Cântico de Insurgência e Devoção, de Rafael Gama (2023), pela dialética e pela sutil rebelião aos códigos estabelecidos, instiga à leitura. A linguagem poética é realizada em leveza, rapidez e provocações filosóficas. É uma escrita intelectualizada sem ser snobe. Sutilmente, oferece ao leitor links e ganchos que vão desde a história social, das idéias, das questões religiosas às existenciais… Olhares que vão desde a tradição, aos dias atuais – as duas partes em que estrutura o texto: Cânticos de Insurgência; Cânticos de Devoção.
De saída, o título do livro insinua a acepção ao consagrado e instala a reflexão entre a insubordinação e a fé. Mas o texto não fica aí. O olhar alargado pela reflexão filosófica ocorre desde a sua estruturação. E o trato cuidadoso que faz da linguagem imprime a plurissignificação.
A estrutura, bem articulada, contribui para a significação. As epígrafes introdutórias do livro, como também as que abrem e finalizam cada uma das duas partes são mesmo, com muita propriedade, síntese do texto poético.
Os Cânticos de Insurgência, primeira parte do livro, são arrebatadores em observar a dinâmica da vida: “Reverenciou o sagrado / Flertou com o profano / Não satisfeito com a vida condicionada / Olhou para a contradição / E viu que era bom…” (p.16)
E é bem assim: “O risco é tempero à vida!” (p.22). E claro, “Todos estão em busca/ Mesmo os que disso não se dão conta/ Estão a buscar” (p.24). Até mesmo a presença de Spinoza confirma o olhar na forma de subverter a liturgia, buscando, inquieto, em terreiros ou igrejas, o eu lírico diz “O santo me leva!” (p. 39)
E, sempre buscando a essência, faz a crítica dos tempos, com o olhar ao social, à liberdade e ao outro… mas ainda assim, é Errante (p. 34), sempre à procura de si mesmo… insurgente!
Sem afirmar, confirma a busca poética e de vida. Conclui o livro com a forte ideia de compartilhamento, que é marca e presença em todo o texto. “A santidade não almejo, sabedoria é o que desejo/ Coerência é diretriz, o fazer é o caminho/ Trajetória partilhada/ Nunca ação do eu sozinho” (p.59).
O belo texto, realizado em coerência de um pensar poético e límpido, é mesmo “para quem vive sob a constante tensão entre o encantamento e a insurgência” tal como diz a dedicatória que abre o livro.
Tica Simões
Em 11/12/2023