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SEMPRE ALERTA – Por Silvio Porto de Oliveira

Sempre Alerta!

Naquele tempo em que a infância ainda cabia nos pés descalços e nos olhos curiosos, eu fui Lobinho. Tinha dez anos e o mundo era uma grande trilha a ser desbravada com coragem e alegria. Nosso Akelá – o guia da alcateia, o sábio da floresta das histórias de Kipling – chamava-se Baracat. Nome forte, rosto severo, mas com um coração que sabia sorrir quando via um de nós aprender algo novo.

Aos sábados, vestíamos o uniforme como quem se revestia de um sonho. Lenço no pescoço, meias até o joelho, boné com a insígnia bordada. Aquilo não era só pano e emblemas: era símbolo de pertencimento, de honra infantil. A disciplina vinha como vento que molda, e nossos pequenos corpos aprendiam o valor do esforço, do cuidado, da prontidão.

A estrutura dos Escoteiros da época era firme como tronco de jequitibá. O Major Dórea, figura imponente, coordenava tudo com olhar atento, disciplina militar, mas sempre justo. Sob seu comando, aprendíamos que a obediência não era submissão, mas escolha de caminho.

Foi como Lobinho que fiz minha primeira comunhão. Um momento sagrado vivido entre irmãos de lenço e promessas. Lá estavam Wandick, Bob, Nando, Carlos Auad, Samuel Luna… Nomes que ainda hoje sopram lembranças doces. A celebração foi na capela da Ação Fraternal de Itabuna — templo simples, mas repleto de fé e vozes suaves. A luz da manhã atravessava os vitrais e repousava sobre nossas cabeças como bênção invisível.

Lembro que, antes de comungar, revimos o nosso lema: “Sempre Alerta!”. Palavras curtas, mas com a força de um grito de vida. Estar alerta era mais do que vigiar: era viver com presença, respeitar o outro, estar pronto para servir.

Não foram apenas nós que crescemos naquela época. Foi também o caráter, a amizade, o espírito de coletividade. Fomos moldados na madeira dos bons valores, na rocha da fraternidade e no riso que brotava fácil, mesmo depois de uma trilha difícil ou uma tarefa malfeita.

Hoje, ao lembrar daquela alcateia, meu coração ainda se põe em formação. E o menino que fui continua ali, com o lenço no pescoço e os olhos brilhando, pronto para repetir o grito de guerra da infância que nunca nos deixou:

— Sempre Alerta!

Silvio Porto de Oliveira.
Em 02/08/2025

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GURIATÃ, O INTÉRPRETE (II) – Por Rilvan Santana

Guriatã, o intérprete (II)

R. Santana 

 

    Os poetas cantaram muito em seus versos o sabiá, o bem-te-vi, o zabelê, o curió, o beija-flor, o colibri, asa-branca, pombo-correio, pássaro-preto, rouxinol, mas eles foram um pouco injusto com o único intérprete da mata, para uns, guriatã, gurinhatã, guriatã-de-coqueiro; para outros, tico-tico-do-campo, gaturamo e baíra-amarela e para o douto: “Euphonia violacea”, Ammodramus humeraralis”, “Tangara cayana”, a mim que não sou doutor nem regionalista: “Guriatã, o intérprete”, pois o pequenino pássaro, o cantor da orla e da mata, imita com perfeição todos os outros.

     Em 1610, o padre português Jacome Monteiro, escreve ao rei de Portugal: “É o pássaro mais músico de quanto há nesta Província, porque arremeda a todos os mais, e por isso o chamaram de “guiranheenguetá”, que quer dizer pássaro que fala todas as línguas de todos os mais pássaros”. São mui prezados. Estes são os que de ordinário se conservam cá em gaiolas”.
     Moleques, nós embrenhávamos nas matas do cacau com gaiola de talas de bambu ou gaiolas de cortiça e taquara, pendurada no dedo ou na palma de uma das mãos e alçapão na outra. Quando não tínhamos dinheiro para comprar alçapão, lambuzávamos um galho com visgo de jaca com iscas de banana, milho ou milho-alpiste, escondíamos à distância, não levava muito tempo, o passarinho esperneava-se grudado no visgo pedindo socorro!…

      Naquela época, os moleques se dividiam em grupo de ideias de gente grande e o grupo de amadores. O grupo mais profissional, o de gente grande, só criava curió, canário, pássaro preto, sabiá; o outro, o amador, que valorizava o prazer, o divertimento, a brincadeira e não o dinheiro, pegava o pintassilgo, a rolinha, o bem-te-vi, o sanhaço e o guriatã… caiu na rede era peixe, minto, caiu no alçapão era passarinho…

      Não me incomodava com a sujeira (cocô) que o guriatã fazia na gaiola, a minha mãe Judite é que não ficava prosa, porém, o seu canto quebrantava-lhe o ânimo. Se por descuido deixasse a gaiola aberta e o guriatã batesse asas, ela rendia homenagem ao pássaro, cantarolando a composição “Guriatã de Coqueiro” de Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho, cantor e compositor paraibano da dupla Jararaca e Ratinho de tempos idos:

 

“… Eu não sei por que motivo
     Guriatã foi-se embora
     Foi-se embora e me deixou
     Também a minha viola
     Companheira inseparável
     Que minha mágoa consola”

      Porém, se a minha intrusa peraltice invadisse esse momento, corrigia-a para distante ouvir a minha musa, a minha tia, a mulher que me criou voltar a cantarolar:


     “…Vou fazer uma promessa
     Ao meu santo protetor
     Pra fazer ele voltar
     Esse pássaro cantador
     Pra alegria do meu rancho
     Que nunca mais se alegrou”,

          Hoje, os tempos se foram, os cabelos loiros encaneceram, mas no espírito o moleque permanece, também, os cuidados daquela avezinha de muitos cantos, de penas de azul escuro brilhante em cima e penas amarelas ao longo do corpo e na fronte da cabecinha, uma coroinha de penugens cor de ouro que Deus colocou, longe no tempo, ouço viva a voz de minha mãe Judite:

 

  “Guriatã de coqueiro
     Bateu asas e foi-se embora…”

 

 

Autor: Rilvan Batista de Santana

Licença: Creative Commons

Membro da Academia de Letras de Itabuna – ALITA

Imagem: Google

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VERSOS DESNUDOS — POEMAS EM TEMPOS TENSOS, DE AGENOR GASPARETTO – Por Tica Simões

Maria de Lourdes Netto Simões

 

São 40 poemas ‘desnudos’,  com olhares sobre esses ‘tempos tensos’.    E como? ‘Desnudo’ é mesmo palavra-chave. Seja pela apresentação despojada do livro  com uma capa branca, sem desenhos ou outras cores;  seja por uma estrutura sem os paratextos costumeiros; seja pelos versos livres. Esses são, já, uma forma de  “fala” do olhar.  

  O processo de criação poética ocorre sem consultar, como revelado em  Inspiração, poema que abre o livro.  Surge   Musa atrevida ,   pedra bruta a versejar.  Assim  acontece a Poesia, inesperadamente, motivada por questões muitas, fruto de observações, sensações, sentidos…  Esses dois primeiros poemas  sinalizam o processo criador,   e como que anunciam, introduzem o subtítulo:  poemas em tempos tensos.

Daí, a estrutura do livro  vai se configurando em relação à proposta “desnuda” do fazer literário.  Tematicamente, os poemas dizem das linguagens, dos materiais, dos temas, dos focos das problemáticas que os olhares enxergam no processo da vida, e em tempos difíceis…

A  cada foco, a linguagem cresce em possibilidades que provocam:  nuances, sentidos, intertextualidades, “ditos” que se aproximam da oralidade…     E a estrutura do livro se resolve entre os focos dos elementos da natureza: Terra, Agua, Fogo e Ar, intercalados por poemas acrescentadores do tema geral.  Cinco  poemas  integram  cada foco que formam os blocos temáticos. Caminhos é um bloco que se acrescenta aos quatro elementos,  enfatizando as escolhas  nos tempos difíceis.    

Nos poemas do elemento Terra, titulado  Pedras,  destacam-se  recursos de sinonímia, comparação por metáfora ou analogia, oralidade: …Rocha…Calhau…Cascalho… ‘Dormir como pedra’…. As intertextualidades acrescentam a significação, como no poema IV, com Drummond, Pedra no Caminho ;  pedra sobre pedra .

A seguir esse primeiro foco, outros poemas apresentam títulos temáticos que provocam analogias e promovem reflexões:    ProfundezasInfinitos profundos/ Abismos sem fim […] SolidãoDistânciasDa indiferença humana  […]  Da ausência de sentido. Pesado e LevePesado/ qual  consciência […] Leve / qual sono inocente; E os poemas abordam também as formas de espiritualidade e religiões que, para alguns, funcionam como muletas.  Tábuas da Lei:  Duas pedras,  dez mandamentos […] frágeis, quebradiças; Vida PenitenteReligião/ Pecado […] Condenação / Penitência. Estado de Graça: Alma flutuando […] Andar leve. Velhice Abandonada: Labuta incansável […] Rugas na alma. Magia e Milagre: Divino milagre da vida.  Somente, aqui, citando alguns poemas.  Os demais seguem em similar estratégia de produção textual, aprofundando o foco da existência sobre questões éticas, do mundo virtual fachada esplendorosa. O sem sentido da guerra, mortal, desalmada.  Reflexão sobre o Tempo,  momentos de uma vida que é  tão breve. Se cicatriza rusgas, também  cria memórias. E observando a natureza, vê nela  divino milagre da vida

No  segundo bloco,  Águas, a oralidade fica também ressaltada pelos ditos populares   –  tirar água de pedra -, nos  cinco poemas.  As intertextualidades, com propriedade,  remetem a Fernando Pessoa (“Rio da minha aldeia”), Heráclito,  Baumman, Tom Jobim… nesses poemas de Águas, associações intertextuais  com Aguas de março,  induzem ao olhar político:  Águas rasas, profundas [..]  Lavagem de roupa suja

Daí, os Caminhos suscitam reflexões existenciais, relacionados à inexorabilidade da vida, às buscas de cada um:  Ser feliz; escolha de caminhos, incerto risco/ Descaminho ou fortuna ; Fé na Ciência/ Fé na religião.  Dois poemas sobre Guerra traduzem  o seu sentido avassalador, mortal/ desalmada. A perplexidade de pensar: Por quem matar? […] Por quem morrer?…

 Fogo, mais um bloco  tematizado,  é chama de vida;  lutas de cada um: Histórias recontadas/ Memórias revividas. E os “ditos” enriquecem as reflexões: Brincar com fogo/ Lenha na fogueira/A ferro e fogo, e a voz de Guimarães Rosa é chamada em conclusão: Perigoso é viver .  Mas,  do mesmo autor G Rosa,  enquanto leitora, digo: “o que a vida quer da gente é coragem!”.  E parecendo responder, o poema V, com otimismo,  traz Camões – amor é fogo – e também  Raul Seixas: Tente outra vez...

