O LEITE DE MALU- Marcos Bandeira

O sol ainda brilhava no crepúsculo, quando Luan resolveu ligar para sua mãe Margarida, funcionária pública, que estava saindo do trabalho na prefeitura municipal de Albedaran. O motivo do telefonema era para que sua mãe comprasse o leite de Malu que havia acabado. Luan estava em casa sozinho tomando conta de Malu, sua filha com apenas dois anos de idade, e também se recuperava de uma fratura na tíbia, provocada por uma disputa de bola num jogo de futebol que ainda o obrigava a andar com o auxílio de uma muleta.

O dia escurecia rapidamente e um vento frio penetrava no quarto de Luan, situado no 1º andar de um prédio antigo, com uma garagem na parte térrea, e ao lado uma escada que levava ao 1º pavimento, onde Luan morava com a mãe, a avó e uma filha, fruto de um romance passageiro.

Luan era um jovem branco, com estatura mediana, vinte e dois anos de idade, estudava Direito e trabalhava como publicitário na agência “Midia em Ação” situada no centro da cidade. Sua mãe, Margarida, era divorciada, trabalhava na prefeitura havia mais de vinte e cinco anos e possuía cinquenta anos de idade. Ela mantinha uma relação muito afetiva com Luan, seu único filho. A avó de Luan, com os cabelos totalmente grisalhos, já tinha setenta anos de idade e adorava o neto, com quem sempre conversava e contava histórias. Agora, com a chegada de Malu, todas as atenções se voltaram  para a pequena.

O telefone continuava chamando. A campainha tocava, chamava, chamava, mas sua mãe não atendia. Certamente estava no silencioso. Depois de sucessivas chamadas Luan acabou desistindo..

Esse momento foi crucial, pois se a mãe de Luan tivesse atendido ao telefone, certamente os fatos se desenrolariam de forma diferente. Luan pensava: “poxa, por que mãe não atendeu? Daqui a pouco vai fechar o mercado e Malu não pode ficar sem leite”. Luan estava angustiado, pois estava sozinho em casa com sua filha e sua avó também havia saído. A noite já se precipitava e sua mãe não chegava.

Decorridas mais de duas horas, Margarida, visivelmente cansada, chegou em casa e pegou sua neta Malu no colo. Nesse momento, Luan se dirigiu a ela e perguntou: o que foi que houve que a senhora não atendeu ao meu chamado de telefone? Liguei várias vezes. Era para comprar o leite de Malu!

Margarida respondeu: Oh, meu filho me perdoe! Deixei o celular no silencioso no carro e fui fazer umas compras. Estou vendo agora que tem várias chamadas, me perdoe meu filho. Vixe, meu filho, então eu vou comprar!

Luan retrucou: de jeito nenhum! A senhora está exausta, e eu já estou bem; posso perfeitamente dirigir e ir até no Mercado Popular, aqui pertinho, comprar o leite de Malu.

Margarida não insistiu. Estava muito cansada. Havia trabalhado duramente o dia todo. De qualquer forma, o mercado fica aqui perto.  Luan pegou as chaves do carro e com o auxílio das muletas passou a descer as escadas em direção ao veículo.

Acomodou-se na poltrona do motorista e ligou a ignição, deixando as muletas na poltrona do carona. Seguiu em direção ao Supermercado Popular, que ficava situado no mesmo bairro onde morava, Palestina.

Eram 19h45 e o Supermercado Popular já estava com as portas semicerradas. Luan taxiava nas imediações para estacionar o veículo. Nesse mesmo momento, uma viatura, com dois policiais militares trafegava pelo bairro Palestina, quando recebeu uma informação de que naquelas imediações havia dois elementos suspeitos num veículo HB20 branco, coincidentemente, a mesma marca e cor do veículo guiado por Luan.

Na vida acontece coisas, que muitas vezes encontram alguma explicação num detalhe, ou numa terrível coincidência, quando o vento do destino muda completamente a vida das pessoas. A vida de Luan estava marcada pelo destino. Ali, naquele momento, tudo poderia mudar… e mudou!

