Palestra apresentada na mesa 2, do FLISBA 2021, dia 25.09, sob o tema A mulher na literatura
Reflexões em Elvira Foeppel e Carolina de Jesus.
O exposto pela confreira Raquel Rocha proporcionou-nos uma boa fotografia de um retrato da autora. Não se trata aqui de um pleonasmo. Defino, nesta fala, fotografia e retrato com diferentes sentidos. Entendo, deste modo, o retrato como algo pronto, definido, e fotografia com algo que se pode ver de diferentes maneiras, em conformidade à forma de enxergar, de entender, de questionar, de iluminar para mais ou para menos. Teríamos, na fala da expositora, a biografia da poeta e ficcionista ilheense, Elvira Foeppel. Diante dessa biografia, perguntamos: – O que é exposto na história é revelado na escrita? Parece-nos ser esta a necessária busca do leitor e, mais exigentemente, do leitor crítico ou do estudioso da obra.
A biografia nos fala de uma mulher à frente de seu tempo e do seu lugar. Uma mulher que, muito jovem ainda, se lança sozinha para a então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, centro do poder político, dos avanços de comportamento, de novos costumes, e das novas tendências filosóficas e literárias recebidas especialmente da Europa. Tendências que já repercutiam nos meios literários brasileiros. No Rio de Janeiro, lá estavam aglomerados nos círculos de discussão, ou nas mesas boêmias, muitos já grandes, bem como uns poucos iniciantes escritores. Bonita, de aparência vaidosa, bem cuidada, rosto bem maquiado, sorriso permanente no rosto, a eles juntou-se Elvira, a moça de Ilhéus. De logo com emprego fixo, emprego que nada lembraria o buscado mundo de escritora, que transpareceria de início, como introspectivo e controverso em seu aparente mundo interior. Tratava-se de um emprego na Revista Súmula Trabalhista, da Legislação Federal, dirigida por Nelson Fonseca. Diríamos lembrar, tal publicação, os nossos conhecidos Diários Oficiais.
Quando partira para a capital do país, Elvira já havia publicado um bom número de poemas e contos em jornais de Ilhéus. Prenunciavam eles uma escrita inovadora em sua forma, com estranha pontuação, alguns neologismos, mas controversa em sentimentos: saudades da infância e grande amor por aquela cidade que tomou como sua. Talvez mesmo já se pudesse entrever em suas publicações a temática de natureza existencialista, mal-estar no mundo, náusea, incompreensão alheia, deslocamento social, e busca de novos rumos. Já se enxergava em seus textos a necessidade de ajustar-se, mas a incapacidade para tal. Estava ali presente, ainda, certa sexualidade contida, velada.
Descobrimos, em sequência de leituras, e somando-se à biografia traçada, que a poeta era uma personalidade intrigante. Talvez para ela própria, assim como para nós, leitores. Embora deslocada e incompreendida em seu meio social, a cidade que tanto amava, a sua Ilhéus, ela se portava como uma jovem que amava as atividades festivas, dedicava-se a fazer teatro, gostava de beber, de dançar, de namorar e de ir ao cinema. O retrato, portanto, vai ganhando novos traços. Neste momento, com vistas a nosso objetivo nesta mesa, vamos nos deter na Elvira carioca, aquela que começa a publicar fervorosamente nas revistas e jornais conhecidos da época, na capital do país. Para isso, selecionamos alguns contos, a fim de indagar quem seria ou como se apresentaria a escritora por dentro de suas personagens, e que espaços tais personagens trilhariam. Elvira Foeppel escrevia contos sem o esperado e tradicional enredo ficcional. Cada um dos contos vive um momento de uma mulher- personagem e quase sempre narradora. Dentre os selecionados para esta curta apresentação, apenas um conto tem um homem detendo o foco narrativo. Mesmo assim, ao final, ele parece, claramente, dar voz a uma mulher, que poderia lembrar-nos a própria escritora. Aquela da fotografia.
Estamos assim a dizer que Elvira Foeppel se autobiografava? Pergunta que preferimos, e precisamos deixar em aberto, mesmo ao final desta fala. Há muito a estudar sobre sua obra poética, sobre muitos outros contos e sobre seu único romance, intitulado “Muro frio”. Ademais, além da própria complexidade do texto literário, mais complexo ainda é o ser humano e o imaginário que o comanda.
Mas, levantaríamos, ainda, uma outra interrogação. Haveria, conforme já apontado no início desta fala, na obra de Elvira, a influência do existencialismo sartreano, a presença da náusea, do sem sentido? Do “mal do século” daqueles anos cinquenta, mal saídos da terrível Segunda Guerra Mundial? E perguntaríamos ainda um pouco mais. Haveria nela, na enigmática escritora, por outra visão, uma feminista nascida? Livre, operosa, sem medo? Decidida a ser solteira, optara ela por uma buscada e segura felicidade de ser só? Ou haveria naquela mulher, ou na mulher-personagem, um grande medo da adaptação, um profundo medo de dividir-se?