Ar, o último bloco temático:  É bandeira tremulando;  é  Fúria, força, energia é  Don Quixote e os Moinhos de Ventos . Depois, ainda intertextualizando e concluindo, é Mudar de ares … E o Vento Levou .   Entre o céu e a terra, Shakespeare!/ O tempo e o Vento, Érico Veríssimo , diz o poeta: Outros ventos, outros ares, outros mundos/ outros viventes, graças a Deus!

Os poemas, seguintes aos blocos, suscitam o tempo e o seu passar…   Numa sequência quase narrativa, desde  Tempos imemoriais, a Pegadas na areiaMudança no Horizonte… que chega ao Mundo Virtual em que vivemos em Solidão,/ Malancolia, /Vazio.   E em Busca, Buscas sem fim.  Evolução insinua o caminhar da humanidade, que Domou o fogo, a planta, o animal/ Domou a energia, Domou o outro, irmão […] Mais poder, mais riqueza  e a idéia da ambição que norteia a humanidade…   E a inexorabilidade  do tempo  segue,  nos demais  poemas, considerando momentos de magia e trégua, com no Carnaval. Mas o destino é nascer e morrer, Vestir e Despir. O Tempo: Atemporal, imemorial, eterno  .  A ironia é sinalizada  na nostalgia do Passado Glorioso.  Tudo passa… Ficam as Reminiscências, Mergulho nos tempos de criança

Afinal, os cinco últimos poemas, destacados  em italic, trazem esperança.  Falam de Semeaduras e Colheitas. Falam de “sentimentos de sombria e pungente colheita”, aqui e acolá.  A  intertextualidade com   Por quem os Sinos Dobram,  de Hemingway, conclama: “Toquem por eles, toquem sem cessar/ até o pesadelo despertar!”  Com o título de Tolstoi, recorre a Guerra e Paz, mas ironicamente, conclui: “Quem foi que disse que a paz se faz / Com sangue de vidas?”

Sutil e ironicamente, então, a voz poética mostra a sua incredulidade ao propor um recomeçar: “Quem falou em Arca em asa de meteoro?/ Quem falou em ovo novo, de novo? Quem falou serpente mais uma vez? “   

Recomeçar tudo outra vez? O leitor se pergunta!

E o poema que encerra o livro instala a dúvida. Entre a tigresa de Caetano, “de unhas negras/ e íris cor de mel” e a Monalisa de  Leonardo da Vinci, ou mesmo o tigre de Capinam e Macalé,  resta a descrença de mudança “Tormento sem azuis manhãs”

Nesse singular processo criador, por estratégias diversas, narrativizando poeticamente, Agenor Gasparetto  faz, também, a sutil  crítica social a esses  tempos tensos.

 

 

Em agosto de 2025.

 

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ITABUNA SEMPRE – Por Rilvan Santana

Gente deveria ser igual cidade que o tempo não destroi, mas constroi. O homem quando nasce, nasce bonito, se velho morre, morre pelancudo, murcho, desdentado, envergado, calvo, pele enferrujada, dor aqui, dor acolá, o tempo não perdoa… A cidade nasce com ruas tortas e estreitas, caminhos, casebres de taipas, de adobes, de tijolinhos, esgoto a céu aberto, iluminação precária ou sem iluminação, abastecimento de água improvisado, etc., etc., porém, à medida que o tempo passa, torna-se arquitetada, bonita, atraente, confortável, iluminada, ruas largas, água na torneira, casas planejadas, prédios, arranha-céus, transportes de massa, escolas, postos de saúde, hospitais, segurança pública, justiça, assim ocorreu em Paris, em Londres, em Roma, em Jerusalém, em Washington e em Itabuna.

Itabuna nasceu às margens do rio Cachoeira sob os olhares dos índios aimorés, tupis, tupiniquins e a força econômica dos tropeiros que faziam passagem para Vitória da Conquista na rancharia “Pouso das Tropas” na Burundanga, de José Firmino Alves. O sobrinho do cacauicultor Félix Severino do Amor Divino e filho de José Alves, Firmino Alves, foi o verdadeiro fundador de Itabuna, em 1906 ele doou as terras para sede administrativa do município, antes foi o Arraial de Tabocas, Vila, enfim, Itabuna, desmembrada de Ilhéus em 28 de Julho de 1910 e seu primeiro prefeito o engenheiro Olynto Batista Leone um dos apaniguados do coronel do cacau e político Firmino Alves.

O historiador Adelindo Kfoury registra que Firmino Alves não foi somente um grande fazendeiro, um coronel do cacau, tanto quantos muitos de sua época, mas um homem de excepcional capacidade administrativa, ainda jovem, com a morte do seu pai, mudou-se de Burundanga para o Arraial de Tabocas e construiu na Rua da Areia (Miguel Calmon), uma moradia suntuosa para os padrões da época e um armazém de cacau.

Firmino Alves além de empreendedor, foi um político de quatro costados, desde cedo, articulou junto às autoridades do estado a independência de Itabuna. Alguns anos antes do desmembramento de Ilhéus, Itabuna ainda Vila de 10.000 habitantes, estimulou a vinda de profissionais qualificados, em pouco tempo, engenheiros, médicos, professores, agrônomos, topógrafos, agrimensores, dentre outros profissionais, desembarcaram aqui com a promessa de um novo El Dorado.

Hoje, Itabuna não lembra de longe o Arraial de Tabocas, não é uma metrópole, mas é uma cidade grande: comércio forte, indústria incipiente, agricultura doméstica, sistema de saúde significativo, escolas para todas as faixas de idade, faculdades privadas, universidade, centro administrativo, bom sistema de segurança pública, justiça que atende às demandas, transporte de massa satisfatório, infraestrutura em expansão, ruas e avenidas asfaltadas, arquitetura moderna, uma frota significativa de automóveis e dezenas de bairros em torno.

Porém, a marca principal de Itabuna é o seu povo. Itabuna foi construída por gente simples e ordeira que migrou de outros estados do Nordeste, principalmente, o estado de Sergipe. O itabunense é alegre, bondoso, solidário, prestativo, acolhedor, trabalhador e inteligente. Não é à toa que o forasteiro não se sente forasteiro pouco depois que chega a este pedaço de terra do Sul da Bahia.

A cultura itabunense tem atuação expressiva no cenário nacional. Os nossos poetas, os nossos escritores e os nossos artistas são reconhecidos aqui e lá fora. Não se pode negar a contribuição às letras e às artes de Itabuna, de Jorge Amado, Valdelice Pinheiro, Firmino Rocha, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Telmo Padilha, Plínio de Almeida, Minelvino Francisco Silva, Walter Moreira, José Bastos, José Dantas de Andrade, Adelindo Kfoury, Jorge Araújo, Ruy Póvoas e tantos outros que a memória e o tempo impedem-me de nomeá-los, mas, eles não têm contribuição menor.

No próximo 28 de Julho, Itabuna completará mais de cem anos de cidade, uma adolescente comparada às suas irmãs de milênios! Mais de cem anos de acolhimento aos seus filhos aqui gerados e aos seus filhos adotados. Mais de cem anos de luta, de intempéries, de espoliações, de estagnação, mas, também de desenvolvimento, de alegrias e vitórias.

Itabuna mãe, madrasta, amiga, Itabuna sempre.

Autor: Rilvan Batista de Santana
Licença: Creative Commons (Recanto das Letras)

Membro da Academia de Letras de Itabuna

 

 

Rilvan Santana

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UMA CONVERSA COM RITINHA DANTAS – Por Raquel Rocha

Ritinha Dantas, como é carinhosamente chamada, é uma daquelas figuras cuja trajetória se confunde com a própria história cultural, educacional e social de Itabuna. Professora, escritora, gestora pública e intelectual de múltiplas frentes, ela é um nome marcante na cultura Itabunense, nas páginas da literatura regional e nas memórias de todos que com ela conviveram.

Nesta entrevista, Maria Rita revela com rara sensibilidade as raízes de sua formação humana e intelectual, nos contando sobre sua infância vivida entre a zona rural e a cidade de Itabuna, as experiências musicais precoces, o incentivo familiar à leitura e o amor pela educação e pela cultura.

Relembra também momentos marcantes de sua vida pública, como a criação da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania – FICC –, e reflete sobre os desafios que enfrentou com coragem e espírito coletivo. Suas palavras trazem ensinamentos, inspiração e uma paixão contagiante pela vida, pela literatura e pela transformação social por meio do conhecimento.

Com o olhar atento de quem nunca perdeu a capacidade de se indignar diante das injustiças, Ritinha reafirma, nesta conversa, sua crença no poder da cultura, na força da educação e no valor das novas gerações como sementes de um futuro mais justo e criativo.

Raquel Rocha

 

Raquel Rocha: Ritinha, que lembranças mais marcantes você guarda da sua infância em Itabuna?