A viatura se aproxima do Mercado Popular e os dois policiais observam um veículo Hb20 parado em frente ao estabelecimento, que já estava fechando. Já eram 20h a noite estava fria. A rua, iluminada apenas por um poste distante cerca de dez metros, trazia pouca iluminação para o local, que estava quase deserto, à exceção de alguns transeuntes que passavam indo para suas casas.

Luan saiu do Mercado, caminhando com o auxílio das muletas e segurando o leite de Malu, dirigiu-se ao seu veículo, quando foi abordado pelo policial Antônio Presépio, alto, negro, com quarenta e dois anos de idade, conhecido matador, frio e calculista, que já contava à época mais de trinta mortes nas costas, entretanto, nunca fora punido. Diz-se que tem um coronel padrinho que o protege. As famílias das vítimas também, com medo de morrer, acabavam silenciando.

Antônio Presépio abordou Luan e com a arma na mão perguntou: cadê o seu comparsa? Vamos, rapaz, diga logo, senão você vai morrer!

Luan, apoiando-se nas muletas, responde: eu não tenho nenhum comparsa. Eu vim aqui para comprar o leite de minha filha. E mostrava a lata de leite.

Antônio Presépio, bastante irado, ordenou: deixe de conversa mole, rapaz. Entre aí no veículo e me dê as chaves. Luan entregou as chaves e ficou do lado do carona. Antônio Presépio dirigiu o veículo, enquanto o outro colega, Luiz, dirigia a viatura. Os veículos foram em direção à Ponte da Ilha, distrito rural, distante mais de 6 km da sede, com apenas uma ruela no meio do matagal na escuridão daquela noite fria.

Luan não estava entendendo nada, e pensava consigo mesmo:” esses caras vão me matar”!

Voltou a falar para Presépio: eu não fiz nada. Por que vocês estão me trazendo para aqui? Não deveria ser para a Delegacia?

Antônio Presépio, então falou: “Vamos ter uma conversinha primeiro!”

Os veículos pararam, numa parte da estrada, distante um pouco do povoado, e Antônio Presépio arrancou violentamente Luan do veículo e o empurrou com muleta e tudo no chão, dizendo em alto som: “agora, você vai me dizer quem estava com você no seu carro. Vamos, rapaz, diga logo, senão você vai morrer aqui!

Luan voltou a dizer que o veículo era de sua mãe e que estava sozinho no carro, mas Antônio Presépio não acreditava no que ele falava e passou a esmurrar Luan, que pulava com um pé só, segurando a muleta, caindo no chão novamente.

Antônio Presépio tentava puxar as unhas de Luan com um alicate. Luan começou a chorar de dor, quando recebeu um golpe no pescoço e caiu novamente no chão.

Antônio Presépio continuava a torturar Luan, Luiz Santos, seu colega, manuseava o celular, quando, de repente, recebeu uma mensagem de Whats App informando sobre a abordagem que acontecera em frente ao supermercado Popular.

Enquanto isso acontecia na Ponte da Ilha, um transeunte que passava pela rua do Supermercado Popular, no momento em que Luan era abordado pelos policiais, passou na casa de Luan e avisou à mãe dele: “A polícia prendeu Luan em frente ao Supermercado Popular. Acho que o levou para a Delegacia”.

Margarida, bastante nervosa, entrou em contato com sua amiga Cecília, que é investigadora policial e trabalha na Polícia Civil, informando sobre a prisão de Luan. Inicialmente achou que fosse porque Luan estava sem a carteira de habilitação, já que ele pegou o veículo apenas para comprar o leite de Malu. Imediatamente, pegou um uber e foi para a Delegacia de Albedaran, enquanto Cecília colocava uma mensagem pelo Whats App no grupo de policiais militares comunicando a prisão de Luan. Foi essa a mensagem que Luiz Santos, parceiro de Antônio Presépio, recebeu em seu celular.

