ABERTURA DO ANO ACADÊMICO DA ACADEMIA DE LETRAS DE ITABUNA
Heloísa Prazeres
Boa noite, saúdo as pessoas presentes a este ato solene de abertura do Ano Acadêmico de 2022, agradeço a honra e a gentileza do convite à Ilma. Senhora Presidente, Silmara Santos Oliveira, saúdo ilustres Sras. e Srs. acadêmicos desta Casa de Adonias Filho, fundada em 19 de abril de 2011, em cuja solenidade estive presente. Consciente do nobre significado desta tarefa, com muita alegria, participo da reunião, remotamente, ainda, em face das medidas a que o remanescente estado de pandemia nos obriga. Almejo que neste novo ano, possa-se deixar para trás esta travessia marcada pelo medo e pelo sofrimento.
Cabe-me, ainda, como filha da cidade de Itabuna, saudar com especial deferência e admiração mestres e jovens membros integrantes desta Casa, no vigor de sua primeira década de existência. Nascida há dez anos, a Academia de Letras de Itabuna, ALITA, é o resultado do sonho de apaixonados pela Literatura e pela Língua Portuguesa. Desde cedo, sou testemunha de que, a ALITA, logo compôs o seu quadro, com um grupo de luminares titulares, como é da tradição, onde foram acolhidas mais de uma dezena de mulheres.
A estas dedico, de entrada, e no epílogo do mês de março, feminino, o poema: bicho-da-seda
bem cedo ouço sentidos ocultos
escuto o rumor de leves asas
encontro o casulo do inseto
(viajam mariposas recém-natas)
então a ficção arma o meu dia
provê o curso e o comentário −
palavras silenciadas já acolhem
os múltiplos sentidos do ditado
ora construo efêmera arquitetura
rascunho de tramas sobre tecidos
fabulações de cultivo próprio
ofício feminino do expurgo
(PRAZERES, 2020, p. 14).
A promoção e coordenação das Letras e da Cultura é um desafio sem tamanho e requer o melhor das sensibilidades e da adesão às instituições públicas. Há que haver brilho no olhar, expressão de vontade e equilíbrio, entre pensamento e ação, pois, o incentivo às Letras e Artes, Saberes e Fazeres (literatura, ensaística, artes dramáticas, performances e manifestações culturais populares) implica propor miradas inclusivas e interventivas sobre o real.
Quem de vocês já não sentiu desassossego sobre a atual situação a que vivemos sujeitos? Principalmente nos dias que correm, quando a ameaça da guerra baixou sobre o planeta, em virtude do dissídio e despreparo de líderes mundiais. A poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), prêmio Nobel de literatura de 1996, registra todo o estranhamento e indignação em relação à ausência que a morte impõe e que desconcerta a naturalidade do mundo:
[…]
Morrer — isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
numa casa vazia
[…]
(SZYMBORSKA, Poemas, 2011).
Quero lhes dizer, que, uma espécie de desconforto me acompanha; não exclusivamente pelo momento em que vivemos, mas por uma condição natural de pensar que, mesmo quando o tempo decorre animador, sei não permanecerá assim, devido àquilo que nos condiciona como seres no tempo, na expressão de Martin Heidegger, quando se refere à nossa condição de efemeridade. Talvez seja esta a chave visível da percepção do poético, expresso, desde sempre, e contundentemente na contemporaneidade.
A questão mais relevante que configura o contexto atual é a globalização e o avanço da tecnologia − mundo digital, que dissipou a vida como a conhecíamos, e alterou a nossa percepção espaciotemporal. Agora, na definição de periodização literária, incidem questões de gênero, raça, origem social, códigos e recursos de mídia, cenário saudavelmente heterogêneo da vida e da arte. A face hegemônica dos grandes centros foi ultrapassada. O crítico brasileiro, Antonio Candido, ao analisar este cenário heterogêneo identificou-o como animador e provocador do desejo de compreensão do seu destino (CANDIDO, 1979).
Abro, a seguir, um espaço de homenagem a autores já denominados “sem idade”; num um recorte do aspecto espaciotemporal, em sua poesia ˗ sendo este espaço imaginário ou localizável em mapas. Abordo a perspectiva, em exemplos, na poesia de Florisvaldo Mattos (1932); Cyro de Mattos (1939) e Renato de Oliveira Prata (1938), e faço breve reflexão sobre as suas estratégias de criadores. Sistematizando:
- a) a lírica como espaço de apropriação e paródia da tradição clássica e moderna;
- b) a poesia como afirmação ecológica ou a ecopoesia;
- c) o tratamento poético-elegíaco em espaço cosmopolita.
