DE REPENTE… ASSIS!- Charles Nascimento de Sá

Segundo o sociólogo alemão Maurice Halbwachs, em seu livro A memória coletiva, História e memória são elementos intrínsecos a um mesmo objeto: o ser humano. Falar da pessoa humana, individual ou coletivamente, requer atenção para o tempo, onde se debruça o olhar da história, e também para as lembranças, onde se insere a memória. Esses dois itens possuem a capacidade de dotar o indivíduo de características que lhes possibilitam entender a si próprio, seu grupo social e o momento por ele vivido. História e Memória são assim atributos que dotam o homem de sentido e lhe fornecem a base de sua identidade social.

Uma memória individual não é, sobre nenhuma circunstância, isolada ou fechada. Nela despontam elementos provenientes dos mais variados grupos que o indivíduo vivencia. Para construção e manutenção de nossas lembranças se faz necessário recorrer e/ou reportar-se à lembranças dos outros. Ao invocar recordações de outras pessoas somos obrigados a confiar inteiramente em seus apontamentos, pode-se recorrer também à conversação ou livros, porém, em todos esses casos, a memória ai é sempre emprestada.

Partindo do ensinamento de  Maurice Halbwachs volto minha memória para um texto que escrevi em 2017 quando retornava de Assis, no interior de São Paulo, para Itabuna. Em Assis estava cursando o doutorado em História na UNESP. Esse texto, que agora reproduzo com leves modificações e atualizações, foi meu agradecimento e reconhecimento pelo período vivido naquela cidade, pelas pessoas que se tornaram amigas e pela Instituição que me acolheu e tanto me ensinou.

XXX

No dia 28 de janeiro de 2016 me encontrava em Eunápolis, onde trabalho no Campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Já fazia alguns anos que tentava ingressar para o doutorado em História, diversos fatores pessoais, familiares e profissionais me haviam impedido até então. A partir de uma conversa casual com uma amiga tive um estalo de verificar se haveria seleção naquele mês em alguma universidade de São Paulo, sabia que na maioria dos estados o ingresso acontecia no final do ano.

Fui primeiro ao site da Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, por que estava lendo um livro publicado pela editora dessa instituição. Como lá não havia doutorado, apenas mestrado, decidi ir ao site da UNESP, pois havia terminado há pouco tempo a leitura de um livro dela também. Qual não foi minha surpresa ao colocar os termos “doutorado história unesp” no Google ver surgir à notícia de que o Campus de Assis estaria com inscrições abertas entre os dias 02 a 06 de fevereiro, exatos três dias para o começo.

Imediatamente verifiquei as linhas de estudo do programa e me deparei com contato do professor André Figueiredo Rodrigues, sem nunca ter tido contato com ele lhe enviei um e-mail com meu projeto em anexo. Para minha alegria, poucas horas depois ele respondia dizendo que havia gostado e que faria uma leitura mais atenta no sábado. No sábado, dia 30, recebo a resposta de professor André sugerindo algumas correções. Neste dia, e no domingo, tranquei-me no meu escritório e somente saí de lá quando todo o projeto já havia sido formatado segundo as indicações do professor.

Encaminhei o material para seleção e fiquei ansioso, aguardando o resultado da primeira etapa. No final de fevereiro minha inscrição havia sido aceita. Comecei então a procurar passagens para Assis. O melhor caminho seria por Marília. Vim para a região de Assis no dia 12 de março. Até então a única Assis que eu conhecia, de fotos ou leitura, era a de São Francisco, na Itália. Sem conhecer nada daquela região, a não ser o que se vê na televisão, nos jornais e livros, embarquei rumo ao desconhecido.

Aqui chegando tive logo uma boa impressão sobre a cidade. A avenida Rui Barbosa, sua principal via, onde se encontrava o hotel que me hospedei, é larga, comprida e com enorme variedade de lojas, em muito se assemelhando a nossa Cinquentenário. Passei à tarde de sábado e o domingo percorrendo ruas e avenidas da cidade.