Antônio Presépio se esmerava nas espécies de torturas cometidas contra Luan, que chorava copiosamente, apoiando-se nas muletas. No local, apenas o barulho provocado pelas rãs e a escuridão sem fim. Antônio Presépio pegou uma pistola 40 e mandou Luan segurá-la. Luan, com muito medo e chorando, segurou a pistola. Neste momento, Luan pensou: “Eles vão me matar. Agora, tenho certeza. Depois vão justificar que eu estava portando uma arma e resisti à prisão”.

Nesse momento, Luiz Santos chamou Antônio Presépio e disse, mostrando o celular: “olhe aqui. Já sabem que estamos com o garoto. Temos que levá-lo para a Delegacia. Agora, temos que encontrar uma justificativa. Antônio Presépio se dirigiu até a viatura e, na parte de trás do veículo, dentro de uma sacola, pegou um pacote de cocaína, com uma embalagem vermelha com alguns detalhes, que havia sido apreendida dois dias antes, no centro de Albedaran. Havia várias sacos de cocaína, mas pegou apenas um deles. Saiu da viatura e foi direto para o veículo de Luan onde plantou a droga.

Antônio Presépio tinha o modus operandi já conhecido, de plantar drogas em veículos e imóveis de pessoas perseguidas pela Polícia. Na semana passada, ele adentrou numa edifício no centro da cidade, onde foi surpreendido e filmado plantando drogas na casa do suspeito, que fora preso mas logo liberado pelo juiz, após ter acesso a essas imagens. Apesar disso, ele continuava se escudando na farda da Polícia e protegido por pessoas poderosas da própria Polícia, onde tinha licença para matar. Estava certo da impunidade e assim, continuava sua caminhada criminosa, maculando a boa imagem da briosa corporação.

Antônio Presépio pegou Luan pela gola da camisa e violentamente o jogou no banco de trás da viatura, e voltou-se para o veículo de Luan, guiando-o em direção à Delegacia.

Margarida estava muito nervosa e a toda hora olhava o relógio. Já estava na Delegacia há mais de uma hora e nada de notícia de seu filho. À medida que o tempo passava, mais aumentava a sua apreensão. Finalmente, estava chegando uma viatura. Margarida viu Luan no banco de trás, algemado. Logo atrás da viatura chegava também o seu veículo, guiado por outro policial.

Na Delegacia, Antônio Presépio apresentou Luan e a droga – um saco de cocaína – ao Delegado, dizendo: É um flagrante de tráfico de drogas. Pegamos essa droga no veículo dele, Dra.

Luan, chorava e disse: Não é verdade! Essa droga não é minha. Eu não mexo com isso! Antônio Presépio retrucou: cale a boca, vagabundo, Você está preso!

Margarida tentou entrar na sala da Delegacia para ver seu filho! O Delegado permitiu e ela procurou saber o que havia acontecido. Luan, apenas chorava e dizia que não fez nada.

Não houve jeito. Luan foi preso e flagrado por tráfico de droga. Após ser ouvido, foi encaminhado para o Presídio de Itabuna. A mídia, principalmente, a sensacionalista, proclamava aos quatros ventos: Polícia prende o estudante de Direito, Luan, traficante de drogas. O traficante estava portando um kg de cocaína e foi conduzido para o Presidio de Itabuna.

E assim, o destino se encarregou de mudar a vida de Luan. Um jovem estudante de Direito, que trabalhava com publicidade, e que nunca havia se envolvido com drogas ou qualquer crime. Seu único hobby era jogar futebol. Foi jogando futebol que fraturou a tíbia, de cuja lesão estava se recuperando. Agora, o estudante, trabalhador e pai de uma menina de dois anos, era traficante e estava preso! A segunda notícia não importa, ninguém lembra. A pecha de um jovem envolvido com a droga é que fica.

Luan já estava preso havia três meses e não conseguia recuperar sua liberdade. A mãe de Luan então contratou um advogado experiente, Dr. Filgueiras, criminalista, cuja primeira atitude foi visitar o cliente no Presídio. Lá chegando, depois de passar pela fiscalização dos agentes, dirigiu-se ao parlatório, quando conheceu e conversou com Luan. Este disse, com lágrimas nos olhos: “Doutor, acredite em mim. Sou inocente, estou limpo. Eles plantaram essa droga no carro de minha mãe. Tudo não passou de 10 minutos, quando saí de casa e fui abordado por esses policiais.