Rita Dantas: A minha infância em Itabuna é muito rica em vivências rurais e urbanas. Rurais, pois nasci e morava na Castelo Novo, de meus ancestrais, hoje já completamente cercada pelos Bairros Santo Antônio, José Coelho e Lava-Pés. Essas vivências eu as descrevi no meu livro “Bença Vó”. As urbanas, estão cheias de vida, com lembranças das caminhadas para a minha escola 10 de janeiro, da Professora Alzira Paim; da convivência com meus colegas de uma escola seriada, onde meninos e meninas estudavam juntos em série diferenciadas e aprendiam a conviver com as suas diferenças. Brigávamos, nos desentendíamos, fazíamos as pazes, disputávamos a atenção da professora e de sua mãe que chamávamos de Vovó Bebel. Estão também cheias das lembranças das minhas aulas de piano, com Neide Borges, Vanda Montalvão Souza e Célia Pinho Vita; aulas de solfejo com Amália Souza e canto orfeônico com Zélia Lessa. Era um corre-corre a minha vida dos 3 aos 14 anos. Aos 11, em 1951, entrei na Divina Providência onde comecei o ginásio e tive experiências as mais diversas, com meus colegas, aí incluídas atividades política e social. No contexto familiar sempre me senti muito feliz com meus pais, avós, irmãos e os primos Henrique, Rita Marlene e Tonho. Fazíamos teatro em casa, frequentávamos como fadinhas e depois bandeirantes os acampamentos e as reuniões, aprendendo sobre participação e solidariedade. Mais que tudo tivemos pais, irmãos e avós amorosos e dedicados.

 

Raquel Rocha: Poderia nos contar um pouco sobre as raízes da sua família?

Rita Dantas: Cresci sabendo que nossos ancestrais eram sergipanos por parte dos pais de meu pai. Que eles vieram da Chapada dos índios e de Tomar do Geru, o ramo dos Silva Coêlho. Por parte da sua mãe, os Soares Nascimento que vieram de Maruim. Aprendi desde cedo que os líderes da nossa família eram o meu tio avô Paulino Vieira do Nascimento e o meu avô José da Silva Coêlho, ambos falecidos antes de 1940. Eram pioneiros desbravadores e enriqueceram na lida com o cacau, na atividade comercial e no próprio desbravamento das matas e no plantio do cacau.

A família da minha mãe era da região de Muritiba e Castro Alves. O meu avô materno, Ernesto Neves Simões se radicou em Itabuna, viúvo, com seus filhos, Raimundo, Paulo, João e Carmen Diógenes Simões, minha mãe. A minha avó materna, Anita Diógenes Simões era de Castro Alves e faleceu muito jovem.

 

Raquel Rocha: Como a convivência com seus familiares influenciou sua formação humana e literária?

Rita Dantas: Meus pais priorizavam a educação dos filhos: Éramos seis, dois filhos e quatro filhas. O primeiro filho, depois Dr. Fernando Simões Coelho, foi para o colégio Maristas, interno, logo que terminou o primário. Era o meu guru e trazia as novidades da capital para mim, entre elas livros que admirava. Eu era a segunda filha, com duas irmãs mais próximas, Margarida e Heloísa, e uma irmã Carmen Tereza que nasceu, quando eu já tinha 13 anos. Naquela época meu pai comprou o Tesouro da Juventude, uma enciclopédia que nos ensinava muitas coisas. Comprou um Atlas maravilhoso e nos contava sobre o mundo e muitos livros outros, pois meu pai lia muito. Minha mãe adorava cantar enquanto bordava, lia romances de M. Delly e nós ouvíamos no rádio Francisco Alves, Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Dalva de Oliveira e muitos outros. Meu tio e padrinho Raimundo tinha em sua casa um quarto só de revistas e livros. Eu adorava ler os gibis e as revistas as mais diversas, inclusive as de terror e Ficava encantada com Flash Gordon e aí começou o meu interesse por ficção científica. Nesse quartinho de leitura ficávamos Fernando, Ubaldo, Henrique e eu. Líamos tudo ou quase tudo. Logo eu quis ir para Salvador também e meu pai me colocou interna no Colégio Santíssimo Sacramento, as Sacramentinas. Lá, continuei meus estudos de piano e francês. Conheci vários poetas e escritores franceses por meio das irmãs francesas que descobriram meu interesse por literatura. Cheguei a fazer uma peça de teatro em francês, Joanna d`Arc, em que eu era a protagonista. Como adolescente passei a ler uns romances que minha mãe tinha em casa, de M. Delly, todos de amor. Só muitos anos depois descobri que eram escritos por dois irmãos que usavam esse pseudônimo. Mas na adolescência fiquei mesmo encantada foi com os livros de ficção científica editados em Lisboa pela coleção Argonauta. Li todos que nos chegavam às mãos. Vivi assim, cercada de livros, revistas, partituras, me formando em nível superior de música em 1957.

 

Raquel Rocha: Quem foram suas maiores inspirações na juventude, tanto na vida quanto na literatura?

Rita Dantas: Não é fácil falar sobre inspirações na juventude. Primeiro, o que é juventude? Eu amava os músicos, sobretudo Grieg, Chopin, Mozart, Vivaldi, Bach, Villa- Lobos, Carlos Gomes e Beethoven. Eles eram inspiradores para mim e algumas de suas peças toquei em concertos em Itabuna e em Salvador. Na literatura, como aos 18 anos eu já estava cursando letras na UFBA, entrei em contato com poetas e romancistas portugueses, brasileiros, italianos e espanhóis. Fui lendo Camões, Fernando Pessoa, Cesário Verde, Mário de Sá Carneiro, Molière, Victor Hugo, Stendhal, Balzac, os poetas simbolistas, Don Quixote, Soror Juana de la Cruz e os brasileiros entre outros Carlos Drummond, Cecília Meireles, Castro Alves, Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manoel Bandeira, Jorge Amado e Adonias Filho. Me encantei com os dois últimos e passei a estudar profundamente a obra dos dois. Acho que foi inspirador para mim saber que eu tinha um dom especial para entender os poetas e prosadores.

Na vida, foi a minha mãe que me ensinou como a vida era bela, como eu devia ter sempre uma visão otimista da vida, como devia ser gentil e educada com todas as pessoas não importando a origem, cor ou gênero. Como eu devia estudar, me formar e adquirir independência pelos estudos. Convivi apenas 25 anos com a minha mãe, mas foram definitivos na minha vida.

 

Raquel Rocha: Quando você percebeu que a palavra escrita seria o seu instrumento de expressão?

Rita Dantas: Eu sempre gostei de escrever, de fazer diários e redigir discursos. Mas escrever romances para mim sempre foi impedimento, pois nunca gostei de simular intrigas, desencontros, desavenças e sem isto os romances não existem. Assim, me dediquei a escrever crônicas, relatos, poemas, romance histórico, muitos ainda não editados, pois levá-los a público sempre me angustia. Continuo escrevendo minhas experiências de vida com as pessoas mais significativas na minha vida, a minha relação com meus animais, com as pessoas que me ajudaram no serviço doméstico, as minhas perdas e os meus ganhos.

 

Raquel Rocha: De todos os papéis que exerceu, professora, escritora, gestora cultural, qual lhe deu mais alegrias?

Não existe a que deu mais. Foram todas muito gratificantes e diferentes nas suas missões. Sempre as considerei assim. Tive uma experiência das mais felizes como professora nos níveis médio e superior. Sempre considerando que não estava ali para reproduzir e sim para criar junto com meus alunos. Sempre tive o aprender fazendo como inspiração e sempre estimulei meus alunos a estudarem comigo. Eu escolhia algo que nunca tinha estudado, mas eu tinha a teoria e o método para fazer isso e com eles íamos desbravando aquela selva desconhecida e chegávamos juntos no final. Era uma satisfação enorme. Como gestora, utilizei-me da gestão participativa, em que todos opinam e em consenso decidem o que fazer. Coloquei sempre o respeito às diferenças como prioridade e o reconhecimento do mérito para classificação e recompensa. Conviver com a cultura foi uma experiência criativa sedutora. Conhecer cada artista, seus sonhos, suas dificuldades, suas críticas, tudo isso me ajudou a construir uma visão abrangente sobre a questão cultural no nosso município.

 

Raquel Rocha: A criação da FICC foi um marco na cultura de Itabuna. Poderia falar sobre a criação desta instituição? Que memória mais forte você guarda desse tempo?

Rita Dantas: Na primeira gestão de Ubaldo como prefeito de Itabuna de1983 a 1988, eu era Secretária de Desenvolvimento Social. Durante a campanha eleitoral, eu pedi ao então prefeito, Fernando Barreto, tão logo ganhamos a eleição, levar à Cãmara de vereadores a proposta de criação da Secretaria de Desenvolvimento Social. Eu já tinha feito uma pesquisa no nível nacional e achei a proposta da cidade do Rio de janeiro bem interessante. Eu sabia que tinha de me envolver com a educação e a cultura para que a secretaria alcançasse seus objetivos. Com a chegada de Mário Gusmão, e com a professora Tica Simões à frente da Diretoria de Cultura da Secretaria de Educação, ocupada pela Professora Norma Vídero Santos, iniciamos um projeto de envolvimento dos artistas regionais, com atividades e ações que os qualificassem. Nessa época senti a necessidade de criar uma Fundação para que os artistas tivessem voz no município, o que só ocorreu, quando ganhamos a eleição no ano 2000, em que Ubaldo era o vice-prefeito.

Durante a campanha eu me comprometi a criar a Fundação com o apoio de Ubaldo e do então Secretário de Educação. Fui então nomeada pelo sr. Prefeito como Diretora de Cultura na Secretaria de Educação e começamos a preparar a criação da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania. São tantas as memórias de luta, de desafios, mas a maior lembrança foi a luta conjunta com os artesãos para reformar a antiga delegacia da Rua Rui Barbosa e transformá-la no Shopping dos artesãos, permitindo um maior ganho para eles. A Casa do Artesão passou então a ser a sede da FICC. Essa mudança também é uma memória forte, pois tive de reformar a Casa duas vezes, na primeira gestão de Ubaldo e em 2002.