FLORISVALDO MATTOS
O poeta Florisvaldo Mattos é um escritor ativo nas últimas sete décadas. Além de poeta, é um intelectual, jornalista, professor, mediador cultural, conforme obra literária e atividade ensaística. Há registro de alentados estudos suscitados por sua poesia lírica e épico-lírica, legado que se alinha com o perfil irrequieto e fértil do escritor, que, constantemente, se renova e atua com regularidade nos meios acadêmicos e de difusão literária e cultural, inclusive nas redes sociais.
Há um aspecto de sua poética, que adota a ótica de uma releitura de temas clássicos e modernos, sob prisma contemporâneo, pois sua poesia encontrou formas não lineares de se relacionar com a história. O seu olhar almeja a um tom imaginativo, que prioriza as estruturas, no espaço discursivo, e sua poética abraça o desvio lírico, em textos, que induzem a semelhanças, mas que levam a pensar a literatura, hoje, nas dessemelhanças, com relação à tradição recuperada. A voz florisvaldeana, nesse modelo, pode configurar uma arquitetura bucólica, apoiada em fontes clássicas, e ambientação telúrica, como se lê, no excerto,
Sem ser Títiro[1], nem ser Melibeu,
nem recostado estar numa jaqueira,
como também não para doces ócios,
apuro a mente e escavo chão de auroras,
(MATTOS, F., 2016, “Lavra de pater famílias”, p.33).
A sua voz encosta-se no significado da tradição, parece habitar um pré-existente espaço temático, que exalta a sua linhagem,
Netos de Homero e, também, filhos de Virgílio,
Dias, noites, sol, chuva, calmos ou molestos,
Em ameno sítio, ou partindo para o exílio,
…É de humanidade que se trata, de existências,
…Farta, como areia do mar, em minudências.
(MATTOS, F., 2016, “Poema das minudências”, p.103).
Fiel ao projeto pessoal de restabelecer esse tom lírico vinculado a predecessores das tradições clássica e moderna, numa perspectiva contemporânea, que o autor tão bem conhece e estuda − e da qual se apropria − cumpre-se o destino que lhe cabe de consagrado escritor brasileiro; cria-se a atmosfera desejada, que se pode utilizar para reflexão e melhor entendimento das estratégias do criador contemporâneo.
CYRO DE MATTOS
Uma das vozes mais contundentes e prolíficas da literatura produzida na região sul baiana, Cyro de Mattos impõe-se na literatura brasileira pela força de suas narrativas e de sua poesia; seu impacto transcende fronteiras nacionais, dando-se a leituras em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Contista, cronista, poeta, romancista, ensaísta, premiado no Brasil, Portugal, Itália e México; primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz e Membro fundador da Academia de Letras de Itabuna, Cyro também é o ilustre idealizador e editor da Revista Guriatã. O escritor possui vasto acervo crítico sobre sua fatura revelada num estilo impregnado de registros de fala. Bem assim, sua poesia, situada na região − reduto que propõe respostas alusivas ao lugar geográfico de onde fala o escritor. Teluricamente, seu verso exalta o lócus, o território e sua leitura confirma o potencial poético, que em si carrega o próprio eu-lírico. Seu texto oferece mais do que o faria a escrita etnográfica. A paisagem do sul transforma-se miticamente na personificação de uma maneira de ver e o sentimento de pertencimento, em relação à terra, às pessoas e à vida e ao mistério, reverbera,
Onda por onda
no navio do meu corpo,
entre ostra e vento
nas águas idênticas
de mim embora diverso.
Da aurora ao arrebol
meu canto inconcluso
da humana solidão.
Bebo tudo do mistério
sem nunca ter chegado perto
(MATTOS, C., 2020, “Cerco das águas”. Inéditos. In: Canto até hoje, p. 454).
Sua visão ideológica e poética encontra-se no controle das experiências que encarnam as fontes imagéticas e o próprio ato poético. Sua voz impressiona sem efeitos de literatização; a dicção convence o leitor e o vínculo com o lugar revela moldes próprios, não autoritários,
A ferida de arpão
e singrar no unguento.
