ALGUNS PRIMEIROS ACENTOS SOBRE KUÉSIS, DE BIRA LIMA- Margarida Fahel

A poesia de Bira Lima me encantou, esta é a palavra, desde a sua primeira página. E foi encanto sobre encanto. Quase sem necessitar de interpretações ou elucubrações, ela vai se fazendo a cada palavra, pois que essas são exatas, simples, leves, insubstituíveis. Penetrantes. Então, faz-se bela em si mesma, pela imagem que se desenha limpa, pela precisão, pela força nela embutida. Sua poesia não precisa de esclarecimentos: é palavra em estado de clareza, de verdade. Palavra que vale, eu diria.

Mas, acostumados que somos ao explicar, ao interpretar, ao ressignificar, talvez mais que sentir, ou intuir, é preciso pontuar aspectos que a fazem especial, inovadora sob vários pontos de vista. Bira Lima não usa sinais de pontuação, quase não trabalha com orações encadeadas, nem com parágrafos compostos. Bastam espaços e cadência, ritmo, para dividir os versos.  Tudo é simples, exato, lembrando-me um poema de Cecília Meireles:

Cada palavra uma folha

no lugar certo.

Uma flor de vez em quando

No ramo aberto.

Um pássaro parecia

Pousado e perto.

Mas não: que ia e vinha o verso pelo universo. *1

O poema “palavrão” (as aspas são minhas) começa a explicar a força e precisão da palavra poética de Bira Lima. Explica também, como aí diz o próprio poeta, de onde brotou sua poesia.

                                                  palavrão

analfabeta,

minha mãe xingava

com desenvoltura

entre uma palavra

e outra – um palavrão

foi assim que entendi

que a palavra diz

na fixidez burocrática do comunicar

mas que o palavrão

provoca, expõe e penetra

porque dialoga com as premissas da vida

sem mais palavras,

minha mãe

me fez poeta.

Este “palavrão,” observo, é um dos poucos poemas em que aparecem esparsos sinais de pontuação.

Pergunto-me se seria essa uma mãe real ou imaginada, afinal, estamos num mundo poético. Não importa isso, entretanto, pois, em qualquer dos casos, ela o fez poeta. E o poeta aí revela a profunda diferença entre palavra e palavrão, não pela grosseria e indelicadeza da segunda, mas porque este, o palavrão, é que contém e expressa a realidade dura da vida. Este contém e expressa a dor…

Nesta tentativa de demonstrar a força da palavra poética em Bira Lima, despido de artefatos e enfeites, muitas vezes parecendo brincar, anexo o seu:

                               flor de cacto

prometeu-me

mundos e fundos

deu-me amor

esse artigo de luxo

E assim segue essa poesia tão simples e despojada na forma, mas nem por isso deixando de enveredar pelo filosófico. Assim é o:

apois

das nossas incertezas

nascem:

as respostas

os silêncios

os poemas

os espaços

as filhas

os filhos

as flores

e algo

que ainda não sabemos

E o “apois,” (aspas minhas) aparentemente tão simples, traz-me a lembrança o grande Friedrich Nietzsche, quando sentenciou: “As convicções são inimigas mais poderosas da verdade do que as mentiras.  *2

E nesse poetar que simplifica o que vai por dentro, talvez dolorido e profundo, como cortando com faca afiada, o poeta traz o seu:

                                                 older chest

nas minhas caminhanças

vou malocando o mundo

em fendas que só cabem o que sinto

não carrego baús

eu quero acabar

esvaziando as mochilas.

E agora, já nos cabe constatar que o poeta lança mão de vocábulos estrangeiros, alguns inventados talvez, para intitular muitos de seus poemas. Apenas um toque de sofisticação em poetar tão simples, porque as palavras em sua exatidão já não precisam de enfeites.

Assim, também, no “vide cor meum” (aspas minhas).

vide cor meum

quem tiver

o peito

carregado de pedras

que atire a primeira dor

Brincando com a conhecida cena do Novo Testamento … “Que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado”, Bira troca pecado por dor e insufla uma nova interpretação da conhecida máxima. O criar novas conotações no discurso, recurso válido e oportuno, vejo como expressão do manancial de força da palavra poética. Bira as usa aqui como expressão que contém um sentido unificador da mensagem do poema. E aí confirma-se o inicialmente colocado: a perfeição no encontro palavra versus ideia. E isso convida linguistas e críticos a boas indagações, por certo.

