Para
Augusto Mário Ferreira
– em memória
Cidade adolescente, dos anos 50, de poucas ruas calçadas, o trem como uma coisa viva partia e chegava, trazia cargas de peixe, cordas de caju e caranguejo, coco, beiju de Água Branca; do circo pequeno com a lona furada, o maior espetáculo da terra era anunciado pelo palhaço nas pernas de pau, tinha o nariz de limão e, em pouco tempo, a garotada no coração; da lua derramando prata no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira, onde a turma da rua de cima jogava com a da rua de baixo a partida mais disputada, dos tiradores de areia que passavam com os jumentos carregando latas de areia, as casas ribeirinhas nessa hora como que tomavam a bênção ao velho rio, ajoelhando suas fachadas; cidade ingênua, com pobreza mas sem misérias, com os dias alegres da filarmônica que no encanto do som convidava o povo na praça para voar na valsa; cidade que tropeçava na lama com as tropas que passavam suadas, os sacos de cacau no lombo, a cadência e os guizos de uma música sonante nos dias de verão, o tropeiro com o lenço na testa, o chicote silvando o ar pelas ruas esburacadas; cidade com a delícia sempre renovada dos roletes de cana do Campo da Desportiva e dos sorvetes do gringo Sussa, cuja fórmula, se dizia, vinha do Líbano e era guardada como segredo de família sob sete capas; cidade namoradeira com os casais que passavam de mãos dadas no jardim da prefeitura e, na pracinha de Santo Antônio, na Missa do Galo, trocavam bilhetes e olhares ingênuos.
Cidade que, na estrada de barro, lá se ia aos solavancos com as marinetes cheias de roceiros, fazendeiros, comerciantes, quando chegavam de Ilhéus causavam grande tumulto na pequena estação, os carregadores disputavam as bagagens que saiam pelas janelas, o “13” era preto, o “21” aleijado e o “16” cobrava um cruzado; na procissão da Sexta Feira Santa, gente rica e pobre caminhava descalça, os rostos cabisbaixos, o peito contrito, os passos arrastados com suas marcas doídas nas pedras cor de vinho, mas no sábado a Aleluia como num coro de milhões de passarinhos anunciava que Jesus renasceu, tudo era alegria, já não havia mais ofensa nem espinho; cidade sapeca quando era tempo de São João, o céu aceso com balões, bombas e fogos por todos os cantos, em qualquer casa qualquer um aparecia para rimar licor com canjica, ao pé da fogueira a emoção crepitava afoita e quente em cada peito; cidade deixando que eu acontecesse no sonho acordado com o beijo dado na primeira namorada, como torcedor do Itabuna Futebol Clube, o primeiro time profissional no interior, com meus craques inesquecíveis, Delicado, Ranulfo, Louro, Carrapeta e Bacurau.
Dessa cidade aconchegante convivem em mim todos os cheiros da vida. De manhã fresca e de mata escura. Cheiro de suor, de burro, de cacau, de fêmea, de chuva. Cheiro que me faz viver um pouco no seu imaginário, contando suas histórias, escutando suas vozes e sombras na roda do tempo, seu perfume suavizando meu ser no movimento dos dias.
Não sei, minha cidade, de imagens mais claras, belas, do que aquelas que a minha mente grava de ti, quanto mais os dias passam, faça sol ou chuva.
Cyro de Mattos