DISCURSO DE POSSE NA ALI- Tica Simões

Discurso de Posse na Academia de Letras de Ilhéus-  Cadeira 19

Saúdo à mesa e a todos os presentes.

 

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Muda-se o ser, muda-se a confiança

Todo mundo é composto de mudança

Tomando sempre novas qualidades

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E afora esse mudar-se a cada dia

Outra mudança faz de mor espanto

Que não se muda mais como soia

Camões

Inicio a minha fala com esse fragmento do soneto camoniano, para reafirmá-lo. Sim, não se muda mais como se costumava mudar…

Estou aqui hoje respondendo aos convites que recebi, em diversas épocas, de presidentes desta casa. Afinal, Mudam-se os tempos…Em atenção àqueles convites – desde o primeiro que recebi do saudoso Francolino Neto (lá se vão alguns tantos anos…), chegou o momento de aceitá-los.

Quero agradecer ao confrade Aleilton Fonseca, pela apresentação do meu curriculum à confraria desta Academia. Agradecer à receptividade da sua diretoria: Pawlo Cidade, Anarleide Menezes… E, ainda, a atenção da secretária, Eliene Higínio. Especialmente, agradeço a acolhida de todos os confrades e confreiras, que hoje me recebem.

Foi com muita emoção que ouvi as palavras de saudação de Ruy Póvoas, antes de tudo, um amigo-irmão que a vida me deu.

Hoje, a sensação é de mais um passo na minha caminhada, quando chego a esta casa para tomar posse da cadeira 19, que tem como Patrono Ferreira Câmara e como Fundador Eusínio Gaston Lavigne. E, mais recentemente, foi ocupada por Arléo Barbosa – três intelectuais. Idealistas, defensores da cultura, do bem social e da história, valores que, acredito, dão sentido à vida.

Nesses valores, busco inspiração para esta minha fala.

O Patrono da cadeira 19, Manuel Ferreira da Câmara de Bittecourt e Sá nasceu em Minas Gerais (1762) e viveu muitos anos em Portugal. Lá, na Universidade de Coimbra, foi colega de José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da nossa independência. Engenheiro, publicou inúmeros trabalhos na área científica dentre os quais destaco Ensaio de Descrição Física e Econômica da Comarca de Ilhéus na América (1789),

Na sua trajetória, nos idos do sec XVII, enquanto membro da Academia Real das Ciências de Lisboa, defendeu o plantio do cacau para Ilhéus. Atenta à sua defesa por Ilhéus, digo com Fernando Pessoa, (QUINTO/ D Afonso Henriques. In: Mensagem) .

PAE, foste Cavallero

Hoje a vigília é nossa.

Dá-nos o exemplo inteiro

E a tua inteira força!

Neste ano de comemoração dos duzentos anos das bravas lutas dos baianos pela independência do Brasil, tomo esses versos em postura de decolonialidade, afirmando: “hoje a vigília é nossa”!

Do Fundador dessa mesma cadeira, Eusinio Gaston Lavigne, muito há a dizer. Falecido em 1973, a sua biografia é do conhecimento de alguns de vocês. Eu não tive a honra de conhecê-lo e o que vou lhes falar, resumidamente, é fruto de leitura de alguns dos trabalhos publicados, dele e sobre ele, que o declaram um democrata humanista.

Mas refiro pontualmente o livro Eusínio Lavigne – Paradigma de Caráter e Honradez (2009), de autoria do seu filho José Leo Lavigne que, nas suas 497 páginas, reúne o cerne do pensamento do pai: inabalável à causa socialista.

Não há contradição quando, tantos que escreveram sobre esse democrata, dizem que ele foi um intelectual de primeira linha: jurista, político, escritor, jornalista. Participou de vários movimentos sociais e político-democráticos, desde a campanha civilista de Ruy Barbosa, na revolução de 1930, movimento de partidários da paz, que ele liderou em Ilhéus, onde foi prefeito, de 1934 a 1937.

Incentivava a história e a literatura porque acreditava na sua força para a formação do cidadão. Ainda sobre os seus feitos é de mencionar o livro da confreira desta casa Maria Luiza Heine. IME, O sonho de Eusinio Lavigne. (1999), que trata dos 60 anos do primeiro ginásio público do interior da Bahia e evidencia a luta de Lavigne em defesa da educação.

Autor de diversos livros, notadamente sobre espiritismo e socialismo, dentre tantos, sobre ele, disse Jorge Amado, no prefácio de Os espiritualistas perante a paz e o marxismo: a perfectibilidade do espírito, pelo socialismo (1955):

“as ideias expressas neste livro apenas completam a sua nobre e corajosa atitude de cidadão que tem sido, no Brasil, um dos mais destacados e ativos partidários da Paz.”

Passaram-se os anos e essa Cadeira 19 foi ocupada por Carlos Roberto Arleo Barbosa, desde 2009 até quando, infelizmente, ele nos deixou, em fevereiro de 2022.

