WALKER LUNA – Rilvan Santana

Nunca é demais repetir a frase de William Shakespeare: “Existem mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa fã filosofia…”, para justificar o caminho que me levou ingressar na Academia de Letras de Itabuna – ALITA, com o título acadêmico de membro fundador efetivo, sob a égide patronal de Walker Luna. Far-se-á necessário dizer, a priori, antes mesmo de traçar o caminho que percorri até ALITA e discorrer sobre Walker Luna, que nunca persegui tamanha honraria e não tenho mérito para merecê-la, mas o título me foi concedido por um conjunto de circunstâncias alheias à minha vontade e a generosidade intelectual e grandeza moral de homens da terra do cacau.
Embora apaixonado pela leitura e escrita desde jovem, não sou escritor no sentido lato do termo, um profissional da palavra, um mestre da criatividade da prosa e do verso, um artista da expressão e da forma, mas um escrevinhador de poucos recursos linguísticos e literários, sem talento criativo, sem conhecimento científico ou técnico, mais um aprendiz e um autodidata, que pouco sabe usar a estética da palavra e o conhecimento da ciência.
Aprendi gostar de literatura desde cedo nas feiras-livre com os cantores de cordel. Qual o garoto de passado distante que nunca parou numa praça para ouvir um trovador cantar sua história de trancoso?… Eram contos da carochinha, histórias de príncipes desalmados e princesas socorridas por um herói surgido do nada; reis tiranos e rainhas submissas; bruxas malvadas e homens virando lobisomens, cangaceiros e volantes, padres e mula-sem-cabeça, etc.
Porém, foi na juventude, no colégio, que tomei conhecimento das diversas escolas literárias e seus principais escritores. Como todo estudante, li an passant a literatura portuguesa com Camões, Eça de Queirós, Gil Vicente, Castilho e Fernando Pessoa e os seus heterônimos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos e na literatura brasileira li Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, padre Antônio Vieira, Gonçalves de Magalhães, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e o meu conterrâneo Tobias Barreto, porém, não tomei muito gosto pelos escritores e poetas românticos e do arcadismo, com exceção de Castro Alves e José de Alencar, Gregório de Matos e padre Vieira, mas me amarrei com os escritores e poetas do realismo e a literatura moderna e a literatura contemporânea, que tecerei alguns comentários, a posteriori, de obras e autores.
Conheci a obra de Machado de Assis pelo fim e não pelo começo, isto é, pelo realismo e não pelo romantismo, ao invés de ler Helena, Ressurreição, Crisálidas e Falenas, comecei por Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, intrigou-me e deixou-me chocado o recurso mórbido de um morto contar sua própria história, desde o introdutório presságio, diferente, por isto, peço-lhe licença meu querido leitor, para transcrevê-lo, sem acrescentar nem tirar:
Capítulo I – Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia -peneirava- uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -«Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.» Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, -a filha, um lírio-do-vale, – e… Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática… Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. -Morto! morto! dizia consigo. É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, -a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil… Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma. Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
Achei uma ideia ousada, um método diferente, naquela época, nunca havia lido nada igual, somente muito tempo mais tarde, li “A morte e a morte de Quincas Berro D´Água” de Jorge Amado, um romance mais ou menos parecido na morbidez, mas se em Machado de Assis, o morto conta sua vida e sua morte; no livro de Jorge Amado, toda pantomima é feita pelos amigos de Quincas Berro D´Água, que morre duas vezes, uma no fundo do mar.
Outro livro que me impressionou e me arriscaria tecer alguns comentários, é Dom Casmurro, a começar pela escolha do título, onde o autor se confunde com o personagem, pois se Bento Fernandes Santiago tornou-se um misantropo, Joaquim Maria Machado de Assis não deixava por menos: – mãe doméstica, neto de escravo alforriado, pai operário, mulato, epilético, gago, criado pela madrasta no morro do Livramento vendendo cocada nas escolas, aprendeu francês, inglês e latim por sua conta e risco, depois de adulto, tornou-se arredio, quase antissocial.
A trama de Dom Casmurro é uma trama comum com ingredientes de amor, amizade, traição e vingança – Bentinho deixa Capitu morrer esquecida num país da Europa e cria condições para que seu filho bastardo Ezequiel morresse lá fora, numa expedição científica no Egito -, porém, os traços psicológicos dos personagens são tão fortes, o enredo tão bem articulado, a linguagem fácil, não rebuscada, quase cotidiana, que é difícil não considerar o “Bruxo de Cosme Velho” de Drummond, o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
Frases significativas definem a personalidade dos principais personagens de Dom Casmurro: “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada”, “olhos de ressaca”, “tio Cosme tinha escritório na antiga Rua das Violas, perto do júri… trabalhava no crime”, “José Dias, agregado da família, amava os superlativos, as cortesias que fizesse, vinham antes do cálculo do que da índole”, “prima Justina vivia conosco por favor de minha mãe”, “ a mãe de Capitu, era alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros”, “Escobar, era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos… como tudo” e “Filho de Capitu e Bentinho. Tem o primeiro nome de Escobar. Imitava as pessoas. Vai para Europa com a mãe, estudou antropologia e mais tarde volta ao Brasil para rever o pai. Morre num país da África de febre tifoide.”
Li, afora os autores portugueses, alguns escritores estrangeiros: Kafka, Hemingway, Sidney Sheldon, Morris West, Harold Robbins, Fiódor Dostoiévski, Allan Poe, Saint-Exupéry e outros, que a memória no momento me trai, todavia, nenhum desses autores, é maior do que Machado de Assis, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Drummond, Manuel Bandeira, Jorge Amado etc., etc.