Na segunda e terça fui ao Campus da UNESP para realizar a seleção. Lá houve de minha parte novo encantamento. O Campus é bem arborizado, os prédios são espaçosos e amplos. Lembrava em muitos aspectos minha instituição de formação, a UESC. Ao mesmo tempo, sendo eu oriundo da região Cacaueira, no sul da Bahia, estar em contato com fauna e flora sempre fora um elemento constituinte de minha identidade regional. Os funcionários e professores do curso se mostraram atenciosos, educados e prestativos nessa etapa.

Após a aprovação no doutorado viemos, eu e minha ex-esposa residir em Assis. Alugamos um pequeno apartamento próximo à SABESP na av. Marechal Deodoro de propriedade de seu Paulo e dona Rosângela, sempre a postos para viajar com seu motorhome. O movimento de carros, motos e gente, a quantidade e variedade de lojas foram logo um chamativo. Outro aspecto foi a enorme oferta de itens para casa. Em apenas um dia conseguimos comprar tudo para suprir nosso apartamento com o essencial para o período de um ano.

Como não viemos de carro, começamos a desbravar a cidade a pé. Percorremos ruas, praças, igrejas, avenidas. Conhecemos os supermercados daqui, sua variedade e produtos. Na Casa Norte, localizamos uma opção para adquirir produtos nordestinos (farinha de mandioca, jabá e outras guloseimas). Minha ex-esposa achou o comércio ótimo para compras. Eu, de minha parte, encontrei ali a livraria Poética. Na área da saúde, as opções eram muitas e variadas, destaco a clínica de Dr. Orlando, sua atendente dona Irene e a a clínica de Viviam para fisioterapia. A catedral de Assis e demais igrejas católicas são lindas.

Fiquei estupefato com a quantidade de carros que havia em várias garagens no bairro em que passamos a residir. Minha ex-esposa sempre brincava que éramos os únicos assisenses a pé. Em nossas caminhadas diurnas deparamo-nos com excelentes opções de lanche: Sodiê, Santo Onofre, Cecica, Café do Urso (onde Jonas está sempre pronto para ensinar tudo sobre um bom café), Cantina D. Beja, Quiosque do Shopping, a sorveteria Icy Cream.

As noites, deparamo-nos com uma variedade de restaurantes: Art Sushi, Garoa Paulistana, Cachaçaria, Hippo pizza (minha esposa é louca pela pizza de berinjela e pelo coquetel de morango com vinho), pizzaria Veritá, onde Jean nos atendia fazendo-nos sentir em Nápoles, hamburguerias Boca Nova e House 630; Casa do Chopp. Temos ainda as padarias: Pão Quente e Mini Pão quente, além da Florença. Não posso me esquecer do cinema e das diversas opções de fast food. Como baianos ainda nos deparamos com uma barraca de acarajé, sendo esta administrada por um casal de itabunenses que há quinze anos adotou Assis como sua cidade.

Sem contar as opções gastronômicas é possível fazer caminhadas matutinas ou em outros horários no parque Buracão. Poder imergir na fauna desse local e em todas as opções que ele apresenta: academia ao ar livre, onde fazia meus exercícios, espaço para crianças e o salão de exposições. O espetáculo das jabuticabeiras no final do ano é esplêndido. Os ipês e sua coloração de amarelo, rosa, roxo e branco dotam as ruas e passeios e um cenário poético. Às tardes nada como ir para a praça da catedral ler um bom livro, curtir a brisa nesse horário o que auxilia a suportar o calor. Também o frio foi outro fator que gostei. Fui criado em um povoado chamado Jacarecy, pertencente ao município de Camacan, na região Cacaueira. Lá, nos meses de maio a agosto o frio é capitaneado por uma chuva fina, constante, gélida. Em Assis o frio era seco, cortante, bom para entrar embaixo de uma coberta.

