AULA INAUGURAL[1]
Ruy Póvoas[2]
Senhora e Senhores
que compõem o Corpo Administrativo da UESC, do mais alto escalão a seus auxiliares,
Demais servidores,
Professoras e Professores aqui presentes,
Estudantes e estudiosos,
Amigos desde os começos,
Amigos de agora.
Sejamos todos nós bem-vindos com a graça de Deus.
Sinto-me na obrigação inicial de fazer, pelo menos, três considerações.
A primeira se refere ao ato de agradecer, pois compreendo e tenho afirmado em diversas ocasiões: quem não agradece o que recebeu não é digno do recebido. Por isso em voz alta, brado: Obrigado pela generosidade do convite e pela confiança na minha palavra.
A segunda é a de refirmar que esta também é uma casa minha e nela, passei trinta e oito anos: os melhores anos de minha vida. Nela, estudei e continuo estudando a vida. E nela e com ela, busco entender e aceitar a morte.
A terceira é tão importante quanto as demais. Fui convidado pela Reitoria da UESC, em contato pelo Magnífico Reitor Alessandro Fernandes de Santana, para proferir a aula inaugural deste semestre. A temática seria sobre Cultura, Diversidade e Transformação Social: os caminhos da Universidade.
Então, dei-me a cogitar. E como sempre faço, deixei meu sentimento também participar das reflexões, ao me preparar para o encontro com vocês. E de repente, me esbarro com a palavra. E por que com a palavra? Sem ela, não direi a vocês coisa alguma. Sem ela, vocês também não entenderão o que devo enunciar. E o que me aparece em primeiro lugar? Dizeres bíblicos no Livro da Sabedoria, 18: 14-15:
Quando um profundo silêncio
envolvia todas as coisas
e a noite estava a meio de seu curso,
do alto do céu,
a vossa palavra onipotente,
deixando vosso trono real,
lançou-se no meio da terra condenada.
Não temam, pois não pretendo fazer uma preleção religiosa, embora eu seja um deísta. Almejo, porém, começar minhas cogitações, para as quais se sintam todos convidados a acompanhar, também pelas vias da reflexão poética. Assim me conduzo, por considerar muito árido caminhar apenas pelas estradas apontadas pela Ciência, para uma compreensão mais alargada do que seja a palavra. Assim o faço porque considero as palavras que intitulam esta minha fala, Cultura, Diversidade e Transformação Social, muito mais do que desafiadoras para um entendimento mais alargado nas possíveis interpretações semânticas.
Pois bem; já devo ter dito isto em algum lugar, em alguma ocasião. Sinto, porém, que não seja demais dizer outra vez. Cogitemos sobre a palavra. Creio que vão gostar:
Fica a face apedrejada
pela palavra proferida,
mas a boca apedrejante
fica também ferida
E muito mais dilacerada
fica a boca emudecida,
por não dizer ao outro
as dores de sua ferida.
Muito mais ferida ainda
fica a boca equivocada
de quem quis dizer “te amo”
e o outro ouviu “não és nada”.
Mais dolorida é a boca
de palavra enferrujada,
que ao beijar o amor,
fere com dura espada.
Muito mais que tudo isso
é a boca encalacrada,
uma língua emudecida
com a palavra grudada.
A ofensa, a palavra dura,
a mágoa, a incerteza,
se são ditas, são sabidas
e propiciam a defesa.
Mas a palavra afiada
é arma de muito perigo
e quem dela fizer uso
pode matar o amigo.
Se o verso, por si só, não for perfeitamente suficiente, então, tomemos a prosa para completar o que porventura fique faltando:
A palavra escrita. Ah, esta senhora que possui tanta roupa; que, na maioria das vezes, ignora a existência da fala; que, revestida de prepotência e arrogância, humilha e condena os que dela uso não sabem fazer, produzindo artefatos que a fala se nega a reproduzir.