Dr. Filgueiras respondeu: Eu acredito em você. É por isso que estou aqui. Agora, eu quero que você me fale tudo o que aconteceu.

Luan passou a contar com detalhes toda a história, até que o Dr. Filgueiras se desse por satisfeito. Já ia se retirar, quando Luan disse: “Espere um pouco, Dr. Por favor me tire daqui. Não é só por mim não. É por minha mãe e minha avó, que sofrem muito por me verem aqui, além de passar por muitas humilhações. Por favor, Dr. me ajude! Sensibilizado com a ponderação do garoto, disse o seguinte: Vou lutar por você, vamos ver o que podemos fazer. Um abraço.

Dr. Filgueiras ingressou com um pedido de revogação de preventiva e juntou provas muito fortes, inclusive provou que a droga plantada possuía o mesmo invólucro das drogas que foram apreendidas na casa de um traficante pelo mesmo Antônio Presépio, inclusive com as imagens de outra abordagem feita pelo referido policial, quando foi filmado plantando a droga no apartamento de um perseguido pela Polícia.

Próximo do Natal, ainda na rua, Dr.Filgueiras recebeu a notícia de que o juiz havia revogado a prisão de Luan. No escritório de Dr. Filgueiras, todos: advogado, estagiário e funcionários, estavam vibrando com a soltura do rapaz, pois se tratava de celebrar a vitória de um inocente.

Dias felizes. Margarida apareceu com Luan para conversar com Dr. Filgueiras. Luan narrou toda a história. Disse que voltaria à sua vida normal, retornando à Faculdade de Direito. O Dr. Filgueiras recomendou cuidados, no sentido de evitar o máximo de sair de casa. E assim aconteceu, Luan voltou para o aconchego de seu lar, abraçando a sua filhinha Malu, que já estava sentindo falta do pai. Vida que agora, seguia normal. E uma injustiça reparada!

O tempo passou e Luan estava muito empolgado com o curso de Direito, onde tirava boas notas e era sempre elogiado pelos professores. Transcorrido quase quatro meses depois que saiu do cárcere, numa noite de abril, Luan pegou sua moto e foi para a Faculdade estudar. Nesse dia ele iria fazer uma avaliação. E assim o fez. O professor despediu-se dele que foi para o pátio da faculdade e ligou sua moto para retornar à sua casa.

Os ventos fortes do destino ainda não haviam se acalmado. Luan, no instante em que ligou a moto de volta para casa não sabia o que lhe esperava. Só não via a hora de chegar em casa, pegar Malu no colo e depois dormir a seu lado. A moto saiu da faculdade. A noite já estava mais fria, pois caía uma chuva fina. Uma moto, a escuridão, o Terminal Rodoviário e um tiro no escuro. A moto se desgovernou e caiu. Havia um corpo estendido no chão. Luan no chão enquanto o sangue escorria. As pessoas se aglomeravam em torno do corpo que agonizava. Alguns tiravam fotos. Vida interrompida!

Adeus Malu, adeus sonhos dourados, adeus o projeto de ser advogado um dia, adeus minha mãe, adeus minha avó! Adeus vida cruel e estúpida! Fui engolido pelo destino. Antônio Presépio realizou o seu desejo de me expulsar deste mundo e aumentou ainda mais o número de suas vítimas!

O celular encontrado com Luan constavam mensagens dando conta de que Presépio estava atrás dele. Ele havia passado uma mensagem para o pai, que era separado da mãe e morava no Rio de Janeiro, informando isso e pediu para que o pai não informasse à mãe para não preocupá-la. Ele sabia que Presépio estava lhe perseguindo, mas não acreditava que ele fosse capaz de lhe matar.

Infelizmente, nada poderia ser feito. A mãe procurou o Ministério Público para denunciar, mas a investigação não evoluiu. Presépio continua praticando seus crimes contra pessoas inocentes, escudado e protegido pela sua farda! Vida que segue… e vidas que continuam sendo interrompidas!

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