As aulas na UNESP me permitiram contato com novos colegas, dentre os quais, cito Cíntia, Luigi, Bruno, Jorge, Fernando, Eduardo, Edivaldo, Luís, Augusto, Esther, Thiago, João, Abner e Matheus. Fiz novas amizades e pude desfrutar da inteligência e produtividade dos docentes do curso. Sem contar a solicitude dos responsáveis pela secretaria do curso de História, Lino e Marcos, nas resoluções dos problemas que nós estudantes apresentamos. Destaco com carinho, as aulas de professor Beired, Lúcia, André, Germano e Fábio. Fiquei sentido por não poder ter tido aula com os outros docentes.

Toda essa variedade de itens, gente e coisas me encantou. Como católicos ficamos fascinados com a paróquia Santa Cecília e as homilias de padre Neto, desde já um dos mais queridos servos que temos conhecido. Suas homílias falavam ao coração e à alma. Suas brincadeiras aliviavam um pouco as dores de se viver nesse mundo. A fé aqui vivenciada também me chamou a atenção: na Semana Santa, fiquei profundamente tocado pela enorme quantidade de famílias e jovens que se dirigiam à Igreja.

Por fim, mas não concluindo, pois muitos são os sentimentos que me atingem ao lembrar e escrever sobre Assis, devo destacar a tranquilidade, o prazer e a segurança que era poder caminhar pelas ruas da cidade, seja durante o dia ou a noite. Itabuna está entre as dez mais violentas cidade do Estado da Bahia e entre as vinte mais violentas para juventude no Brasil, são cerca de dez assassinatos por mês no município. Furtos e roubos, de tão comuns nem são mais informados na delegacia de polícia. A insegurança e a incerta de quem vivia em uma cidade de quase 240.000 habitantes, cedeu lugar à segurança de se morar em uma cidade com 120 mil habitantes bem tranquila.

Por estas e várias outras questões me identifiquei com Assis. Com sua gente, com a fala tão carregada nos “erres”, música, comida, risadas, economia. Sentia, porém, falta do abraço, tão constante na Bahia, dos dois ou três beijos que damos sempre que vemos um colega ou um amigo. Dos aspectos mais efusivos da cultura baiana quando comparados a certo retraimento da cultura caipira do interior paulista. Ainda assim o que ficaram foram o carinho e o reconhecimento das qualidades e do acolhimento de Assis e de sua gente. Desconhecida a cerca de sete anos atrás, hoje é parte inequívoca de meu coração, de minhas andanças, de minha Memória e de minha História.

4 comentários em “DE REPENTE… ASSIS!- Charles Nascimento de Sá”

  1. Ana Paula F.Santos

    Que linda sua vida contada de uma forma tão simples e encantadora.Vc realmente passou por boas experiências, e essas com certeza, deixou saudade,pq vc fala c muito carinho e gratidão. Parabéns Charles!

  2. Maria Bernadete Souza

    Excelente leitura. Me senti andando pelas ruas de Assis, na Igreja durante a Semana Santa……
    Tudo foi relatado com muito amor, carinho e saudades.

  3. Durval Pereira da França Filho

    Meu caro professor Charles de Sá, fiquei embevecido com o seu mergulho memorialistico nesse recorte de sua vida. Para mim foi uma viagem saudosa, a nossa querida UESC, desde há quase três décadas, você recém saído da adolescência, eu o decano da turma, no final dos quarenta. A memória nos permite essas digressoes. Abraços, meu amigo. Muita saudade.

  4. Que leitura! Adorável, atraente e autêntica!
    Dr.Charles Sá; experiências desafiadoras porém, seu ponto de segurança (neuropercepção) fez de seu desejo, símbolos de amor e perseverança.
    Eu acredito em sonhos, eu acredito demais na comunicação. Acredito demais que as palavras costuram o peito da gente…
    Poderia escrever aqui milhares de adjetivos, mas todos se traduzem em uma palavra, você é: ADMIRÁVEL!..
    Parabéns, parabéns e parabéns!

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