A poesia de Bira Lima me encantou, esta é a palavra, desde a sua primeira página. E foi encanto sobre encanto. Quase sem necessitar de interpretações ou elucubrações, ela vai se fazendo a cada palavra, pois que essas são exatas, simples, leves, insubstituíveis. Penetrantes. Então, faz-se bela em si mesma, pela imagem que se desenha limpa, pela precisão, pela força nela embutida. Sua poesia não precisa de esclarecimentos: é palavra em estado de clareza, de verdade. Palavra que vale, eu diria.
Mas, acostumados que somos ao explicar, ao interpretar, ao ressignificar, talvez mais que sentir, ou intuir, é preciso pontuar aspectos que a fazem especial, inovadora sob vários pontos de vista. Bira Lima não usa sinais de pontuação, quase não trabalha com orações encadeadas, nem com parágrafos compostos. Bastam espaços e cadência, ritmo, para dividir os versos. Tudo é simples, exato, lembrando-me um poema de Cecília Meireles:
Cada palavra uma folha
no lugar certo.
Uma flor de vez em quando
No ramo aberto.
Um pássaro parecia
Pousado e perto.
Mas não: que ia e vinha o verso pelo universo. *1
O poema “palavrão” (as aspas são minhas) começa a explicar a força e precisão da palavra poética de Bira Lima. Explica também, como aí diz o próprio poeta, de onde brotou sua poesia.
palavrão
analfabeta,
minha mãe xingava
com desenvoltura
entre uma palavra
e outra – um palavrão
foi assim que entendi
que a palavra diz
na fixidez burocrática do comunicar
mas que o palavrão
provoca, expõe e penetra
porque dialoga com as premissas da vida
sem mais palavras,
minha mãe
me fez poeta.
Este “palavrão,” observo, é um dos poucos poemas em que aparecem esparsos sinais de pontuação.
Pergunto-me se seria essa uma mãe real ou imaginada, afinal, estamos num mundo poético. Não importa isso, entretanto, pois, em qualquer dos casos, ela o fez poeta. E o poeta aí revela a profunda diferença entre palavra e palavrão, não pela grosseria e indelicadeza da segunda, mas porque este, o palavrão, é que contém e expressa a realidade dura da vida. Este contém e expressa a dor…
Nesta tentativa de demonstrar a força da palavra poética em Bira Lima, despido de artefatos e enfeites, muitas vezes parecendo brincar, anexo o seu:
flor de cacto
prometeu-me
mundos e fundos
deu-me amor
esse artigo de luxo
E assim segue essa poesia tão simples e despojada na forma, mas nem por isso deixando de enveredar pelo filosófico. Assim é o:
apois
das nossas incertezas
nascem:
as respostas
os silêncios
os poemas
os espaços
as filhas
os filhos
as flores
e algo
que ainda não sabemos
E o “apois,” (aspas minhas) aparentemente tão simples, traz-me a lembrança o grande Friedrich Nietzsche, quando sentenciou: “As convicções são inimigas mais poderosas da verdade do que as mentiras. *2
E nesse poetar que simplifica o que vai por dentro, talvez dolorido e profundo, como cortando com faca afiada, o poeta traz o seu:
older chest
nas minhas caminhanças
vou malocando o mundo
em fendas que só cabem o que sinto
não carrego baús
eu quero acabar
esvaziando as mochilas.
E agora, já nos cabe constatar que o poeta lança mão de vocábulos estrangeiros, alguns inventados talvez, para intitular muitos de seus poemas. Apenas um toque de sofisticação em poetar tão simples, porque as palavras em sua exatidão já não precisam de enfeites.
Assim, também, no “vide cor meum” (aspas minhas).
vide cor meum
quem tiver
o peito
carregado de pedras
que atire a primeira dor
Brincando com a conhecida cena do Novo Testamento … “Que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecado”, Bira troca pecado por dor e insufla uma nova interpretação da conhecida máxima. O criar novas conotações no discurso, recurso válido e oportuno, vejo como expressão do manancial de força da palavra poética. Bira as usa aqui como expressão que contém um sentido unificador da mensagem do poema. E aí confirma-se o inicialmente colocado: a perfeição no encontro palavra versus ideia. E isso convida linguistas e críticos a boas indagações, por certo.