 

Raquel Rocha: Que desafios mais ensinaram você ao longo da sua trajetória de trabalho público e social?

Rita Dantas: Os desafios foram incontáveis. Um que marcou muito minha trajetória foi a invasão do Pau Caído, onde construímos o Bairro Novo Horizonte, na gestão Equipe Ubaldo Dantas. A invasão foi feita por mulheres de idade mais avançada que estavam vivendo com filhos e netos em um quarto diminuto sem condição alguma de uma convivência digna. Fiz um relato dessa experiência no documento Colheita que faz um resumo da gestão Equipe Ubaldo Dantas. Na FICC, a edição de CDs de artistas itabunenses, assim como de livros, a exemplo do de Ramon Vane, tiveram um forte impacto no nosso trabalho, por termos que lidar com desafios e dificuldades de ordem financeira, já que a cultura não consegue mobilizar os governantes no sentido de a enxergarem como um grande investimento social.

 

Raquel Rocha: O que mais encanta você na vida atualmente? E o que a entristece?

Rita Dantas: Continuo encantada com a vida. Sou uma pessoa otimista e crente na capacidade criativa do nosso povo brasileiro. Vivi muitos anos também como consultora na área da saúde, trabalhando na construção do Saúde da Família, de documentos a serem usados por agentes comunitários de saúde, por médicos e usuários nas áreas de saúde pública dirigidos para hanseníase, malária e muitas outras; de material sobre responsabilidade socioambiental e na utilização de medicamentos comprometedores, a exemplo da Talidomida. Entristecer não é a abordagem correta e sim me indignar. Não perdi a capacidade de me indignar com as injustiças, os maus-tratos, os preconceitos e as discriminações.

 

Raquel Rocha: Como você vê o papel da mulher na sociedade contemporânea, em comparação à época em que iniciou sua carreira?

Rita Dantas: É interessante como a minha vida foi e continua a ser moderna, apesar da passagem do tempo. Eu me formei e comecei a trabalhar, enquanto fazia um ano de pós-graduação. Voltei para Itabuna, em 1963, a convite de Flávio Simões para ensinar no Colégio Estadual de Itabuna e na Faculdade de Filosofia, com a primeira turma se graduando em 1964. Me casei em 1964 e continuei ensinando, na época Filologia Românica e Literatura Brasileira. Passei a minha vida trabalhando e tentando conciliar as minhas atividades profissionais com as dos meus três filhos, João Ubaldo, Luiz Fernando e Afonso Henrique com as do meu marido, Ubaldo Porto Dantas, sempre priorizando as suas escolhas, sem que por isso me sentisse prejudicada. Me considerei sempre uma parceira nas missões que lhe eram confiadas e nunca sofri discriminação por ser mulher, ser casada, ser mãe de três filhos. Até na política me envolvi, quando necessário, mas eu soube colocar a harmonia familiar em primeiro lugar.

Acho que a mulher contemporânea pode muito bem conciliar trabalho e família, a depender dos seus sonhos e expectativas. Assim como também pode optar por viver independente, sem que os laços afetivos a limitem ou impeçam a sua liberdade total.

 

Raquel Rocha: Em sua opinião, qual o maior valor que devemos preservar na nossa convivência humana?

Rita Dantas: O respeito é um valor inestimável. Aprendi com meus pais que é preciso respeitar as opiniões alheias. Em uma convivência harmoniosa tem-se que cultivar paciência, tolerância, amor ao próximo. Sempre considerei que gostar das pessoas em geral era o melhor que a humanidade poderia cultivar. Reconhecer que cada um tem uma visão própria da vida e que precisamos respeitar essas visões, mesmo que elas não correspondam às nossas expectativas.

 

Raquel Rocha: Você acredita que a literatura pode transformar vidas?

A literatura é um caminho de conhecimento. Os livros, sejam em prosa ou poesia, eles nos ajudam a entender a humanidade. Um leitor assíduo pode viver várias experiências por meio de suas leituras. A ficção científica, por exemplo, me ensinou novos caminhos, novas visões, novas perspectivas, novas abordagens, muitas delas transformadas em realidade hoje em dia. Os grandes romances, a exemplo dos de Guimarães Rosa, de Machado de Assis colocam para nós desafios que a própria vida refuta. Os novos escritores japoneses são um exemplo para nós de abordagens que nos chocam, nos emocionam e nos ensinam que cada povo tem suas dores e suas realizações. Sem mencionar os romances de viagens que nos levam a locais desconhecidos e aventurosos. Eu mesma já fui visitar vários locais a partir da leitura de livros interessantes, a exemplo do livro de Ildefonso Falcones, “A Catedral do Mar”, em Barcelona, na Espanha; O romance histórico de Kate Mosse, “O Labirinto”, em Carcassonne, na França. O romance “Istambul”, do prêmio Nobel, Orhan Pamuk. Deste autor, inclusive li um livro muito instigante “Neve”, também na Turquia, que aborda questões religiosas bem marcantes.

 

Raquel Rocha: Que projetos ou sonhos guarda consigo, que gostaria de ver realizados?

Rita Dantas: Ah, são tantos os projetos que habitam os meus pensamentos e tantos os sonhos a realizar que a cada dia penso que “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”( Eclesiastes 3). Hoje desejo mais que meus descendentes e amigos possam fazer dos seus sonhos realidades e que a Juventude do meu país não deixe de pensar, nem de elaborar projetos que beneficiem o nosso povo brasileiro.

 

Raquel Rocha: Para encerrar: que mensagem gostaria de deixar para as novas gerações de itabunenses e para aqueles que lutam pela cultura e pela educação?

Rita Dantas: Que busquem ser otimistas em relação à cultura e à educação da nossa terra. Nós temos uma herança cultural valiosa que pode embasar a nossa educação. Na gestão Ubaldo Dantas, tivemos um projeto educativo que incentivava os alunos a pesquisarem sobre suas origens, as origens do seu bairro, para que desenvolvessem o sentido do pertencimento, das necessidades e da defesa dos seus contextos culturais.

Que se lembrem, sempre, que nossa região é rica em termos culturais: Temos escritores, poetas, atores, músicos, historiadores e mesmo que estejam atuando em outras terras, serão sempre itabunenses e mais que tudo grapiúnas. Não devemos pensar pequeno, e sim pensar nessa região fértil que engloba a Nação Grapiúna: Ilhéus, Buerarema, Itajuípe, Uruçuca, Ipiaú, Ibicaraí, Una, Canavieiras, Belmonte, e todos os outros, com nomes de peso na nossa Literatura Brasileira, a exemplo de Jorge Amado, Adonias Filho, Cyro de Mattos, Telmo Padilha, Hélio Pólvora, Jorge Medauar, Sonia Coutinho, Heloisa Prazeres, Sosígenes Costa, Euclides Neto, José Bastos, Florisvaldo Matos, Ruy Póvoas, Margarida Cordeiro Fahel. Sem falar nos artistas Marcelo Ganem, Jean Costa, Jackson Costa, Jafet, Sabará, Ébano, José Henrique, Azulão, Alba Cristina, Betão, Fernando Caldas e tantos outros. A nossa maestrina Zélia Lessa, a nossa formadora musical Mariângela Montalvão Souza Oliveira e a nossa eterna musa Candinha Dórea.

Que se convençam que a educação é uma prioridade para todos que valorizam a vida.

Que como jovens sonhadores exijam uma educação integral de qualidade em toda a nossa região que os possibilite participar ativamente na construção de uma sociedade mais desenvolvida, mais justa e mais igualitária.

 

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ENTREVISTA COM HELOISA PRAZERES – Por Raquel Rocha

Uma Vida Feita de Memória, Beleza e Poesia

 

As palavras de Heloisa nos remetem à formação de uma geração que aprendeu a olhar o mundo pela lente da beleza e da palavra. Professora, poeta, ensaísta e pensadora da linguagem, Heloisa atravessou décadas cultivando o silêncio criativo e o gesto preciso, fosse na sala de aula, na vida intelectual ou nas páginas onde resgata o que nos constitui: infância, paisagens, memórias, exílios e retornos.

Nesta entrevista, Heloisa revela a mulher por trás da escritora: filha de um lar sergipano que chegou ao sul da Bahia buscando sonhos; jovem que viveu Itabuna e Salvador nos anos de efervescência cultural; mãe, esposa, professora e amiga.

Mais do que responder perguntas, Heloisa compartilha sua visão de mundo, construída com poesia, mas também com rigor, ética e sensibilidade. Entre memórias de infância, referências literárias, reflexões sobre dor e beleza, e a defesa de valores fundamentais, ela nos lembra que viver é criar, e que a poesia não é apenas um gênero, mas uma maneira de existir no mundo.

 

Raquel Rocha

 

Raquel- Antes de falarmos sobre sua trajetória literária, queria que você contasse quem é a pessoa por trás da escritora: quem é Heloisa Prazeres em sua essência?

Heloisa- Entendo que a minha personalidade deriva de um lar harmonioso, formado por meus pais, Agrícola Santana Prata e Alzira de Oliveira Prata, família oriunda do estado de Sergipe, primeiros imigrantes, atraídos pela notícia do Eldorado no Sul da Bahia.

A consolidação de minha adolescência — final dos anos 1950-1960– deu-se na cidade natal, Itabuna, Ba. Lugar, então, próspero, economia criativa e pioneira no cultivo das roças de Cacau, que conheci como lugar referencial, fazendas de meu tio Raimundo de Oliveira Cruz.

Por iniciativa de meus pais, ambos conscientes da importância da educação, sou fruto da educação formal do Colégio Ação Fraternal de Itabuna e, musicalmente, do coral da maestrina Profª Zélia Lessa e das Professoras de piano Gladys e Lourdes Dantas. Recordo, em minha adolescência, os espetáculos colegiais da cidade, as apresentações de canto regidas pela Professora Maestrina Zélia Lessa, a quem devo a iniciação musical.