Faz-se necessário esclarecer que a inserção de escolas literárias e autores, nos parágrafos anteriores, antes de definir a minha trajetória até ALITA e a escolha do meu patrono, Walker Luna, não foi para esnobar conhecimento, mas teve o objetivo de demonstrar a minha fragilidade no saber literário, embora seja um leitor contumaz, leio por prazer, não por obrigação de adquirir conhecimento, não sou um experto do assunto do ponto de vista formal e um letrado de relevância.
Uma semana ou duas semanas antes da fundação da Academia de Letras de Itabuna – ALITA, em 19 de abril de 2011, a minha esposa recebeu um telefonema do ilustre juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna, Marcos Bandeira, que desejava falar comigo. Diz a sabedoria popular: “Quem não deve não teme”, porém, recado de autoridade da justiça ou da polícia, que não é de sua intimidade, mesmo que não deva, fica um bichinho cutucando sua mente.
Não o conhecia pessoalmente, não sabia se era gordo ou magro, baixo ou alto, preto ou branco, se era cordato ou arrogante, apenas, o conhecia de nome por ouvir dizer e de algumas notícias de jornal, notadamente, da Vara da Infância e Juventude itabunense, porém, dois ou três dias depois do recado de minha esposa, soube o verdadeiro motivo do ilustre magistrado: a fundação de uma academia de letras.
Encontramos-nos em seu gabinete de trabalho pouco tempo depois. Fui acompanhado de minha filha, como se tratava de cultura, da fundação duma academia de letras, presenteei-lhe com dois livros de minha autoria e marcamos nos encontrar com os futuros membros na Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania – FICC. Tive uma boa impressão do magistrado em nosso primeiro encontro. Notei que não se tratava dum pedante, dum presunçoso da função, mas um humanista de grande saber jurídico e antenado com o mundo.
Aprendi com o saudoso professor Jorge Visca, no curso de psicopedagogia, que uma das dificuldades de aprendizagem é o medo do novo. Jamais faltei em 32 anos no exercício do magistério, um dia de aula, era o primeiro que chegava e o último que deixava a escola, porém, em 19 de abril de 2011, eu fui o último a chegar à FICC. Acho que estava com medo do novo, com medo das novas circunstâncias, da ideia de contribuir para fundação de uma academia de letras, principalmente, com medo de tornar-me membro de uma confraria de intelectuais de escol e fazer feio.
Com exceção do professor e babalorixá Ruy Póvoas e da professora Dinalva Melo, conhecidos de priscas eras, do tempo da FAFI e do juiz Marcos Bandeira que o tinha conhecido recente, não conhecia mais ninguém no dia de fundação da ALITA. A diretoria da academia foi rapidamente definida e como presidente da academia, Dr. Marcos Bandeira e na vice-presidência, a juíza aposentada Dra. Sônia Maron. Os patronos e cadeiras vieram a seguir, por ordem alfabética, fui designado para cadeira nº. 09, e, escolhi para patrono: Joaquim Maria Machado de Assis.
Mas, na reunião subsequente, ainda no processo de arrumação dos membros efetivos e suplentes, um diálogo subjacente entre o presidente da ALITA Marcos Bandeira e o diretor de biblioteca, o escritor Cyro de Mattos, me chamou a atenção:
– Ele aceitou?
-Sim, mas com uma condição…
-Qual a condição!?
-Machado de Assis como patrono!
-Mas… Machado… já foi escolhido… – o presidente embaraçado…
A conversa foi destrinchada logo depois, é que o jornalista e escritor Hélio Pólvora só aceitaria ser membro efetivo da novata academia de letras itabunense se o seu patrono fosse Machado de Assis. Não deixei que a conversa se estendesse, incontinenti, abri mão do patrono que eu escolhi, não quis ser empecilho, quedei-me diante do prestígio intelectual do escritor Hélio Pólvora, que além de itabunense, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), da Academia de Letras da Bahia (ALB), e da Academia de Letras de Ilhéus (ALI), e, publicado em vários países estrangeiros, aí, fiquei na casa do sem jeito, o jeito foi ficar com Walker Luna.
Nunca havia lido uma linha sobre Walker Luna, não conhecia sua obra, não sabia se ele era autor de prosa ou poesia, ou, ambos, eu não sabia se ele havia nascido na Bahia, no Pará, ou, na Cochinchina, mas não manifestei a minha ignorância aos demais confrades, resignei-me com o ensinamento de Paulo Freire: “Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa, todos nós ignoramos alguma coisa”. Voltei para casa e consultei o “Google”, o pai dos burros e não o “Aurélio”, mas não encontrei nada ou quase nada de Walker Luna, agora, meu patrono.
Recorri aos amigos, Antônio Lopes e Eglê, eles enviaram por e-mail algum material, porém, incipiente para o resumo biográfico do patrono, um mês depois, recebi um e-mail do filho de Walker Luna, através do presidente Marcos Bandeira, parabenizando-me pela homenagem que tinha prestado ao seu pai, com a promessa de disponibilizar o material necessário para se elaborar uma descrição mais completa e colocá-la no quadro de patrono, infelizmente, foi tudo.
Walker Luna escreveu pouco, a exemplo de Castro Alves, Álvares de Azevedo, Firmino Rocha, Valdelice Pinheiro e Helena Borborema. Os seus livros: Esses seres de mim (1969), Companheiro (1979), Estação dos pés (1983) e Um ângulo entre montanhas (1985), são no dizer de Telmo Padilha: “… de elaboradíssima tessitura, são personalíssimos e possuem uma ductilidade rara entre os seus companheiros”.
Homem arredio, antissocial, sofrido, se preocupava mais com a qualidade de sua poesia do que quantidade de editoração, ele mereceu de Assis Brasil e de seu conterrâneo Cyro de Mattos, sinceros elogios, para Cyro de Mattos, a poesia de Walker Luna “possui homogeneidade temática e formal, seus poemas interligam-se por um fio narrativo, um complementando o outro, atingindo níveis vertiginosos, compartilhando perplexidade, angústias, emoção que vibra o ontem e o hoje em sua dicção solitárias, ao mesmo tempo em que mistifica imagens.”
Nascido em Itabuna, em 6 de agosto de 1925, começou o curso primário com Dona Etelvina de Andrade e o terminou no Colégio Belfor Saraiva, aos 14 anos, mudou-se para Salvador e concluiu o curso secundário na colégio do professor Hugo Baltazar. Conta-se que não fez curso superior e aos 19 anos radicou-se no Rio de Janeiro, onde começou publicar suas poesias.
Não obstante a escassez de referências bibliográficas do poeta itabunense, sua falta de raízes da região do cacau, faz-se necessário transcrever (abaixo), na íntegra, o seu poema “A cidade Perdida”, extraída do livro: “Um ângulo entre montanhas, ano 1985”, quando o poeta retorna para sua terra natal.