Os detritos na areia
e vidrilhar no vento.
As manchas azedando
e a lua que clareia.
É o sol é o sal
num jeito de cantar
macio na pedra.
Ó leopardo sapiente,
ensina-me teu navegar
em líquido segredo.
(MATTOS, C., 2020, “Lamento”. Inéditos. In: Canto até hoje, p. 445).
Na recepção dessas imagens do lugar, comovem o leitor sentimentos de satisfação, luta, respeito e comprometimento com o espaço geográfico, tradução da ecopoesia, que a sua obra exalta.
RENATO DE OLIVEIRA PRATA
Suas proposições poéticas vieram a público, quando recebeu o Prêmio Braskem de Arte e Cultura – Literatura, em 2003, por seu livro Sob o cerco de muros e pássaros. Com o livro Mar interior (PRATA, 2015), recebeu o Prêmio do Selo João Ubaldo Ribeiro, de poesia, e editou recentemente a sua sexta coletânea, Um tempo visto da ponte (PRATA, 2020). Na fronteira do entendimento da função da literatura, hoje, inscreve-se o seu trabalho (cf. PRAZERES, 2020), no qual proponho a qualidade de vizinho da reflexão,
Vez por outra
No canto me perco
Fujo ao trivial
Saio do cerco
E revisito o caos.
(PRATA, 2020, “Intervalo”, p. 32).
Ou quando da opção por um tipo privilegiado de comunicação, articulado com buscas que consolidam a sua poética − atrai para si e para a obra a discussão sobre o sentido e o alcance da poesia, demonstrando a percepção da escuridão, na qual estamos imersos. Para o filósofo italiano, Giorgio Agamben, tal compreensão implica a percepção do contemporâneo, ou seja, o poeta mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não luzes, mas a escuridão (cf. AGAMBEN, 2009, p.62-63),
Tempo de barbárie é qualquer tempo
Num refluxo do Mediterrâneo
Serve-se sal e morte
Para imigrantes traficados
(PRATA, 2020, “SOS no Mare Nostrum”, p. 116).
Trata-se de equivalente da dimensão social reencenada. “Mare Nostrum” é um texto alusivo à tragédia real, contemporânea, e à condição trágica do imigrante; este é um dos interesses do teórico e crítico, Homi Bhabha (2011), que estuda as lacunas no poeta contemporâneo e enfatiza a questão das minorias globais.
Por meio dessas breves sinalizações, concluo admitindo a possibilidade de cruzamento de metáforas na configuração de contextos da poesia dos poetas contemporâneos “sem idade” e grapiúnas, aqui brevemente lidos, todos em pleno desenvolvimento, considerando-se sua profícua produção.
Confesso que as vozes da poesia me provocam, permanente, a iminência do risco e da urgência, que, talvez, apenas a atividade criativa possa compensar, pois, como adverte Cyro de Mattos, citando Cecília Meireles: Mas a vida, / A vida só é possível/ Reinventada. (MEIRELES apud MATTOS, C., 2020, p. 31).
Já quase concluindo, parafraseio o Papa Francisco, quando adverte: Nada deste mundo nos é indiferente (FRANCISCO, Laudato SI, 2015). De onde se extrai uma visão epistemológica realista, mas com uma nesga de esperança. Assim, o cultivo do conhecimento superior deve ser permeado pela busca da sabedoria que nos dê sentido e direção. No mundo que almejamos construir, não há espaço para monólogos. Busca-se o gesto em direção ao outro.
É essa atitude, de empatia, que a Academia de Letras de Itabuna traduz como sua casa no simbólico abraço das letras, expresso no seu emblema — equilíbrio, interlocução, qualidades constituintes da visão feminina de sua liderança. Casa da palavra e delicadeza, Casa de Adonias Filho. A disposição genuína em relacionar-se, a confiança no novo é a vitória do espírito acadêmico, que permite à Casa receber, variedade de pessoas vinculadas a assuntos diversos: psicanálise, teatro, cultura afro-brasileira, direito, ressaltando-se a atividade dos mestres que se dedicam ao amparo do saber da ancestralidade e da voz vigorosa de procedência popular.