Então, fascinavam-me as canções folclóricas, considerava encantatória a mistura entre as palavras e as sonoridades, embora não alcançasse esclarecer bem sua complexidade. Peças do folclore nacional, notadamente de Villa Lobos.

 

Nos verões desta citada faixa de tempo, fui habitante temporária da paisagem da Mata Atlântica Costeira, frequentei Olivença, Pontal de Ilhéus e Barra de Itaípe, acompanhada pelos meus pais, irmãos, avós, tios e primos da família Oliveira João Manuel e Georgina Oliveira Cruz.

Itabuna, no final dos anos 50, era esse burgo de vocação agro-comercial; quem tinha alguma atividade criativa beneficiava-se dos eventos promovidas pelas quermesses juninas e natalinas, mais das vezes sob a liderança do historiador popular, agitador cultural, meu saudoso tio, José Dantas de Andrade.

Outras opções, às quais me foi dado acesso, o Centro Cultural da cidade, onde ouvia e assistia, em arrebatada suspensão, ao poder da oratória e da recitação de poetas condoreiros. Pela primeira vez, ouvi a voz de nomes baianos de impacto nacional, especialmente o fervor e lustre das Espumas flutuantes, de Castro Alves. Como tinha não muito mais que uma dezena de anos, e ali era levada pela sede de conhecimento de outro dos meus mentores, João Martins de Oliveira, meu tio, era a atmosfera e a musicalidade que permanenciam, formando-me o gosto e fazendo emergir o prazer da convivência e a talvez prematura indagação sobre arte, poesia e vida criativa. Ali escutei fascinada versos do poeta da cidade, Firmino Rocha, de sua hoje coleção, O canto do dia novo. Ali ouvi sonetos majestosos do grande Sosígenes Costa, nosso bardo maior.
Esses são feitos, fatos, pessoas e lugares que me constituíram na infância e adolescência.

Poeticamente, fiz o registro desta pequena história e do meu precoce gosto literário:

 

Diáspora ao Sul da Bahia

A Georgina e Luís Manoel Oliveira Cruz

com essa luz de olhos já antigos

acolho o legado de adereços

(no trânsito do clã dos Oliveira)

herdei candeias de janelas móveis

de leves ou maciços parapeitos

déco importado de além-mar

frisos de envieses e ornamentos

colho o saber da estirpe nortista

do feudo de Georgina e Luís

espelho-me em retinas centenárias

(coleção de memórias rurais)

primeiro a dispersão e o rumo

 a outro destino − novo estado

nas pegadas de Sumé ao eldorado

matriarcas aurora Alzira Amélia

meninas gêmeas Lourdes/ Louralina

caçula Sula como o nome

viajante de olhos capitais

 na arribação fora determinado

 avós deixaram sítios das suas terras

 nortistas rumo ao dourado porto

 do jequitibá

 sementes do fruto pariram burgos

(Tabocas Almadina Arataca

Água Preta Camacã Itajuípe)

e a razão marginal: um topônimo Tupi

pedra preta lar Itabuna

ouro antigo de cascas brunidas.

 

Raquel- Quando foi que a literatura entrou em sua vida? Lembra do primeiro livro que leu e lhe marcou?

Heloisa: No alvorecer da década de 1960 e visando ao aprimoramento dos nossos estudos, minha família veio para Salvador. Vivemos no bairro dos Barris. Meu pai deslocando-se para a cidade baixa, para a matriz do Banco da Bahia, para onde viera transferido, e minha mãe a experimentar mais um deslocamento na sua já assinalada experiência de exílios. Sua alma revelava a angústia das separações, daí a presença da poesia, o gosto pela declamação e pelo canto, em sua linda voz de contralto. Talvez daí o meu gosto secundário pela música. Vivendo em Salvador, a partir de 1961, Estudei no Colégio Severino Vieira, onde alcancei a aproximação do coral da instituição e do reclamo de aperfeiçoamento do gosto artístico e literário, tendo como Professora de português Dona Belmira, leitora de Os Lusíadas, de Luís de Camões, educando-nos pelo ouvido.

Poucos anos depois, no colégio Central da Bahia, à época ainda um celeiro de novidades − conheci a geração seguinte à que promovera o histórico processo de renovação e conceituação vanguardista da cidade de Salvador. Minha casa, as mais duradouras amizades, o centro de minha juvenil emoção, encontra-se derramado nas experiências de acesso aos espaços culturais de então: sessões do cinema de arte do Cine Guarani, no coração da cidade, em frente à Praça Castro Alves; frequência ao teatro Vila Velha, que marcou o momento cultural brasileiro e albergou movimentos sociais; auditório da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, espaço de intensa movimentação e divulgação culturais, conferências, debates, recitais, concertos e simpósios; Livraria e Editora Progresso, única editora baiana, a publicar textos· de ciências sociais, filosofia, ensaios literários, romances e livros de poesia. Por meio das edições dessa livraria e secundando os passos de meu irmão, poeta Alitano, Renato de Oliveira Prata, fui formando e aprimorando o meu gosto literário, iniciado nas estantes familiares da minha família de leitores.

 

Raquel- Como foi o início da sua trajetória acadêmica e literária?

No curso de Letras Vernáculas, com Inglês, da Universidade Federal da Bahia, UFBA, e, muito na sequência, após o Bacharelado, fui monitora junto à cadeira de Literatura Portuguesa, a convite dos saudosos mestres Hélio Simões, conquistador de audiências pela singular recitação da Cantigas de Amigo e Amor da tradição ibérica, e da saudosa Jerusa Pires Ferreira, ambos me incentivaram à concorrência ao ingresso no Departamento de Vernáculas. Concomitantemente, na Universidade Católica de Salvador, onde, como jovem professora, convivi com duas mestras da língua e literatura nacional, Joselita Castro Lima e Terezinha Moreira. Literariamente, nos anos 1970, e em companhia de Jamison Pedra, meu esposo, já falecido, companheiro de mais de meio século, escrevi os versos que constaram do desfecho da película/ curta-metragem “Caranguejomem”, que logrou o 5° Prêmio Nacional no Festival Brasileiro de Cinema Amador (Jornal do Brasil). Incentivada pelos mestres aqui citados, produzi os primeiros artigos, publicados no Suplemento de Cultura do Jornal Tribuna da Bahia. Em meados dos anos 1970, comecei a perceber e a assumir com mais consciência um papel intelectual, como escritora e também Professora do Curso de Graduação em Letras. Tal perspectiva, dirigiu-me ao comparativismo, orientada pelos saudosos mestres, Cláudio Veiga, Antônio Barros, Davi Salles e Ildásio Tavares; tal escolha viria a tornar-se a metodologia de trabalhos futuros, desenvolvidos nos cursos de pós-graduação, dentro e fora do país, quando me foi dada a experiência de viver, no gelado centro-oeste norte-americano, na cidade de Cincinnati, EUA. Então, professora universitária baiana, com minha família, já no formato que permanece, vivemos com nossos três filhos, Letícia, Ana e Daniel, em idades entre doze e dois anos. Na vigência do curso, fui orientada pelos mestres, Edward Coughlin, Juan Valencia e pelo hispanista Donald Bleznak. Essa experiência foi recolhida em alguns poemas.

Raquel- Além da escrita, que outras paixões ou interesses fazem parte da sua vida?

Encontro-me naturalmente ligada à área de Letras e Artes. Em verdade não tenho outro forte interesse, senão os versos livres, plenos de ritmo, musicalidade, plasticidade. Gosto de ler, de experimentar, crio efeitos sinestésicos, com o entrecruzamento de sensações e sentidos nos planos semântico e sintático. A pulsação da vida em algum momento alcança voo, por meio da musicalidade que imprimo aos versos. Portanto, poesia, leitura e música.

 

Raquel- Há algo que você goste profundamente — e algo que não goste muito?

Sim. Gosto muito de ler me acalma e me auxilia no processo imaginativo, bem como aumenta a minha capacidade de memorização, pois gosto muito de recitação. Caminhar, estar em contato com a natureza, me permite refletir. Cinema, Teatro são expressões de arte que muito aprecio, bem como a música, que me ajuda na escrita, na recordação e no registro de pensamentos e percepções. Valorizo a conversa com amigos e o tempo de intimidade e solidão. Por outro lado, não gosto de eventos sociais de grandes proporções. Canso-me e desejo seu rápido desfecho.

 

Raquel- Se tivesse que descrever sua personalidade em poucas palavras, como se definiria?

Creio que sou uma mistura de pessoa comunicativa, mas também sensível e intuitiva . As pessoas me consideram intelectual e emocional ao mesmo tempo.

Raquel- Você se recorda de algum conselho que recebeu e que a acompanha até hoje?

Vivi a juventude na década de sessenta, prezo a liberdade e a justiça social. Meu tempo foi marcado por grandes mudanças sociais e culturais. Pessoalmente, admiro e conservo conselhos e valores de liberdade e busca por novas experiências. Também fui principalmente aconselhada a valorizar a autenticidade e procurar a realização pessoal por minha mãe e por minhas muitas tias. Não me afasto muito desta visão de mundo.

Raquel- Em sua trajetória, houve algum momento de desafio que a marcou profundamente? Como o superou?

Sim. Vivi nos EUA a experiência da incomunicabilidade, o luto moral das desavenças entre raças. Como brasileira, creio nas amplas relações inclusivas e miscigenadas. A minha herança cultural e as convicções que defendo, sempre me ajudaram na superação desses choques culturais.

Raquel- Que temas ou preocupações mais atravessam sua obra?

A minha poesia aborda temas universais. Ressalto o amor, a amizade, a maternidade, perdas, deslocamentos, a relativa incomunicabilidade, o luto moral, a história, a natureza, o mundo digital, as relações possíveis na contemporaneidade e a globalização. As ideias resultam da minha vivência social e intelectual com base nas percepções da cidadã, poeta, mulher, docente e intelectual. Há um apelo de imagens e temas próprios dessas vivências. Lembro, ainda, que a  poesia está do lado do ser e contra o seu aniquilamento. Cito o verso de Hölderlin, presente no poema Recordação: O que resta, porém, fundam-no os poetas.

