A Garota Ideal- Afeto, empatia e cura
*Por Raquel Rocha
Dirigido por Craig Gillespie, Lars and the Real Girl, em português: A Garota Ideal de 2007, é uma obra delicada, inesperada e humana. Estrelado por Ryan Gosling em uma das performances mais sutis e comoventes de sua carreira, o filme nos convida a mergulhar nos silêncios e nas dores de um personagem cuja fantasia não é fuga, mas sobrevivência.
A história parte de uma premissa que, a princípio, parece absurda: Lars, um jovem tímido e retraído, apresenta à família sua nova namorada, Bianca, uma boneca inflável adquirida pela internet. O que poderia facilmente descambar para a comédia grotesca ou para o humor fácil, se transforma, sob a direção sensível de Gillespie e o roteiro inteligente de Nancy Oliver, em uma fábula moderna sobre solidão, saúde mental, vínculo e, sobretudo, empatia.
Não sabemos se Lars acredita genuinamente que Bianca é real. Talvez ele tenha algum nível de consciência de que Bianca não é real, um tipo de insight fragmentado, mas prefere manter a ilusão como uma forma de se proteger emocionalmente. Bianca simboliza tudo o que ele nunca teve: uma figura de cuidado, acolhimento e aceitação incondicional. Para ele, que apresenta características compatíveis com um transtorno de personalidade esquizoide, a boneca não é um fetiche, mas um objeto transicional tardio, nos termos de Winnicott: uma ponte simbólica entre o isolamento e a possibilidade de se vincular ao outro.
A atuação de Gosling é comedida e cativante. Com gestos mínimos, olhares perdidos e falas pausadas, ele constrói um personagem que, mesmo preso em seu mundo interno, comove profundamente o espectador, despertando compaixão sem jamais recorrer ao sensacionalismo.
Outro acerto do filme é a forma como retrata a psicoterapia. A médica Dagmar (Patricia Clarkson) compreende o delírio não como algo a ser reprimido, mas como um pedido de ajuda. Em vez de confrontar Lars com a “verdade”, ela propõe que a família e a comunidade entrem na fantasia, não para sustentá-la indefinidamente, mas para permitir que ele, no tempo dele, reencontre a realidade.
E a comunidade acolhe a fantasia de Lars. Esse talvez o elemento mais utópico e mais bonito do filme. Os vizinhos, colegas de trabalho e membros da igreja decidem não ridicularizar Lars, mas abraçá-lo. Levam Bianca ao salão, à escola, à festa, aos encontros sociais. A boneca é tratada como um ser humano, e esse gesto, que beira o absurdo, revela a beleza do cuidado coletivo.
No clímax do filme, quando Lars começa a se despedir de Bianca, é como se estivesse finalmente pronto para nascer para o mundo . Um nascimento simbólico, doloroso, mas possível, porque foi gestado no útero do acolhimento, da aceitação e do amor.
A Garota Ideal é um filme que desarma. O que parece ser uma bizarrice se revela uma prece. Um lembrete de que há, sim, muitos Lars entre nós, pessoas que silenciosamente carregam traumas, medos, dificuldades de se vincular. E que não precisam de confronto ou exclusão, mas de acolhimento e tempo. Em um mundo apressado para julgar, A Garota Ideal pede paciência. E nos mostra, com poesia e compaixão, que amar alguém, mesmo quando é difícil compreendê-lo, pode ser o início de toda cura.
*Raquel Rocha é Psicanalista, Psicóloga, Especialista em Neuropsicologia, Saúde Mental, Neuropsicologia e Terapia Familiar.