A CIDADE PERDIDA
Walker Luna

Minha cidade estendeu-se
Alargou suas redondezas
Multiplicada em distância
Insatisfeita
Subiu
Buscando mais horizontes
e perdeu-se dentro dela.
Volto hoje a procurá-la.
Transfiguraram-se os jardins
E os encantos do seu rio
Tomaram novas feições.
Até o céu era outro,
ou eram outros os meus olhos?
Sob a ação de tanto tempo
Anoiteceu em si mesma
E confundiu seus vestígios
Entre as formas
De mais gritos.
Agora
É só pensamento
– minha cidade de outrora.

Além de correção de técnica e forma, o poeta expressa sensibilidade nostálgica, não reconhece mais a cidade pura de outrora, que nasceu e viveu parte de sua adolescência. Agora, atingida pelos fumos de desenvolvimento e progresso: “Insatisfeita subiu”. As imagens do passado não são mais as mesmas… O rio, o céu e os jardins perderam os seus encantos ou foi ele que perdeu o encanto do olhar. Hoje, a cidade só pensa em crescer e tudo ocorreu sob a ação inflexível do tempo, então, o poeta descobre que a Itabuna de outrora não mais existe: ”É só pensamento, minha cidade de outrora”.
Hoje, estou convencido que Walker Luna alçou vôos tão alto na poesia quanto Machado de Assis na prosa, por isto, eu o aceitei como meu patrono!…

Autor: Rilvan Batista de Santana
Itabuna, 26 de novembro de 2012.

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