UM DICIONÁRIO DIFERENTE- Ruy Póvoas

Está dito: dicionário é um repositório idiossincrático do léxico. E existem muitos tipos de publicações que guardam tal característica.

E agora, é dado à luz um dicionário diferente. Trata-se do Pequeno dicionário de personagens da história de Ilhéus e Porto Seguro. Em que reside, porém, a referida diferença? Comecemos pela autoria. É uma publicação que traz os nomes de Henrique Campos Simões e Marcelo Henrique Dias, dois Henriques. Dicionarizemos, portanto. E porque os dicionários pululam na iternete, vamos até lá.

Acessando www.dicionariodenomesproprios.com.br/henrique/,

somos informados que Henrique significa “senhor do lar”, “príncipe do lar” ou “governante da casa”. Tem origem no nome germânico Haimirich, composto pela união dos elementos heim, que significa “lar”, “casa”, e rik, que quer dizer “senhor”, “príncipe”, “poder”. Dessa junção, resulta o significado “senhor do lar”, “príncipe do lar” ou “governante da casa”.

Então? Estamos diante de uma publicação de dois príncipes e senhores, dois Governantes da Casa. O primeiro deles, Henrique Campos Simões, já não está mais no nosso meio. Há mais de ano, ele viajou para outra dimensão. O segundo, Marcelo Henrique Dias, continua seus trabalhos de ensino e pesquisa, na Universidade Estadual de Santa Cruz, cuja editora, a Editus, fez a publicação.

Depois que Henrique Simões se foi, a professora Maria de Lourdes Netto Simões (Tica Simões) aliou-se ao outro Henrique. Ambos mergulharam nos originais do dicionário em apreço. De tal trabalho profícuo, juntamente com o empenho da Editus, na pessoa de sua diretora, professora Rita Argolo, resultou uma obra que veio para ficar.

Mais uma diferença entre as que fazem do livro um dicionário diferente. Trata-se do trajeto percorrido por Henrique Campos Simões, levantando dados necessários. Bebeu nas fontes mais destacadas a esse respeito, em Portugal. Disso, no entanto, o texto de apresentação da professora Maria de Lourdes e o de Marcelo Dias dão conta de maneira brilhante.

E a diferença vai se expandindo. O inventário dos personativos é simplesmente singular. Não se trata apenas do repositório de nomes de pessoas que viveram no Brasil, nos tempos coloniais. O arrolamento vai para muito além disso. A leitura dos verbetes, diga-se de imediato, lavrados com objetividade, há de revelar o retrato e o perfil de nossas origens genéticas e socioculturais. É justamente no exame dos dados fornecidos, revisitados lá, no passado, que podemos entender melhor nosso povo, no presente. Vejamos um exemplo notório na página 177:

NUNES, Antônio (1591). Cristão-novo, morador em Porto Seguro, acusado, durante a Visitação do Santo Ofício na Bahia, de estar juntamente com outros cristãos-novos examinando uma “Toura” (Torá).

Qualquer leitora ou leitor familiarizado com a história do Brasil há de se dar conta da riqueza dos conteúdos informados em tal verbete. À primeira vista, há de alcançar apenas fatos curiosos do passado. A reflexão, no entanto, trará analogias com o que nos acontece no momento. O exame de um volume da Torá não mais se constitui crime. O Santo Ofício, que de santo nada tinha, foi dissolvido com o passar do tempo. Não há como negar, mutatis mutandis, coisas semelhantes ainda continuam acontecendo. Afinal, se as leis e o poder da Igreja de Roma foram diluídos, o imaginário que os providenciou ainda continua agindo, engendrando novas formas de expressar preconceito.

Diferença marcante também pode ser constatada na Nota ao leitor, da redação dos apresentadores, nos termos seguintes: “[A pesquisa] recebeu colaboração da Profa. Janete Ruiz de Macedo que contribuiu, aproximadamente, com cem verbetes (aqui identificados com suas iniciais JRM).” Conforme se vê, trata-se de alentada contribuição, a ponto da Profa. Janete receber merecido reconhecimento.

E as diferenças que caracterizam o Dicionário… vão se acumulando. Após o inventário dos antropônimos, cobrindo as letras de A a Z, uma série de seções também faz parte do livro. Inventários do plantel de pessoas escravizadas, de acordo documentos examinados. Um exemplo fiel de como as pessoas escravizadas eram vistas e consideradas: “Maria, mãe dos ditos crioulos, já velha, que não serve”. Qualquer semelhança com o que acontece atualmente não é mera coincidência. Se pessoas não mais recebem epíteto de escrava, sua condição social guarda ainda a mesma consideração por elas aos olhos de certos segmentos sociais da atualidade.

O Dicionário… ainda nos brinda com um quadro em que constam todos os governadores e vice-reis do Brasil, de 1.549 a 1.754. A maioria deles nunca foi vista nos livros de História adotados. E as peculiaridades continuam a fazer parte do Dicionário… Quatro quadros relacionando os nomes, por dinastias e data, da monarquia portuguesa, desde D. Afonso Henrique que nasceu em 1.604, a D. Manuel II, falecido em 1910. Trezentos anos de cobertura, portanto. Tais dados testemunham empenho, zelo e cuidados por parte de seus dois autores e primor da revisão.

Por último, duas outras seções fecham o Dicionário… Uma relação dos verbetes e referências bibliográficas. Quanto a esses dois itens, trata-se de mais uma peculiaridade, pois não se costuma constar tais itens num repositório idiossincrático do léxico, mormente se as palavras aludem exclusivamente a nomes de pessoas.

Se hoje a caravela da capa do Dicionário…, idealizada por Deise Francis Krause, já foi arquivada, ela ainda é uma lembrança do passado no nosso imaginário, mas não descartada enquanto símbolo de representatividade. Ela transportou para o Brasil dores, lágrimas, sangue derramado e pessoas que foram tratadas pior do que animais. Também foi ela que levou para a Europa nossa madeira de lei, nossos metais e pedras preciosas. Por isso mesmo, ela ainda resiste no fundo de nosso imaginário. E é justamente disso que o Pequeno dicionário se empenha em dar conta. Por isso mesmo, trata-se de um dicionário diferente, cujas qualidades trazem consigo o denodo de seus autores.

Ruy Póvoas

Junho 2022

ajalah@uol.com.br

 

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