O poema “perlífera” (aspas minhas) ele próprio diz do brincar poeticamente com as palavras, ao tempo em que elas remetem a graves questões existenciais, expressas em trocadilho vocabular.

              perlífera

o que sinto por tu

não tem refúgio aqui

nesse eu-presente

antecede o disparo

e está bem antes do motivo

subtrai de mim

qualquer pronúncia

e tudo que penso já é depois

é o mavioso abismo

que em dias como hoje

aceita saudade como sinônimo

O magnífico jogo temporal operado por Bira Lima, muito especialmente marcado no verso “e tudo que penso já é depois”, faz-me lembrar versos inesquecíveis de Mário Sá- Carneiro, no seu antológico poema “Quase”, guardados, obviamente, os diferentes momentos literários e ímpetos dos dois poetas. Assim falou Mário Sá Carneiro:

 Um pouco mais de sol – eu era brasa. / Um pouco mais de azul – eu era além. / Para atingir, faltou-me um golpe de asa… / Se ao menos eu permanecesse aquém… *3

E o poeta vai alargando seus espetros temáticos e nos chega em “matrioscas”. Evocando o símbolo da maternidade nas conhecidas bonecas russas, ele nos diz:

                          matrioscas

a gente

nasce estreito

e vai em cada amor

ou desamor

ganhando

largueza

assim a gente aprende

o que consegue abrigar

A comparação realizada poeticamente, o ventre que cresce pelo amor que chega, preenchendo, e aquele que vai embora, ou que nunca chegou, talvez estreitando, ensina-nos sobre nossas limitações e necessidades. Porém faz entender, demonstra o poeta, que amor e desamor são lições de vida.

Em momentos outros, Bira faz as palavras brincarem, num doce misturar de poesia, verdade e fantasia. Assim é em:

         bailarina

a bailarina

da caixinha de música

me convidou pra uma voltinha

fiquei constrangido.

não sei lidar

com moças tão soltas.

Do mesmo calibre, com gosto de brincadeira, mas a mensagem firme e coerente em sua simplicidade, é o

L’ amour

enamorado aos oitenta

meu pai adolesceu-se

 e fugiu de casa

contra o amor

não há argumentos.

A expressão poética de Bira Lima, seus temas e reflexões, seus muitos sentires, faltas e dores dão margem a muitos estudos. Muitos outros poemas deste Kúesis estão vivos à espera de novas observações ou até interpretações, se assim desejarmos. Preocupei-me, especialmente, nesse primeiro momento, em fixar aquilo que me marcou mais fortemente. Aquela leitura que bate antes do estudar, do explicar: a simplicidade, a exatidão palavra /ideia, a capacidade de fazer versos sem adornos ou aparentes reflexões, sem pontuação, sem uso de maiúsculas. Em versos curtos, raros períodos compostos, o poeta vai revelando, no entanto, dor, crises existenciais, saudade, tristeza, vazios… As palavras em sua inteireza, sem adornos ou adjetivações. Puras. Exatas. Na medida certa. Poesia para sentir.

Margarida Cordeiro Fahel.

Janeiro 2023.

Kúesis, Bira Lima. Ibicaraí, BA: Via Litterarum, 2022.

*1 Meireles, Cecília/ Obra Poética. Metal Rosicler. Poema 41. Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, GB. 1972.

*2 Nietzsche, Friedrich. Demasiado Humano., SP: Cia das Letras, 2000.

*3 Mário de Sá- Carneiro. Dispersão. Colares Editora. Portugal.1993.

1 comentário em “ALGUNS PRIMEIROS ACENTOS SOBRE KUÉSIS, DE BIRA LIMA- Margarida Fahel”

  1. Bira é um Ser lindo que carrega poesia na mochila. Como não bastasse… virou palhaço além de ser ator e professor e fotógrafo!!!
    Parabéns por nos presentear com suas artes!

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