E a palavra dos humanos? Palavra? Que palavra? A de rei, que não volta atrás? A do orador, que amplia o sofrimento do ouvinte, ansioso para ir embora? A amarga, que dilacera o coração? A doce, que envolve os amantes igual canção? A do mentiroso, que não passa de menosprezo à inteligência do ouvinte? A engraçada, que provoca o riso? A da Lei, que salta do poderoso trono real da Justiça dos homens? A do traído, que fica silenciada em seu sentimento, latejando na cabeça? A encalacrada no engano e que só é expressa depois de um “ah, se eu soubesse”? A do vingador, resumida num monossílabo: “Viu”? A do sabido, que sempre declara: “Não te avisei?” A do poderoso, com o dedo em riste, pronunciando “Calado!”? A palavra dada, que deveria sempre ser vida empenhada? A amargurada, de quem vê o corpo da pessoa amada descer ao túmulo? Ou a de quem é obrigado a dizer adeus ao amor de sua vida? A que traduz a fala do oráculo, revelando os segredos do amanhã? A do acusado injustamente, que pronuncia até morrer: “Sou inocente!”? A que fica nos lábios de quem diz adeus, querendo ir também, sem poder? A de quem se alegra com a chegada do outro e proclama: “Seja bem-vindo!”? Aquela, em estado de dormência, no dicionário, à espera de quem dela se aposse? A sem efeito, resultante do pensamento equivocado? A manuscrita, que revela traços da personalidade de quem a escreveu? A digitada no computador, que poderá perder-se a qualquer instante? A que não foi escutada, por que a indiferença e o barulho do mundo não deixaram? A negada, porque o rancor e o ódio não permitiram? A que se faz intitulativo? A preconceituosa, que cava abismos e delimita fronteiras? A que se faz comum, nomeando os seres da mesma espécie? A que se faz sangue e habita entre nós, no trânsito, no asfalto, no assalto, no tráfico, nos presídios, nas esquinas? A expressa em diminutivo, que traduz carinho, afeto e bem-querer? Ou aquela que, em diminutivo, diminui o valor de quem por ela é identificado? A que anuncia uma bênção ou a que provoca destruição? A do sacerdote que transforma pão em carne e vinho em sangue? A trocada pelo lapso de memória? A dita fora de hora, que deixa o falante em maus lençóis? A apagada pelo esquecimento? A maldita, que provoca transtornos? A falsa, agora travestida de fake new? A recriada pela intuição do artista? A que falta, justamente no momento da conclusão do pensamento de quem anuncia “Eu me perdi”? A de quem pede socorro para sair da aflição? A de domínio público, que é usada sem mais se saber seu real significado? A descartada, por que o costume foi arquivado? A nova, que vem na onda da moda? A obscena e, por isso mesmo, proibida? A do primeiro amor, gravada para sempre? A denunciadora de que a existência terminou? A que informa ao mundo que duas pessoas resolveram se unir? A do enjeitado, quando sente a alma dilacerada? A do condenado, que perdeu a última esperança de liberdade? A do descendente quando vê o nome de seu ancestral fundador ser apagado da História? A da mulher, que anuncia: “Estou grávida”? A do homem, que se extasia, informando: “Vou ser pai”? Aquela última no bilhete do suicida? A emprestada de outro idioma, por que iguais aos homens, os idiomas nem sempre são suficientes para dizer tudo? Ah, a palavra e seu efeito!
Peguemos, porém, o dicionário. Cumpre nos aproximarmos daquelas palavras desafiadoras: Cultura, Diversidade e Transformação Social: os caminhos da Universidade. Então, me ocorre anunciar: entre todas as pessoas aqui presentes, aquela que mais souber sobre o desafio lançado por esta esfinge levante a mão.
Ninguém levantou? Eu também não levantarei. Se soubéssemos, não seria necessária esta aula inaugural.
Pois bem; entre tantas definições possíveis, entendemos por Cultura qualquer transformação ou mudança que os humanos produzam na Natureza. Ora, inventariar o que esta nossa Universidade tem produzido, em tal sentido, na Natureza, no Sul da Bahia, certamente se constituirá tarefa gigantesca. Até os nossos sonhos e propósitos em relação ao futuro são para continuar a ação construtiva do amanhã que esperamos mudado, transformado, repleto de luzes que tentamos acender agora. Afinal, todas as pessoas aqui presentes, aqui estão porque desejam um mundo melhor. Não apenas para si próprias, mas também para os nossos descendentes.
E seria de bom alvitre que a instituição fizesse tal inventário objetivo, coeso, conciso, e disponibilizasse socialmente, para despertar os olhos de quem aqui aporta pela primeira vez e se sinta convidado para participar de nossas tarefas sempre gigantescas.
Quanto à Diversidade, a cogitação semântica sobre tal item lexical nos dará muito trabalho. Percebe-se, no primeiro relance, que desde sempre no trajeto histórico de nosso povo, nossa gente, a nossa cultura foi atingida por inúmeros equívocos. O primeiro deles, cabe aos europeus, que fingiram descobrir o que nunca esteve encoberto. O segundo refere-se ao Brasil já ser povoado antes do nosso continente ser encontrado, ou achado como querem alguns. O terceiro é que, por incompetência tecnológica, a humanidade, antes de inventar a máquina, fez dos braços humanos máquina para enriquecer apenas uma classe privilegiada. E novos povos foram trazidos para o Brasil, na fatídica finalidade. O quarto foi o simulacro de império que se imaginou, nos idos de 1.808.
Acontece que tanto os colonizadores quanto os que já habitavam no Brasil e os trazidos de África e reduzidos à execrável condição de escravo eram seres humanos. Foi inevitável que a força compulsiva que nos leva a nos reproduzir atuasse sobre todos, e a proliferação, de forma consentida ou não, aconteceu em disparada. O resultado disso foi a miscigenação. Do ponto de vista do domínio de tecnologias e de distribuição de riquezas, chegamos à triste realidade de poucos com muito e muitos sem nada. Principalmente, quando a separação, desde sempre, se fundamentou no fenótipo, na etnia, na cor da pele, no berço, no gênero, na orientação sexual.
