Gustavo Felicíssimo. Oratório das Águas. Itabuna: Mondrongo, 2021.
Poesia “de insondável viço”, sinaliza o Epílogo do livro.
A água, tomada como metáfora, faz fluir as reflexões sobre a existência, a vida, o fazer poético. Como esclarece na Nota ao Leitor, Gustavo Felicíssimo toma os mitos de Phaêton e Narciso para a sua postura poética, buscando afastar-se da vaidade ou individualidade. Toma para si o conselho de Helios a Phaêton: “voa no meio e correrás seguro”.
Nada excede no livro, que se estrutura em Exórdio, Nascentes , Rios, Mares e Epílogo.
Desde o Exórdio, anuncia os seus propósitos metafóricos ”na condição de água […] apenas um mergulho, talvez” (p.16) . Intertextualidades atravessam os seus versos, com presenças anunciadas em notas (Cecília Meireles, Jorge Araújo, Pablo Neruda, Sosígenes Costa, Aleilton Fonseca, dentre outros), ou sentidas em postura filosófica panteísta (Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa, Espinosa, …): “[…] para que em águas puras eu me purifique […] a eles sempre rogo o próximo verso.” (p. 23)
As águas são muitas e infindas, diria Caminha. Desde Nascentes, as águas são dos rios e dos mares, o cerne poético.
Nascentes, em panteísmo, na metáfora da água, realiza a metalinguagem dos seus versos: “Minha palavra não é um badalar de sinos/ não se iguala às árias dos pássaros/ não penetra a alma das flores/ não reflete a claridade do infinito/ Minha palavra é essa nascente/ esse arroio no qual me assento […] (p.29). Ou ainda: “[…] escrever é como percorrer/ a linha d’água que se derrama/ da ânfora infinita/ onde moram as palavras” (p. 33).
Em Rios, o poeta faz o correr da vida, pari passu, com o correr das águas doces, identificando o processo de criação poética com o da natureza, “no rumor de todas as águas/ No canto de todos os pássaros/ na força do vento nos arvoredos” (p.36). E afirma mesmo: “Esses rios sinuosos são a vida” (p. 37). Ainda em postura panteísta, reafirma a metáfora: “Esses rios não são o que digo/ Às vezes o vento para de soprar/ e o rio se torna um espelho/ Nele vejo a face de todas as coisas / o que alguns chamariam de Deus”. (p.38). Mas, se os rios correm naturalmente para o mar, para o poeta “eles correm é para dentro de mim/ e eu emudeço – remanso que sou/ Os deixo fluir em meus versos/ e os aceito como a mim se revelaram” (p.40). Confirma a própria reflexão sobre a poesia, realizando um original processo de metalinguagem, quando afirma: “Tudo aqui são águas e são também/ a mais perfeita definição de poesia” (p.45) . Como “uma ciranda” a água é devolvida para a água, a palavra é devolvida em poesia…
Mares, também metaforicamente, traz a história e o fazer poético: “Outrora aqui chegaram as naus/ que venceram os oceanos/ Agora surgem esses versos/ como se fossem Argonautas” (p.51). Remete à Mensagem, de Fernando Pessoa: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.” (O Infante. Mar Portuguez. Obra Completa. Rio de Janeiro, Aguillar, 1986, P. 78). Ainda, lembrando Fernando Pessoa (“O’ MAR SALGADO, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal” Idem, p. 82), diz: “Trago uma lágrima após outra lágrima/ que é como uma onda após outra onda” (p. 51). E em versos plásticos, intertextuais, visuais e múltiplos evidencia o avançar das naus; o avançar da sua poesia: “de lufada em lufada prossigo” (p.52); “ E se as ondas me levam/ o meu ser, refluente, navega” (p.55).
Depois, a consciência do fazer poético, pois “quando tudo é calmaria […] o poema vai se construindo/ à revelia de toda efusão marítima” (p. 58)
O Epílogo, conclusão do livro, das reflexões metafóricas, do fazer poético. “Tenho o corpo coberto de água/ posto que nela me sepulto […] pois água é a vida que a tudo rege” (p.66).
O poeta “descobriu na linguagem/ a mais adequada medida do seu êxito” (p.67). Assim, dando a volta, retoma o mito, conseguindo ouvir o conselho de Helios: “voa no meio e correrás seguro”. E seguro corre esse belo texto, que é ORATÓRIO DAS ÁGUAS, ilustrado por Gabriel Ferreira.
Maria de Lourdes Netto Simões (Tica Simões)