O poema “perlífera” (aspas minhas) ele próprio diz do brincar poeticamente com as palavras, ao tempo em que elas remetem a graves questões existenciais, expressas em trocadilho vocabular.
perlífera
o que sinto por tu
não tem refúgio aqui
nesse eu-presente
antecede o disparo
e está bem antes do motivo
subtrai de mim
qualquer pronúncia
e tudo que penso já é depois
é o mavioso abismo
que em dias como hoje
aceita saudade como sinônimo
O magnífico jogo temporal operado por Bira Lima, muito especialmente marcado no verso “e tudo que penso já é depois”, faz-me lembrar versos inesquecíveis de Mário Sá- Carneiro, no seu antológico poema “Quase”, guardados, obviamente, os diferentes momentos literários e ímpetos dos dois poetas. Assim falou Mário Sá Carneiro:
Um pouco mais de sol – eu era brasa. / Um pouco mais de azul – eu era além. / Para atingir, faltou-me um golpe de asa… / Se ao menos eu permanecesse aquém… *3
E o poeta vai alargando seus espetros temáticos e nos chega em “matrioscas”. Evocando o símbolo da maternidade nas conhecidas bonecas russas, ele nos diz:
matrioscas
a gente
nasce estreito
e vai em cada amor
ou desamor
ganhando
largueza
assim a gente aprende
o que consegue abrigar
A comparação realizada poeticamente, o ventre que cresce pelo amor que chega, preenchendo, e aquele que vai embora, ou que nunca chegou, talvez estreitando, ensina-nos sobre nossas limitações e necessidades. Porém faz entender, demonstra o poeta, que amor e desamor são lições de vida.
Em momentos outros, Bira faz as palavras brincarem, num doce misturar de poesia, verdade e fantasia. Assim é em:
bailarina
a bailarina
da caixinha de música
me convidou pra uma voltinha
fiquei constrangido.
não sei lidar
com moças tão soltas.
Do mesmo calibre, com gosto de brincadeira, mas a mensagem firme e coerente em sua simplicidade, é o
L’ amour
enamorado aos oitenta
meu pai adolesceu-se
e fugiu de casa
contra o amor
não há argumentos.
A expressão poética de Bira Lima, seus temas e reflexões, seus muitos sentires, faltas e dores dão margem a muitos estudos. Muitos outros poemas deste Kúesis estão vivos à espera de novas observações ou até interpretações, se assim desejarmos. Preocupei-me, especialmente, nesse primeiro momento, em fixar aquilo que me marcou mais fortemente. Aquela leitura que bate antes do estudar, do explicar: a simplicidade, a exatidão palavra /ideia, a capacidade de fazer versos sem adornos ou aparentes reflexões, sem pontuação, sem uso de maiúsculas. Em versos curtos, raros períodos compostos, o poeta vai revelando, no entanto, dor, crises existenciais, saudade, tristeza, vazios… As palavras em sua inteireza, sem adornos ou adjetivações. Puras. Exatas. Na medida certa. Poesia para sentir.
Margarida Cordeiro Fahel.
Janeiro 2023.
Kúesis, Bira Lima. Ibicaraí, BA: Via Litterarum, 2022.
*1 Meireles, Cecília/ Obra Poética. Metal Rosicler. Poema 41. Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, GB. 1972.
*2 Nietzsche, Friedrich. Demasiado Humano., SP: Cia das Letras, 2000.
*3 Mário de Sá- Carneiro. Dispersão. Colares Editora. Portugal.1993.
Bira é um Ser lindo que carrega poesia na mochila. Como não bastasse… virou palhaço além de ser ator e professor e fotógrafo!!!
Parabéns por nos presentear com suas artes!