 

Raquel- Quando escreve, busca mais expressar o que sente ou compreender o mundo ao seu redor?

A linguagem poética, em verdade, ultrapassa a função comunicativa, transformando-se em objeto artístico, mediante o desvio e a contaminação semântica, ou seja, poesia implica texto onde a linguagem é explorada em todas as suas dimensões. A subjetividade será sempre filtrada pela intencionalidade.
Mas como escritora do gênero lírico, posso dizer que a minha escrita é o esforço de uma individualidade feminina na direção daquilo que me cerca. Como disse Theodor Adorno, a dimensão subjetiva está apegada à expressão lírica, tanto quanto a sociedade, ou seja, embora pareça distante da esfera social, a lírica, na verdade, carrega em si as marcas da experiência socialmente experimentada.

Raquel- Como vê a relação entre dor e beleza na criação literária?

Desde a modernidade, a beleza não mais se limita ao ideal clássico. Hoje, a busca pela beleza não dispensa o transitório ou o circunstancial; a relação entre dor e beleza é de complementaridade e interdependência.
Não mais um obstáculo à beleza, a dor torna-se um meio de alcançá-la, revelando novas dimensões da experiência humana. Por exemplo, na poesia de Cecília Meireles, há uma relação complexa e paradoxal. A poeta explora a beleza presente no sofrimento, na decadência, elevando o desgosto e as mais humanas condições a distintos patamares temáticos. Porque a poesia é necessária mesmo em tempos de guerra.

Raquel- O que significa, para você, ser poeta em um mundo tão acelerado como o nosso?

Ser poeta exige o encontro e a demonstração de que há espaço para a reflexão e a expressão da sensibilidade, sempre e em quaisquer circunstâncias. Será necessária a dedicação ao tempo da escrita e da leitura e, mais das vezes, será possível encontrar momentos de quietude para a observação. No mundo contemporâneo, a atividade da poesia é de transformação, ou seja, a mudança do cotidiano em arte, em momentos simples do dia a dia que se transformem em poemas. O poeta confronta a dificuldade; cultiva a observação do cotidiano; observa a vida com um olhar interrogativo e questionável e encontra a natureza, nela reconhecendo fontes de observação (seus ciclos, cores e sons). Afinal, os filósofos compreendem a necessidade e incentivam a prática da poesia mesmo em tempos de guerra.

Raquel- Que valores ou princípios considera essenciais para a vida?

Na qualidade de cidadã, consciente da importância da vida em sociedade, comungo com o sistema estabelecido com a finalidade de possibilitar socialmente a vida, a saber, basicamente: honestidade, respeito, justiça, liberdade e amor.

 

Para você, qual o sentido da vida ?

Uma vez que encontro significado na experiência da vida e construo a minha visão impressa em tudo aquilo que publico, em verdade, com base nessa experiência, de mais de quarenta anos de trabalho, posso admitir o sentido da vida como criação, ou seja, uma vida cuja razão e significado têm sido dados pela poesia, que assino. Entendendo-se, portanto, que a poesia não compreende apenas um determinado gênero, mas, também, um esforço “poiético” de transfiguração da existência em formas ou da metamorfose da experiência existencial em palavras. Minha relação com o mundo e comigo mesma, o sentido da vida, liga-se à capacidade autoral de inventar, divulgar e tocar o mundo por meio da arte.

 

Salvador, 01/07/2025

Heloísa Prata e Prazeres

ENTREVISTA COM HELOISA PRAZERES – Por Raquel Rocha Read More »

DISCURSO DE RECEPÇÃO DA POSSE DE RENÉE ALBAGLI – Tica Simões

Boa noite,

Excelentíssimo Presidente da Academia de Letras de Ilhéus, confrade Prof. Josevandro Nascimento, através de quem saúdo os ilustres integrantes desta mesa, as autoridades aqui presentes ou representadas, os confrades, os uesquianos, os amigos; enfim, a todos senhores e senhoras.

Os vagalumes desta noite
iluminam minha noite
e me emprestam
sua luz e suas asas.
Então, feliz,
a estrada clareada,
eu vou te ver.
Valdelice Pinheiro

E aqui estamos, felizes e honrados, Professora Dra. Renée Albagli Nogueira, por recebê-la nesta Casa, onde ocupará a cadeira de nº 32, anteriormente do saudoso e ilustre Prof. Soane Nazaré de Andrade, homem que orientou a vida para a realização do sonho do ensino superior na região e soube distinguir, nas brumas de cada manhã, qual a direção do sol… e andar para lá!

Este é um dos momentos mais ritualísticos e significativos desta Casa de Abel; ato de acolhimento e recepção, enriquecimento da sua confraria; momento de relembrar e dar continuidade à sua própria história. E é uma história que tem buscado, a cada dia, a preservação da memória de Ilhéus. Aqui, é lugar de diálogo, de criação, onde intelectuais das diversas áreas do saber trocam conhecimento e experiências em torno de uma visão ampla da cultura nos seus aspectos literários, artísticos, sociais, educacionais, históricos e das tradições. Aqui, é lugar de convivência respeitosa das diferenças, que fazem a riqueza da multiculturalidade deste país.

Por esses propósitos, é que digo da grande emoção e alegria com que esta confraria, hoje, a recebe, professora. Somos conhecedores do seu idealismo; uma vida dedicada a realização de sonhos e projetos de futuro, voltados para o desenvolvimento educacional, cultural e social desta região.

Assim pensando, tomo os versos de Ricardo Reis, e digo:

Para ser grande, sê inteiro:
nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
no mínimo que fazes.
Assim, em cada lago,
a lua toda brilha,
porque alta vive.

 

Assim é! …
Renée Albagli Nogueira é, ilheense, filha de Isaac Albagli e Rosa Chicourel Albagli, nascidos em Izmir, na Turquia. O casal migrou para o Brasil nas primeiras décadas do sec. XX, aqui constituindo a sua família. Casada com Cláudio Nogueira, é mãe de Claudinha, e é avó de Luís Fernando e Isabel. Uma linda família que, neste momento, cumprimento e parabenizo.

Renée Albagli Nogueira é graduada em Biologia, pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, com especialização em Genética na Universidade Católica de Minas Gerais e na Unicamp. Fez especialização e mestrado em Gestão Universitária, na Universidade Estácio de Sá, sendo a última etapa na St. Paul University, em Chicago (EUA). Defendeu o Doutorado em Educação, na Universidade Federal da Bahia.

Na Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI, foi professora titular, diretora acadêmica, diretora de graduação e extensão. Em 1996, tornou-se a primeira reitora eleita da Universidade Estadual de Santa Cruz, tendo permanecido no cargo até janeiro de 2004, quando terminou seu segundo mandato. Integrou o Conselho Estadual de Educação (CEE), sendo presidente por dois mandatos e atuando sempre na Câmara de Educação Superior. Após concluir o reitorado na UESC, foi Assessora Especial da Secretaria de Ciência e Tecnologia.

Atualmente, presta assessoria e consultoria na área do Educação Superior. Em reconhecimento à sua brilhante trajetória, tem recebido comendas e honrarias. Dentre outras, aqui destaco o grau de Comendadora, outorgado pelo governador do Estado, em 1998. Recentemente, em 2024, recebeu a medalha Jorge Amado, outorgada pela Academia de Letras de Itabuna.

A sua produção de discursos, pronunciamentos, artigos e relatórios comprovam essa vasta experiência.

Entendemos que a propriedade da Profa Dra. Renée Albagli Nogueira ocupar a cadeira de número 32, desta Academia, é inquestionável, ela que esteve ao lado do Prof. Soane Nazaré de Andrade desde os primórdios do sonho do ensino superior na Região.

A trajetória de luta foi de muitos idealistas, mas foi no seu reitorado, que aconteceu o salto de federação de escolas superiores para universidade!

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

Essa primeira estrofe do poema Infante, de Fernando Pessoa, em Mensagem, me remete às trilhas da realização, como foi…“desvendando a espuma”.

E tudo começou em 1974 quando, convidada pelo prof. Soane Nazaré de Andrade, a profa. Renée ingressou na Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI como sua assessora direta, integrando a Comissão de Assessoria e Planejamento – CAP. Aí atuou por dez anos, responsável pelos projetos de novos cursos.

Com a saída do Prof. Soane da direção geral, continuou integrando a administração superior, nos mandatos dos professores Aurélio Farias de Macedo e Altamirando Marques.

Naquele mesmo tempo, a luta de idealistas – professores e estudantes – pela publicização do ensino, não cessava. Afinal, em 5 de novembro de 1991, através de decreto governamental, aconteceu a estadualização, sendo definida a área de atuação da Universidade Estadual de Santa Cruz, abrangendo o Litoral Sul e Extremo Sul do Estado.

No período de transição – reitorado pró-tempore -, foi Vice-Reitora do Prof. Altamirando Marques.

Em 1996, deu-se a eleição para reitor, um ano histórico!. Renée Albagli Nogueira foi eleita a primeira reitora da Universidade Estadual de Santa Cruz, por voto direto da comunidade acadêmica. Foi o início a uma administração que garantiu a consolidação e a expansão da UESC.

Como já dizia Paulo Freire (2000, p. 54), “os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas.”

Assim foi.

Claro está que era imprescindível à reitora empossada formar uma equipe que comungasse do mesmo sonho. Então, com a vicereitora Margarida Fahel, formou a sua equipe, cujo foco sempre foi a qualidade, visando à responsabilidade social da Instituição. E foram oito anos na Reitoria na UESC, tempo em que, com garra, visão e valentia, levou a antiga escola de ensino superior ao patamar de universidade.