Tudo isso, além de outros fatores não apontados aqui, resultou no que denominamos Diversidade. Creio, portanto, que todas as pessoas militantes nesta nossa casa, de alguma maneira, estejam sempre convocadas para a luta. Somente assim, alargaremos o conhecimento, através de mudanças e transformações operadas e operativas, para sabermos lidar com toda e qualquer espécie de diversidade, marca fundamental de toda a sociedade brasileira.
Então? Universidade não é apenas um local onde pessoas se juntam, cada qual cuidando de si. Voltemos nossas vistas para a Mãe Natureza, a fim de desenvolvermos uma cultura caracterizada pela mudança e pela transformação, sem desatinos de aviltar o ambiente. E antes que nossos defensivos agrícolas dizimem todos os insetos, aprendamos com as abelhas, formigas e maribondos o que é coletividade. Aprendamos a mudar e transformar, sem vilipendiar o nosso entorno, no verdadeiro sentido daquele brado: um por todos e todos por um. Quimera? Delírio? Ai da sociedade que não se der à imaginação. A tal respeito, assim disse Gaston Bachelard: “A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.”
Quanto à Diversidade, é necessário ensinar, aprender e praticar o profundo respeito à maneira de ser do outro. Simples, assim. E se vocês descobrirem outro caminho, não esqueçam de me ensinar.
Percebemos, então, que a Transformação não pode ser entendida apenas como causa. Se não aprendermos considerá-la também como consequência, ficaremos a vida toda aqui, malhando em ferro frio. Façamos o que deve ser feito, e a Transformação virá a reboque,
Quanto aos caminhos da Universidade, visitemos o célebre dizer do povo maori, em todo o simbolismo semântico que suas palavras encerram:
“Volta tua face para o sol e terás as sombras caídas atrás de ti.”
Aqui, portanto, vamos estudar muito; vamos pesquisar para valer; vamos fazer extensão com denodo, dedicação e conhecimento; vamos administrar com competência e máximo desempenho; e, principalmente, vamos ouvir a população à qual queremos servir, em suas reais demandas.
É necessário que não nos arvoremos a saber tudo sobre a população, sem irmos até ela. Não fiquemos acantonados aqui, acreditando de maneira arrogante e prepotente, desconectados do nosso entorno e de nossa área de abrangência, que iremos promover mudanças e transformações lá fora.
E façamos tal busca sempre calcados em um diálogo aberto, franco, de quem deseja muito mais aprender do que ensinar. E que tal aprendizado sempre tome como roteiro os versos de Valdelice Pinheiro que já nos ensinou o real e verdadeiro significado da palavra UNIVERSIDADE.
Muito melhor do que eu possa dizer, nossa amada e saudosa Valdelice Pinheiro, sob forma de um poema, traçou um mapa e desenhou os caminhos, poetizando magistralmente, em magníficos versos. Lá fora, no início de nosso campus, há um monumento em que o referido poema se encontra grafado, como se fosse um eterno testamento. Quem tiver olhos leia; quem tiver ouvidos ouça. E quem sentir dificuldade em lidar com as palavras poéticas que abra os portões e adentre o oceano de sua própria sensibilidade. Não há humanos insensíveis; há, porém, humanos com a sensibilidade desativada. Ouçamos Valdelice:
POEMA DE PRIMAVERA E DE PAZ
Este é um campo de paz.
Aqui, de todos os dedos
brotarão sementes,
e flores próximas
anunciarão novos olhos,
novos passos,
nova luz
e uma ternura nova, sobre o mundo.
Aqui, numa canção de amor,
todos os braços
cantarão o calor
de todos os abraços.
E na boca,
e nas mãos,
a flor nascida,
o beijo irmão
da palavra que sabe,
o gesto leite do poder que cria.
Não passemos diante de tal testamento, com a sensibilidade desativada. Se for assim será priorizar o esquecimento e o descaso
Aula? Aula? Aula? Alguns minutos de enunciação e o resto da vida de reflexão, da parte de quem ensina e da parte de quem aprende. E do que resta, a imaginação, criadora e imaginante, fará através da ação e “da palavra que sabe”.
Assim, poderemos vencer o hedonismo caricata, a indiferença avassaladora e a banalização exacerbada que há muitos anos dominam nosso imaginário. Vencer tais forças retrógradas exige coragem.
Mas é isso: jamais haverá alegria e realização onde a coragem já não fez morada.
Muito obrigado por quererem me ouvir e confiarem na minha palavra.
Ruy Póvoas
UESC, 14/8/23
[1] Fala proferida na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, no início do segundo semestre letivo, em 14 de junho de 2023.
[2] Babalorixá do Ilê Axé Ijexá, Mestre em Letras Vernáculas (UFRJ), Doutor Honoris Causa pela UESC, ficcionista e poeta com inúmeras produções editadas. ajalah@uol.com.br