Aquilo que há de mais profundo e imorredouro em nossa memória, creio eu, são as vivências da infância e da adolescência. Talvez pela pureza que existe em todos nós, naquela fase da vida, vasos limpos de ideias inculcadas em nossas mentes e em nossos corações. Talvez uma tela a ser pintada pela vida, usando uma frase clichê. E as primeiras pinceladas sejam de puro encanto, de descobertas de prazer e surpresas diante do mundo ainda quase sem barreiras. Assim, lá, no lugar mais recôndito da criança que todos fomos, as cores, os raios de sol, a lua prateada, o verde das árvores, o desabrochar das flores, as cores do céu, tudo encontra espaços limpos, onde não há “ não pode”, “não deve”, “ agora não”. E, então, tudo fica ali, bem guardado.
Também vivi em sua/nossa cidade. No meu caso, a partir dos dez anos, quando me esperava o famoso exame de admissão ao ginásio. Nasci e vivi até aquela idade numa cidadezinha ainda muito menor que a sua/nossa. Sem calçamento, sem luz elétrica. O Grupo Escolar, um pouco afastado do pequeno centro, uma pequena igreja, um grande barracão, no meio da enorme praça de chão batido, que servia para feiras e festas. Tudo, entretanto, muito limpo, como se um vento diário tudo varresse. Naquela praça, alguma vez, o mundo maravilhoso do circo. “Para o ano eu vou voltar,” cantavam em coro os artistas, parodiando Asa Branca, de Luís Gonzaga. Aquilo era visão de felicidade… Daquela pequena cidade, então distrito da “sua/nossa”, guardo sabores, aromas, sons e imagens que, quantas vezes, se apossam de mim. E o sentimento é o mesmo! Alegria, encanto, graça. E saudade. E lá está a goiabeira do quintal da tia Raquel, ali estão as poças d’água prateadas nos dias de chuva, a cantoria de roda, meninas e meninos na enorme praça vazia… E o cheiro quente do “joão duro”, um biscoito duro como pau, saído do forno da padaria ali mesmo na esquina… E a voz de Dona Milu, uma senhora bem magra e alta, muito limpa, de pele lustrosa, que diziam “ não ser boa da cabeça”, e que batia de porta em porta, pedindo: “ banana… banana… banana…”
E vem mais. Vem minha melhor amiga daquela meninice, minha vizinha Hildete. Hildete, da qual nunca tive notícias, passados aqueles anos. Sentadas em caixotes baixinhos, um outro a nossa frente, recortávamos velhas revistas, para costurar vestidos de papel. Terá se tornado ela uma modista, ou costureira? Eu me tornei professora. De gente pequena, de gente grande, nunca mais recortei vestidos de papel…
E me vem a voz de Dona Quequé, nossa vizinha, com sua vara na mão pelas madrugadas, concretizando com força os gritos com que esperava o jovem filho rapaz, que teimava em chegar das farras ao nascer do dia.
Mas ficou daqueles tempos a lembrança de alguns anos vividos numa fazenda de gado dos meus pais. Rio, pequenas enchentes, árvores a sombreá-lo… Bois, vacas e os bezerros dando cabriolas. A fogueira acesa todas as noites para espantar cobras, mas também porque era bonito de ver, dizia meu pai. E, sol nascendo, tinha leite tomado quente junto da vaca (Os nomes de duas delas até hoje me lembro: Andorinha e Espanhola).
Mas havia mais e isso, talvez, responda um pouco ao que me tornei depois: por ali passavam para pernoitar, ante um caminho mais longo, dois conhecidos de meu pai. O nome de um nunca se esqueceu de mim, Pedro Martins, um contador de histórias. Meu sono não vinha, não adiantava minha mãe insistir, enquanto ele tivesse voz para contar…Eram noites de príncipes e princesas, de bichos e gentes à luz da fogueira reavivada. Sem contar que meu pai também era, para mim, um frequente e bom contador de histórias. Histórias que se passavam na Espanha eram as suas preferidas. Sevilha, Barcelona, Andaluzia… Através delas, comecei a caminhar por terras distantes, por lugares desconhecidos. E ele contava, contava e cantava…
Cyro, a tudo isso seu encantador “romance de infância” me levou… E a muito mais…
Então, agradeço a sempre consideração e amizade, e parabenizo-o por mais um livro e por esse veio de lembranças de um tempo de paz. A paz do menino que se tornaria um grande escritor. E que nunca se esqueceu de cantar a sua terra.
Um abraço fraterno para você e para Marise.
Margarida Fahel.
Salvador, fevereiro de 2021.
Cyro de Mattos, Nada Era Melhor, da Editus, , 2020