À família de Arléo Barbosa, à sua esposa, seus filhos e netos, que agora com afeto cumprimento, digo que, sobre Arléo, é fácil falar, até porque com ele convivi nos tempos de UESC, e sei do profissional comprometido, idealista e pesquisador apaixonado por estas terras e por sua história.

Baiano de Jequié, ainda adolescente veio morar nesta cidade e aqui plenamente viveu. Sua formação de graduação foi em Pedagogia, ainda pela Faculdade de Filosofia de Itabuna, em 1968. Depois voltou o seu interesse de pesquisa para a área de História, fazendo especializações sucessivas: História Contemporânea, Educação Brasileira, História Regional. Em 2002, concluiu o mestrado em Educação, com a dissertação: “A rede pública de ensino médio de Ilhéus: décadas de 1940-1950. Análise de um trajeto histórico”.

Teve significativa atuação na vida cultural ilheense, inclusive foi um dos fundadores do Colégio Fênix, em 1988. Foi professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, de 1974 a 2008, onde além de professor foi pesquisador na área da História Regional

Publicou vários livros e artigos em jornais e revistas. Especialmente cito os livros: Monarquismo e Educação (1972); Nhoesembé (1973); Ilhéus (2010) e Notícia Histórica de Ilhéus (2013).

Foi presidente desta Academia de Letras de Ilhéus, no período de 2009 a 2013. Ao longo da sua trajetória, recebeu várias homenagens. De tantas, aqui destaco, o título de Cidadão Ilheense (1986) e a Comenda do Mérito São Jorge dos Ilhéus (2004), ambas pela Câmara de Vereadores de Ilhéus. Além disso, recebeu o Reconhecimento pelo pioneirismo e anos de dedicação ao ofício de Historiador, à formação de professores na região Sul Baiana, do XXX Ciclo de Estudos Históricos (2019).

Professor da rede pública e privada de Ilhéus, em março deste ano de 2023, foi homenageado com o seu nome para o colégio estadual da Barra de Itaípe que passou a ser Colégio Professor Carlos Roberto Arleo Barbosa.

Agora, também em sua homenagem, sigo a linha do tempo, citando Colombos, in Mensagem, de Fernando Pessoa:

…………………………………..

Outros poderão achar

o que, no nosso encontrar,

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca

É a magia que evoca

O Longe e faz d’elle história.

………………………………………..

E, neste instante, para dizer de mim, eu recorro à literatura, através de fragmentos:

A memória é contrária ao tempo. Enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que importa, eternizando momentos.

Adélia Prado

É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

José Saramago

Mais importante do que o que a vida faz com a gente, é o que fazemos do que a vida fezcom a gente.

Mia Couto

É que tem mais chão nos meus olhos

do que cansaço nas minhas pernas. […]

Cora Coralina

O valor da coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis. Fernando Pessoa

E completo com as minhas maiores referências:

Perseguir sonhos, é vida que segue

Ladislau Netto, meu pai

Viajar é preciso, e viver para contar a história

Henrique Simões

Pois é, quanto a mim, não há mais muito que falar, pois Ruy disse até dizeres do avesso (usando o título do seu último e belo livro).

Como alguns já sabem, sou soteropolitana de nascimento, mas me tornei grapiúna por identidade e vida.

Sempre me considerei uma pessoa de sorte.

Começo por dizer da minha descendência indígena, da tribo dos Kiriri, um povo guerreiro e observador, localizado no sertão nordestino (norte da Bahia). Essa descendência é por parte do meu pai, Ladislau Netto, advogado, escritor, de quem herdei o gosto da aventura, o prazer da leitura e a crença de que se deve sempre perseguir os sonhos. E tive o exemplo da minha mãe, Anna Teixeira Netto, de sangue português, poetisa, exemplar companheira, uma mulher toda coração… Assim, vivi a infância, cercada por quatro queridos irmãos (hoje, aqui, representados pelo mais velho, Sérgio, nosso patriarca). Vivi em Salvador, na península de Itapagipe, no Monte Serrat, entre o mar e os livros… entre o estudo, as aventuras e as viagens…

E a minha sorte seguiu, quando, aos 13 anos, conheci Henrique Simões; com ele, casei-me aos 18. Tive a ventura de ter meus dois filhos: Mauricio e Moyses. E a família cresceu com as noras e as netas. E aqui estão Juliana e Camila.

Pois bem, casada, vim morar na acolhedora Itabuna, onde fui recebida por seus pais – Celita e Paulo Simões – e os 8 irmãos, que se tornaram a minha segunda família.

Depois, encantados com Ilhéus – por sua história, sua beleza natural -, escolhemos viver nesta arrebatadora cidade.

