Margarida Fahel oferece ao leitor, nesse seu terceiro livro, um tema necessário e inquietante. Num discurso provocador, pelo sutil trato de um ponto de vista múltiplo, é tecido um suspense de amor, no estilo neo-romântico que marca a sua produção ficcional.
A narrativa foca a vida de Olavo, uma criança deixada aos cuidados de um abrigo de orfandade. O livro apresenta instigante prólogo, onde a autora revela o seu processo criador motivado por sonho/ sonhos e por sensações que passou a ter, sempre que via uma criança. Depois, refere as coincidências e sincronicidades , como ela própria admite, ao tomar conhecimento de histórias reais de crianças abandonadas ou colocadas em orfanatos… E esse bem achado prólogo se “casa” com o epílogo – entrelaçando o real e o ficcional – quando personagens transformam esperança em “realidade”, através do Orfanato Casa da Esperança.
A narrativa ficcional se resolve em fluxos das lembranças dos vários personagens que vão surgindo. Impulsionam a história sentimentos expressados pelos personagens: Amor (Ir Alzira, Olavo, Julieta, Isabel, Joana, Laura, Camila, Alfredo, Jacinta… ) e ódio (Dr Nogueira).
Numa estrutura de círculos concêntricos, que se vão alargando a cada voz, pequenos núcleos acrescentam a narrativa, todos convergindo ao mesmo núcleo dramático central. Sem obediência a um tempo cronológico, a história vai-se compondo como uma colcha de retalhos. A verossimilhança é construída através do crescente suspense, legitimado pelo foco narrativo múltiplo; um intrincado foco que, muitas vezes, leva o leitor a se perguntar: afinal quem está falando?
O ousado processo de repetição de muitos fatos – porque contado por visões diversas – vai, passo a passo, também compondo a história. E digo processo ousado porque, com a estratégia das repetições, a autora corre o risco de cansar o leitor menos atento… É que, a cada fala (personagens diferentes, épocas diferentes, ambiências diferentes, focos narrativos diferentes), é acrescentado mais um fio, somado mais um detalhe, revelado mais um segredo … tudo convergindo para o núcleo central, a história de Olavo. Depois, nas interrupções, o contar e recontar, instalam mistério e provocam o suspense… Além do recontar, semanticamente as repetições são intensificadas pelo discurso romântico na descrição dos personagens…Assim, nos vários capítulos, interrupções da cronologia da mesma história, em outros pequenos núcleos, vão “costurando” os segredos a serem desvendados e alimentando a curiosidade do leitor, fazendo crescer o suspense…
Dessa forma, como a vida, a narrativa vai acontecendo… e a sua estrutura pode ser percebida, até mesmo por reflexões colocadas na boca de personagens, como Joana: “A vida vai desfiando seus fios numa roda que ninguém vê e fusos que somente ela maneja” (p.210). Há um narrador onisciente, pois a história é narrada com ponto de vista em terceira pessoa, mas os segredos que tecem o suspense são revelados pelos personagens em fluxos de consciência ou diálogos diretos e indiretos. Mas pelas pistas do texto, o leitor vai se perguntando: quem conta a narrativa? Não é um personagem privilegiado? “É a voz de Julieta que vem à minha lembrança neste pedaço de sua história […] está em mim, como das muitas vezes que a ouvi, na varanda daquela casa […] datada de 1913.” (p.121). Lembrança de quem? Por vezes, o narrador conclama a atenção do leitor, lembrando Machado de Assis, em Memória Póstumas de Brás Cubas. E fica a dúvida no leitor: quem? É que, vez por outra, o relato deixa escapar uma primeira pessoa, dona do discurso, como na p. 79: “Só nós, eu que lhes conto a história e você, leitor atento, sabemos que era ele”
O capítulo 26, a ceia das verdades, parece amarrar as pontas da história; preenche lacunas… Esse capítulo, além disso, se realiza em metaficção, quando desvenda estratégias do discurso, fazendo a ficção falar do processo ficcional: “E Isabel toma então a palavra, ela, vizinha e amiga. A pintora que, até ali ninguém daquilo sabia, pintava também com as palavras. É esta que até aqui lhes falou incógnita. Mas assim fingirei estar: como se fosse outro o contador.” (p.243). Será? E o repetir, repetir, intriga o leitor. Ele pensa: já conheço esse relato, mas de outro ângulo. E sente-se parte envolvida, aquele que conhece outras perspectivas e as complementa também.
Afinal, a voz que encerra o livro surpreende, quando é uma voz incorpórea… Voz ou energia, pergunta-se o leitor? É mesmo o que sugere o título do capítulo: De onde virá a minha voz? “Decidi eu mesma contar este último capítulo” (p.257) Quem? Margarida Fahel, a autora conhecedora de Jung, a que recebeu os sonhos?, pergunta-se o leitor, curioso. E, outra vez, o autor lembra a estratégia machadiana. Mas essa voz, em primeira pessoa que se anuncia personagem, Julieta, será também a da autora tomada pela energia através do sonho???? A dúvida metafísica instala-se: “Estarei contando de onde me encontro agora?” (p. 257) . E a voz narradora (em outro plano?) levanta questionamentos metaficcionais: “revendo Isabel, minha vizinha de tantos anos, me ocorreu a interrogação: será que é ela que escreve a história?” . A voz-narradora retoma os personagens que contaram as suas versões da história e, suscitando mais uma vez o mistério, refere “uma brisa por ali chegada […] tão leve, tão carinhosa, entra sorrateira, ninguém sabe de onde chegada…” (p.260)… Nesse último capítulo, as dúvidas sobre o narrador parecem se esclarecer quando, por mistérios metafísicos, a voz se declara: “Tudo isso vi e escrevo. Uma fresta de futuro […] ou estou ali, em algum tempo invisível […] por alguma abertura de tempo e espaço?” (p.260). É a fala de Julieta, a mãe que já morreu!! Morreu?? A sua voz estará na autora, através dos sonhos?? Estará em outro plano? Instala-se, agora, uma inquirição metafísica, que faz lembrar Pessoa: “Há metafísica bastante em não pensar em nada/ O que penso eu do mundo?”.
O epílogo retoma o prólogo. Se o prólogo constata, o epílogo mostra ações possíveis de esperança para a casa (ou as casas) que não é verde; mas o título do livro, sutilmente, diz querer a metáfora. E o vento sopra suave… em energia circulante…
O livro finda, mas fica a inquietação filosófica do pensar o mistério do mundo e da vida. Quem somos? Para onde vamos?
Na sutileza do discurso, ocupando-se do ser, Margarida Fahel busca também explicação para o SER, busca explicação para a vida e seus mistérios…
Ilhéus em abril de 2022
Maria de Lourdes Netto Simões