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

É fato que as marcas de uma trajetória, muitas vezes, ficam pelo caminho. Vão-se apagando com a poeira do tempo. É bem como diz o poeta José Delmo,

Se não vigiarmos a vida,
eles escreverão a história
e o futuro poderá neles acreditar.

Aqui, neste espaço de tempo, difícil será dizer todas as realizações do reitorado da Profa Dra. Renée A Nogueira. De saída, a todos vocês, recomendo a leitura dos vários relatórios das suas duas gestões, do período de 1996 a 2003. No entanto, não posso deixar de, muito rapidamente, referir algumas ações que garantiram a consolidação do projeto universitário.

Inicialmente, na universidade que se instalava, era urgente assegurar a massa crítica imprescindível para o seu credenciamento, pelo Conselho de Educação. Com aquele foco, foram criados o Plano de Capacitação Docente e o Projeto de Absorção de Doutores, que trouxeram competências do Brasil e do exterior para o quadro docente. Simultaneamente, a criação da editora da universidade – a EDITUS – veio assegurar a publicação da produção científica de docentes e discentes.

É também de destacar a significativa ampliação do leque de cursos de graduação e pós-graduação – especializações e mestrados -, nas várias áreas do conhecimento; a instalação de laboratórios para atender às atividades de ensino, pesquisa e extensão; a atenção em relação projetos culturais e de preservação da história.

Tanto a citar, que fica exaustivo, aqui, enumerar… Mas dos muitos cursos implantados na graduação e na pós-graduação, não posso deixar de fazer ressalva ao Curso de graduação em Medicina. É inesquecível a garra com que a reitora ultrapassou os inúmeros obstáculos que se apresentavam. Lembro que, em tempos, o Prof Soane já dizia: “quando Renée quer, saia debaixo…”

E foi mesmo assim… Não esqueço como aquela reitora vislumbrou e teve coragem; lutou arduamente e implantou o curso, tão necessário e desejado pela comunidade.

Claro que, também, teve o olhar atento para as condições físicas do campus. De alguns dos tantos e inúmeros feitos, são exemplos: o Centro de Arte e Cultura, onde funcionam a Biblioteca e um auditório com 1200 lugares, o restaurante universitário, os vários laboratórios… e muito, muito mais…

Vale ressaltar que todo o trabalho desenvolvido naquele período garantiu, em junho de 1999, o credenciamento da UESC pelo Conselho Estadual de Educação, o que assegurou a sua autonomia didático-cientifica.

Naquela época de tamanha luta, eu fazia minhas as palavras de Henfil:

“se não houver frutos, valeu a beleza das flores. Se não
houver flores, valeu a sombra das folhas. Se não houver
folhas, valeu a intenção das sementes” .

Passados tantos anos, Profa Dra Renée Albagli Nogueira, o sentimento é de caminho percorrido, é de colheita dos frutos .

Depois daqueles idos de bota e barro, de plantio e construção, hoje temos um Campus que, conforme justo e certo, chama-se Soane Nazaré de Andrade.

Tenho a alegria de constatar que, àquele pequeno bando de sonhadores que integramos, se somaram outros que têm feito o grupo crescer e ficar mais rico e forte. Plural, como deve ser numa universidade. As árvores, que plantamos um dia, estão belas e frondosas, sombreando bancos, onde estudantes e professores sentam e trocam ideias – prática comum em locais democráticos…

Hoje, quando acompanho a colheita e sinto a sombra das folhas, a beleza das flores e o perfume dos frutos, digo-lhe, intrépida Reitora daquele então: valeu a pena! Valeu a intenção das sementes!!

Para finalizar, considero ainda imprescindível dizer da pessoa humana que é Renée Albagli Nogueira! Integra, ética, respeitadora das diferenças, idealista e pertinaz. Especialmente, a sua solidariedade é singular! E, com muito carinho, revelo que essas atitudes eram, também, como educava Claudinha, que me segredou das suas lembranças quando pequena: ”todos os dias, na hora de estudar, as palavras de ordem eram: responsabilidade, correção, pontualidade, liberdade com respeito!”

Ah… e saibam vocês… não é somente de educação e administração que ela entende, nãooo!! Tenho que revelar que é excelente anfitriã e adora receber com honras e circunstâncias!!

Claro está que essas rápidas referências naturalmente não esgotam o seu perfil e os seus feitos. Mas esta noite, além do lembrado e mencionado, é também para brindes e abraços…

Fato é que, nesse caminhar, querida Renée, amiga de tempos, de sonhos e lutas, aqui chegamos. E digo, tomando as palavras de Mia Couto,

“O que faz andar a estrada? É o sonho.
Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos; para nos fazerem
parentes do futuro”

Bem como dizia o seu amigo Ladislau Netto:

“Perseguir sonho é vida que segue”

Acreditando no sonho e vendo em você uma sonhadora contumaz, é que esta Casa de ABEL a recebe e acolhe, certa de que a sua presença aqui será de soma e acrescentamento. Com alegria, portanto, dizemos: Seja bem-vinda!

Maria de Lourdes Netto Simões
Cadeira 19.
Ilhéus, em 11 de julho de 2025.

DISCURSO DE RECEPÇÃO DA POSSE DE RENÉE ALBAGLI – Tica Simões Read More »

ENTREVISTA COM CLÓVIS JÚNIOR- Raquel Rocha

E N T R E V I S T A COM CLÓVIS JUNIOR

 

Nascido em Ibicaraí, Clóvis Silveira Góis Júnior construiu uma trajetória que entrelaça fé, memória, serviço e palavra. Leitor voraz, pesquisador dedicado, servidor público da Justiça do Trabalho há mais de três décadas e profundo conhecedor da história da região cacaueira, Clóvis é alguém que escreve para que o tempo não apague e para que as novas gerações saibam de onde vieram.

Casado com a pedagoga Iara Souza Setenta Góis e pai de Felipe e João Marcos, sua vida familiar é espelho daquilo que aprendeu na infância: valores como respeito, honestidade, solidariedade e temor a Deus. Esses mesmos princípios estão presentes em seus livros, nos perfis digitais que administra, como o @historiagrapiuna, e nos tantos registros que vem produzindo com esmero e constância.

Autor de A Gênese do Adventismo Grapiúna (2016), Sequeiro do Espinho: passos de um conflito (2020) e A História de Itabuna em 1.300 eventos cronológicos e ilustrados (2025), ele ocupa a cadeira nº 34 da Academia de Letras de Itabuna (ALITA), cujo patrono é o jornalista, político e escritor Jorge Calmon.

Nesta entrevista, a mim concedida com a dedicação que lhe é característica, Clóvis revela lembranças vívidas da infância em Palestina (Ibicaraí), fala sobre o papel da fé em sua formação, da influência dos pais, do amor pela história, da sua devoção à verdade, e da certeza de que “quem não vive para servir, não serve para viver”. O resultado é um retrato bonito e sincero de um homem que se comprometeu a deixar como legado não apenas livros, mas exemplos.

Raquel Rocha

Raquel Rocha (RR): Clóvis, você nasceu em Ibicaraí, mas carrega consigo todo um território simbólico da Região Grapiúna. Que imagens ou memórias da infância mais marcaram sua trajetória de vida?

Clóvis Júnior (CJ): Eu sou um pouco de tudo que vivi na meninice. Fragmentos de minha infância teimam em brotar nas minhas reflexões e ações. Pedaços do meu passado saltam a todo instante no meu caminho. Louvo ao Eterno por serem reminiscências aprazíveis e saudáveis. A feira livre da antiga Palestina. Os animais de carga descansando num curral circunvalado entre o leito do rio e o fundo do edifício do Cine Teatro Ana; esse redil, guardava as bestas, enquanto seus proprietários negociavam seus pertencentes na feira. Naquele ambiente vi e aprendi coisas inimagináveis para crianças de tenra idade. A beira do rio Salgado, principalmente em momentos de cheias, entre os meses de novembro e janeiro. O jogo de bola em campos improvisados e em locais ermos (futebol de várzea), onde quase sempre eu era o goleiro ou, quando dono da bola, poderia até ser convocado para jogar na linha. O cheiro do cacau mole nos cochos ou das amêndoas a secar na barcaça de pequena propriedade rural da família. O banho no ribeirão do Luxo, corrente d’água cristalina, piscosa e doce. A chuva intensa, quase o ano todo, a ponto de fazer suar as telhas de barro. As noites eram belíssimas, frescas, cheirosas, com mantos verdes de gafanhotos sobre os postes, atraídos pela energia elétrica, e mantos luminares de pirilampos (hoje quase extintos) a imitarem, na terra, estrelas do céu. Me pego ainda ouvindo os antigos conversando suas experiências, suas aventuras, suas mágoas, suas bravatas …

RR: Seu discurso de posse na ALITA traz um tom confessional e poético. Nele, você fala do cheiro do cacau seco, da jaca madura e da terra molhada. Que significado esses elementos têm na sua construção pessoal e literária?

CJ: Eu projeto o mundo hodierno, com base no meu antigo quintal. Aquele início comezinho e pueril delineou minha vida quase que por completo, deixando pouco espaço para adições do presente. Construo minha estrada dando passos para frente e também olhando para trás. Neste ponto penso como o poeta Manoel de Barros: “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos”.

RR: Como sua família, especialmente, seus pais contribuíram para a formação do seu caráter e do seu olhar sobre o mundo?

CJ: Não consigo entender ou divisar um mundo justo e saudável sem que todos seus participantes exerçam princípios éticos. Aprendi em casa, no seio da família, o respeito, a lealdade, a honestidade, a equidade, o amor ao próximo, a solidariedade, o temor a Deus etc. Nunca ouvi meus pais pronunciarem qualquer palavra torpe, nunca. Uma certa feita, acompanhando meu pai à feira, encontrei, embolado no chão, uma nota de um cruzeiro. Meus olhos brilharam de alegria, prontamente meu pai ordenou que deixasse a cédula onde estava, pois o dono poderia vir ao seu encontro; tirando outra nota idêntica do bolso me restituiu aqueloutra. Pode existir um mulher-mãe igual a minha em zelo, trabalho, honestidade e preocupação com a prole, duvido que no universo inteiro exista outra maior. Não recebi um único bem material deles, nenhuma herança físico-monetária, porém seus princípios suplantam a tudo.