Imortalizado pelo seu entusiasmo pelas Letras, o quadro da instituição permanece vivo por meio dos que escrevem os tesouros que hoje habitam no seu acervo, como as obras dos autores aqui citados. A Academia também está viva, no Facebook, no Instagram, na sua página institucional, enfim, na rede mundial, recebendo visitas virtuais, globalmente.
Finalizo refletindo que a crítica e a resiliência são instrumentos de sobrevivência num mundo que se deseje habitável, onde inexista espaço para preconceitos e discriminações. O saber, as letras e artes consolidaram-se, ao longo dos séculos. A voz feminina possui o seu espaço definido. E, se os editores e livreiros são atores indispensáveis à circulação do livro, deve-se exclusivamente aos escritores o cultivo da terra literária. O que é mais afirmativo que a diversidade, que se deve afirmar numa cultura, numa civilização, mistura de etnias, religiões e cores? A Academia de Letras de Itabuna segue, fiel à sua missão de promover literatura, riqueza e dinamismo da língua, leal aos seus fundadores, amiga das pessoas que acolhe ou que por ela passem, compromete-se com as que virão.
Formulo votos de dias prósperos e ativos para a próxima década! Muito obrigada.
Salvador, 30 de março de 2022.
REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2011.
CANDIDO, Antonio. [Efemeridade]. In: CELSO, Antonio Lafer (org.). Esboço de figura: Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
MEIRELES, Cecília. Reinvenção. In: MATTOS, Cyro de. Canto até hoje. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Casa das Palavras, 2020. p.31.
MATTOS, Cyro de. “Cerco das águas”. In: MATTOS, Cyro de. Canto até hoje. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Casa das Palavras, 2020. p.454.
MATTOS, Cyro de. “Lamento”. In: MATTOS, Cyro de. Canto até hoje. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Casa das Palavras, 2020. p.445.
MATTOS, Florisvaldo. “Lavra de pater famílias”. In: MATTOS, Florisvaldo. Estuário dos dias e outros poemas. Salvador: EPP, 2016. p.33.
MATTOS, Florisvaldo. “Poema das minudências”. In: MATTOS, Florisvaldo. Estuário dos dias e outros poemas. Salvador: EPP, 2016. p.103.
FRANCISCO. Carta encíclica Laudato SI’ do Santo Padre sobre o cuidado da casa comum. Roma: Solenidade de Pentecostes, 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html . Acesso em: 1 mar. 2022.
PRATA, Renato de Oliveira. Um tempo visto da ponte. São Paulo: Scortecci, 2020.
PRATA, Renato de Oliveira. “SOS no Mare Nostrum”. In: PRATA, Renato de Oliveira. Um tempo visto da ponte. São Paulo: Scortecci, 2020. p. 116.
PRATA, Renato de Oliveira. Mar Interior. [S.l.]: Fundação Gregório de Mattos, 2015.
PRAZERES, Heloísa. Bicho-da-seda. In: PRAZERES, Heloísa. Tenda acesa: poemas. São Paulo: Scortecci, 2020. p.14.
SZYMBORSKA,Wislawa. Gato num apartamento vazio, in: Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras.2011. p.94
Heloísa Prata e Prazeres é poeta e ensaísta. Professora adjunta aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, UFBA. Bacharel e Mestre em Letras pela UFBA, cumpriu doutorado em Literatura, University of Cincinnati, OH. EUA. Foi titular na Universidade Salvador, UNIFACS. Coordenou o Núcleo de Referência Cultural da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Publicou em livro, Temas e teimas em narrativas baianas do Centro-Sul. FCJA; UNIFACS; SECULT, 2000; Pequena História, poemas selecionados. Salvador: Quarteto, 2014; Casa onde habitamos, poesia. São Paulo Scortecci, 2016; Arco de sentidos, literatura, tradução e memória cultural. Itabuna: Mondrongo (2018). Tenda acesa, poemas. São Paulo Scortecci, 2020. A vigília dos peixes, poemas. São Paulo Scortecci, 2021. Membro vitalício do International Alumini Association. Desde 2021 ocupa a Cadeira nº 26 da Academia de Letras da Bahia.
[1] Na mitologia grega, os títiros (Tityroi) eram seres rústicos que tocavam flauta no cortejo do deus Dioniso. Melibeu relativo a Melibeia, antiga cidade da Tessália (Grécia), ou a seu natural ou habitante.