Felizes vivemos até o ano de 2020, quando ele precisou partir para uma dimensão paralela…

Neste momento, ao falar para vocês da minha caminhada, perdoem-me, mas não consigo fazê-lo sem trazer a presença de Henrique, com quem intensa e plenamente partilhei toda a vida. O destemor da aventura foi a nossa maior cumplicidade. E a nossa vida foi de estudo, trabalho, viagens… Sempre juntos… fazendo a vida valer!!

Então… Juntos, vivenciamos o sonho do ensino superior na região.

Cheguei à Itabuna ainda no tempo das escolas isoladas; a Faculdade de Filosofia, àquela época com Flavio Simões Costa, Manuel Simeão da Silva, Maria Rita Coelho Dantas, Valdelice Pinheiro, Rivaldo Baleeiro, meus mestres, que neste momento reverencio.

Vimos a primeira geração de sonhadores que, liderados por Soane Nazaré de Andrade, reuniu as escolas isoladas – de Direito de Ilhéus, Faculdade de Filosofia e de Economia de Itabuna – na Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna. Aqueles sonhadores plantaram a semente do ensino superior na Região, que a minha geração seguiu, na crença de que é pela educação que se conquista a liberdade cidadã e o desenvolvimento. Hoje, tenho a certeza de que valeu a luta de muitos por um ideal. A Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC – aí está.

Na FESPI e, depois, UESC, vivemos a maior parte das nossas vidas. É com alegria que digo: fizemos parte do grupo fundador daquela instituição ao lado de tantos valentes idealistas, alguns aqui presentes, como a primeira reitora eleita da UESC, Renée Albagli Nogueira.

No Departamento de Letras e Artes, na FESPI, depois UESC, vivi a minha vida profissional.

Bem … preciso dizer que, no caminhar da vida, a literatura sempre me iluminou para melhor entender o mundo e as gentes…

Desde cedo, aprendi que a leitura de um texto é um convite instigante para o pensamento e para a reflexão. “A literatura é como uma grande colagem de saberes […]” como diz Roland Barthes.

Mas a minha formação passou também por viagem. As viagens ampliaram o meu horizonte e alimentaram o meu senso de liberdade. Como não falar? Viajamos o mundo, buscando conhecer culturas, estudando e, cada vez mais, entendendo que a diferença e o respeito, enriquecem a humanidade.

E o meu olhar pesquisador acrescentou a viagem à literatura.

Então, no Departamento de Letras da UESC, criei o grupo de pesquisa Identidade Cultural e Expressões Regionais – ICER, direcionando a pesquisa para a literatura e o turismo. O entendimento é de que as narrativas de um povo são legado; evidenciam cultura, história, paisagens, costumes… E a expectativa é de que o turismo deve funcionar como estratégia de sustentabilidade e resistência identitária, pelos que recebem; enquanto enriquecimento cultural, para os visitantes.

Relacionando a viagem com o trabalho da pesquisa, de tantas experiências que a vida me oportunizou, destaco aqui o projeto de educação patrimonial através da literatura, desenvolvido entre UESC e escolas de ensino fundamental . A ideia do projeto, antes de mais, é fazer a “viagem” leitora, buscando o reconhecimento do nosso patrimônio natural e cultural e da identidade grapiúna, visando a valorização da literatura regional e a formação de cidadania no jovem leitor.

Citei especificamente esse exemplo, dos tantos projetos realizados, pela importância da cultura na formação dos jovens, em atenção ao objetivo precípuo de uma Academia de Letras de “cultivar a língua portuguesa e a literatura e cultura nacionais”.

Mas também o citei, aproveitando este momento, para dizer que ações similares não se sustentam somente no idealismo do fazer do educador; carecem de apoios e sensibilização dos poderes públicos para a sua execução.

Enfatizo, portanto, a necessidade de políticas públicas que garantam um ensino de qualidade, com a valorização do trabalho docente e a disponibilização à comunidade de equipamentos como teatros, centros de excelência, etc, que atendam aos projetos culturais locais. E, também, claro, que atentem para a preservação do nosso patrimônio.

Penso que a ousadia, a vontade política, o olhar lúcido e comprometido com o bem-estar social é que fazem grandes idéias se tornarem realidade. Acredito ser também uma das responsabilidades de uma Academia de Letras contribuir e influenciar nessas políticas.

Assim pensando, retomo os valores comuns aos meus antecessores, que considerei como um laço entre nós: além do amor por Ilhéus, o compromisso com a sua cultura e história. O olhar para o social, com respeito às diferenças em consideração da multiculturalidade brasileira. E é a isto que, neste momento, me proponho ao tomar posse desta cadeira 19: tentar somar, fazendo valer esses valores, com vistas a contribuir, cada vez mais, para a solidez desta Academia.

Agradeço a acolhida desta casa e a presença de todos vocês.

Obrigada!

Maria de Lourdes Netto Simões (Tica Simões)

Ilhéus, em 22 de julho de 2023.

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