RR: Em que momento a fé e o amor pela história começaram a caminhar juntos na sua vida?

CJ: Em 2016, com a escrita do meu primeiro livro.

RR: O que mais o motivou a escrever A Gênese do Adventismo Grapiúna ?

CJ: A lacuna na historiografia. O Movimento Adventista estava presente na Região Cacaueira desde 1908, sem que existisse um escrito que relatasse a incursão dos primeiros missionários sabatistas nas roças de cacau.

RR: Em um depoimento seu sobre a Gênese do Adventismo Grapiúna, você afirmou que “cada pioneiro que morria levava parte da nossa história para o túmulo”. De onde vem esse impulso por registrar o que poderia ser esquecido?

CJ: Em minhas pesquisas, descobri fatos que ninguém conhecia, tanto no universo de membros da Igreja Adventista  (7.000 membros em Itabuna e 5.000 em Ilhéus), como na Região Cacaueira (centenas de milhares de habitantes). Histórias interessantíssimas, curiosíssimas e importantíssimas (de propósito utilizo o superlativo absoluto) caíram na vala do tempo ou foram sepultadas pela areia da história. Imbróglios políticos e sociais enormes seriam entendidos – e quiçá, resolvidos – se soubéssemos suas origens. Mas suas gêneses não mais existem. É necessário conhecer o passado para se responder perguntas e questões do presente. Se seus atores e protagonistas morrem, sem registrar ou contar o que ocorreu ou como aconteceu, e aí como fica?

RR: Como você percebe o papel da escrita como meio de resgate identitário e espiritual dentro da sua fé adventista?

O membro de qualquer denominação religiosa somente consegue amar e se esmerar em seu mister quando conhece aquele sacerdócio. Como dedicar sua vida, seu tempo, seu talento, e seu dinheiro em algo vazio que não sabe de onde veio nem para onde vai? Você só ama verdadeiramente aquilo que conhece. Eu amo a Cristo porque sei o que fez por mim, que abdicou do trono do universo, que se fez homem e quedou-se numa rude cruz em meu favor. Como não amar alguém que me ama tanto? Assim acontece do ponto de vista terreno. Você só ama aquela agremiação que se sente pertencente. Aí entra o conhecimento histórico. O conhecimento do processo formativo do Movimento. A missão e o alvo que o grupo iniciador fomentava. Que caminhos trilharam os pais adventistas para implantarem o Movimento no mundo e aqui na Região? Por que se submeteram a vir para um local extremamente perigoso e de difícil acesso? Que base bíblica possuíam para sustentar seus discursos? Qualquer fiel que conhece sua origem tende a ser um adorador de proa.

RR: O perfil @historiagrapiuna, no Instagram, tem sido um canal de educação histórica no ambiente digital. Como nasceu esse Projeto?

CJ: Da inexistência no Instagram de um perfil que se preocupasse com nossa rica história.  Surgiu durante o período da Pandemia da Covid-19, na minha ociosidade laborativa pecuniária. Hoje (maio/2025), são 11.000 seguidores. Considero um grande feito, em se tratando de um espaço que se ocupa da História, Memória, Literatura e Arte Regional Cacaueira.

RR: Você é um leitor atento e grato aos autores da Literatura Grapiúna. Que nomes mais o influenciaram e por quê?

CJ: Elencar nomes é certamente perigoso, corro risco de cometer graves injustiças. Mas, vejamos:

João da Silva Campos, que se preocupou em aglutinar registros hemerográficos regionais; Jorge Amado, o paladino da verve e dos tipos humanos grapiúnas; Cyro de Mattos, a maior representação viva da Literatura Cacaueira; Hélio Pólvora, um mágico das crônicas; Euclides Neto, cujos escritos falam da vida, da gente comum e ainda exalam a justiça social; Adylson Machado, dono de um vocabulário consistente e de uma escrita refinada; Sosígenes Costa, dificilmente surgirá outro igual.

RR: Você ocupa a cadeira 34 da ALITA, cujo patrono é Jorge Calmon. Poderia falar um pouco sobre seu patrono?

CJ: Calmon é baiano, nascido em Salvador, em 1915. Foi jornalista, político, escritor, historiador e professor. Escreveu e promoveu a cultura com afinco, a ponto de ser reconhecido como o último grande mecenas baiano quando nos deixou, em 18 de dezembro de 2006. Atuou no Jornal A Tarde, Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Academia de Letras da Bahia, Associação Baiana de Imprensa, Tribunal de Contas do Estado da Bahia e Assembleia Legislativa da Bahia. Estas são suas obras publicadas em vida: Sua bibliografia inclui: A Flotilha Itaparicana, Problemas da  Indústria do Jornal, Manoel Quirino, político e jornalista, Grã Colômbia Vista e Comentada: Notas de um cronista às vezes indiscreto, Imprensas Oficiais no Brasil: Aspectos de sua história e seu  presente, Conceito de História, A cara dos fatos, As Estradas Correm para o Sul: A migração nordestina  para São Paulo, Promessas se Pagam com Pedra e Cal:  Crônicas de viagem, Santo Amaro: Devoção de José Silveira e A Revolução Americana.

 RR: Que papel sua família tem na sua caminhada?

CJ: A importância benévola dos meus pais foi imensa. É aflitivo para o ser humano não ter sido oriundo de uma família equilibrada que lhe serviu de base, de norte e de aio. Agradeço ao Eterno por ter me concedido tal mercê.

RR: Como você vivencia a transmissão de valores dentro da sua casa? Há ensinamentos dos seus pais que hoje você busca passar aos seus filhos?

CJ: Penso nisto todos os dias. Na verdade, em tudo que faço procuro repeti-los no seio familiar.

Por fim, o que você espera que permaneça de sua contribuição — não apenas como escritor ou historiador, mas como homem, cidadão e servo de Deus?

CJ: Anelo não ser pedra de tropeço. Espero ser, mesmo de forma pálida, um imitador do Cristo. Raquel, quem não vive para servir, não serve para viver.

Deuteronômio 16:19, serve como um lema para todo o que defende o ideal cristão: “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e distorce as palavras dos justos”.

 Entrevista publicada em 20 de maio de 2025.

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A GAROTA IDEAL: AFETO, EMPATIA E CURA- Por Raquel Rocha

A Garota Ideal- Afeto, empatia e cura


*Por Raquel Rocha

Dirigido por Craig Gillespie, Lars and the Real Girl, em português:  A Garota Ideal de 2007, é uma obra delicada, inesperada e humana. Estrelado por Ryan Gosling em uma das performances mais sutis e comoventes de sua carreira, o filme nos convida a mergulhar nos silêncios e nas dores de um personagem cuja fantasia não é fuga, mas sobrevivência.

A história parte de uma premissa que, a princípio, parece absurda: Lars, um jovem tímido e retraído, apresenta à família sua nova namorada, Bianca, uma boneca inflável adquirida pela internet. O que poderia facilmente descambar para a comédia grotesca ou para o humor fácil, se transforma, sob a direção sensível de Gillespie e o roteiro inteligente de Nancy Oliver, em uma fábula moderna sobre solidão, saúde mental, vínculo e, sobretudo, empatia.

Não sabemos se Lars acredita genuinamente que Bianca é real. Talvez ele tenha algum nível de consciência de que Bianca não é real, um tipo de insight fragmentado, mas prefere manter a ilusão como uma forma de se proteger emocionalmente. Bianca simboliza tudo o que ele nunca teve: uma figura de cuidado, acolhimento e aceitação incondicional. Para ele, que apresenta características compatíveis com um transtorno de personalidade esquizoide, a boneca não é um fetiche, mas um objeto transicional tardio, nos termos de Winnicott: uma ponte simbólica entre o isolamento e a possibilidade de se vincular ao outro.

A atuação de Gosling é comedida e cativante. Com gestos mínimos, olhares perdidos e falas pausadas, ele constrói um personagem que, mesmo preso em seu mundo interno, comove profundamente o espectador, despertando compaixão sem jamais recorrer ao sensacionalismo.

Outro acerto do filme é a forma como retrata a psicoterapia. A médica Dagmar (Patricia Clarkson) compreende o delírio não como algo a ser reprimido, mas como um pedido de ajuda. Em vez de confrontar Lars com a “verdade”, ela propõe que a família e a comunidade entrem na fantasia, não para sustentá-la indefinidamente, mas para permitir que ele, no tempo dele, reencontre a realidade.

E a comunidade acolhe a fantasia de Lars. Esse talvez o elemento mais utópico e mais bonito do filme. Os vizinhos, colegas de trabalho e membros da igreja decidem não ridicularizar Lars, mas abraçá-lo. Levam Bianca ao salão, à escola, à festa, aos encontros sociais. A boneca é tratada como um ser humano, e esse gesto, que beira o absurdo, revela a beleza do cuidado coletivo.

No clímax do filme, quando Lars começa a se despedir de Bianca, é como se estivesse finalmente pronto para nascer para o mundo . Um nascimento simbólico, doloroso, mas possível, porque foi gestado no útero do acolhimento, da aceitação e do amor.

A Garota Ideal é um filme que desarma. O que parece ser uma bizarrice se revela uma prece. Um lembrete de que há, sim, muitos Lars entre nós, pessoas que silenciosamente carregam traumas, medos, dificuldades de se vincular. E que não precisam de confronto ou exclusão, mas de acolhimento e tempo. Em um mundo apressado para julgar, A Garota Ideal pede paciência. E nos mostra, com poesia e compaixão, que amar alguém, mesmo quando é difícil compreendê-lo, pode ser o início de toda cura.

 

*Raquel Rocha é Psicanalista, Psicóloga, Especialista em Neuropsicologia, Saúde Mental,  Neuropsicologia e Terapia Familiar.

 

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