Dessa forma, tomaremos para estas possíveis indagações, e buscando prováveis ou improváveis respostas, passagens de alguns contos do livro Da Sombra à Luz: seleção de contos de Elvira Foeppel. Organização Vanilda Manzzoni, Alicia Lose. _Ilhéus, Ba: Editus, 2004.
Para tal, na tentativa de englobar algumas características, sequenciamos alguns títulos.
– Volta para casa às seis. Publicado na Revista Carioca, 1950.
Aspectos temáticos – O tédio. Personagem: uma mulher numa fila de ônibus. A incapacidade de sair de si mesma. As conversas em torno são frívolas. Nada a interessa ali. A fim de isolar-se, ela se fixa nas nuvens e em tudo que pode criar a partir do que enxerga naquele vai e vem incessante.
Os minutos deslizavam sonolentos. Quinze já passados inativos. Fim de tarde no seu limite extremo, a noite chegando, invadindo de negrume todo o espaço. Olhei para cima, para as nuvens ainda claras que se moviam destacadas no fundo escuro, e procurei distrair-me imaginando figuras diversas que se formavam e se desmanchavam naqueles segundos (p. 41).
– Breves momentos. Publicado na Revista Carioca, 1950.
Aspectos temáticos – A rotina, a impaciência, a revolta. Mulher indo para o trabalho, no interior de um ônibus cheio. Pensamentos duros, desconexos, solitários. A mulher reflete que todos ali vivem a mesma difícil realidade, no entanto conversam, brincam e riem. Por que ela não consegue ser como eles?
E sabiam sorrir. Deus, com displicência, sabiam conversar alto e dizer chistes e anedotas a qualquer instante e brincavam despreocupadas com as dificuldades dos dias e das noites. E então, porque Luciana não podia ser assim, fazer como elas e afastar, jogar para trás, para o passado, aquela revolta seca e muda, consumindo, gastando impulsos, trazendo inércia e germinando ódio e amargura no coração pequeno (p.73)?
– Uma menina loura. Revista Carioca, 1950.
Aspectos temáticos – Uma lembrança feliz. A personagem desperta feliz, o que é lhe incomum, e relembra o dia em que salvou uma menina de ser atropelada. Sente a utilidade de sua vida naquele momento. E surpreende-se pela alegria que a invadira ao ver que não fora esquecida pela criança, quando ela lhe trouxe flores.
O mar continuava monstruosamente belo e importante. O céu ainda coberto de nuvens distantes, brancas, muito brancas, e quase correndo num passinho miúdo uma criança loura, de olhos azuis, muito azuis, com um buquê de flores nas mãos meigas. Ela não me esquecera. Como sorria e gritava o meu nome que na sua boca tinha uma beleza rica e era música, unicamente música (p.45).
– O pretinho João. Revista Carioca, 1950.
Aspectos temáticos – A lembrança saudosa, mas feliz e grata, de um menino pretinho, que passava todos os dias embaixo da janela da mulher sozinha. Conversam, tornam-se amigos, ele fala da dureza de sua vida, do “cemitério de rua”, mas lhe diz que é melhor ser bom e tratar a todos com alegria. O menino desaparece um dia e fica na mulher a saudade e a lição de vida que lhe deixara aquele menino de cabeça raspada, que sempre passava com sua enorme trouxa de roupa.
Decididamente eu não podia esquecer o menino preto, como pedaço de carvão que todos os dias passava por mim com um sorriso grande na boca estreita, mastigando umas mesmas frases de palavras usadas e velhas como os molambos de panos que os vestia (p.63).
Estranhava os seus pés descalços, e as suas calças rotas mostrando pedaços de um negro forte das pernas compridas e secas como caniços… Sempre aquela mesma roupa remendada em algumas partes e verdadeiros fiapos mostrando buracos em outros lugares (p.64).
– Rotina. Revista O Cruzeiro, 1950.
Aspectos temáticos – Preparação de uma mulher para sair com seu marido. Marido bom, nada lhe falta, nem beijos. Ela se sente má. Por que tão infeliz? Quantas mulheres queriam aquilo: sua vida. “Fácil, enterrada no luxo e tantas horas livres.” Ele nunca saberia de sua tristeza, de sua inadequação. Jamais ele compreenderia isto, ela pensa, enquanto apenas ajeitava a gravata do marido.
Jamais teria queixas dela. Jamais pensaria que ela tinha olhos tristes, e boca silenciosa demais, para sua juventude. Sim, jamais ele compreenderia isto, percebeu olhando naquele momento, tão longe dele (p.72).
Assim estragada e incompreendida de se parecer apenas restando em felicidade através de seu segredo, guardado por vaidade e orgulho, de que valia viver, mentir-se em aparências, sempre? Cuidadosa como era sabia que jamais ele descobriria seu mistério, sua inadequação e quedaria sempre ignorado dela e da revolução que enchia suas idéias alimentando aqueles grandes desejos, perigosos desejos de ser livre descalça, sobre campos descampados a colher flores sob o sol ou sob a chuva (p.71).
– Indecisão. Revista Carioca, em 1950.
Aspectos temáticos – De repente, uma manhã de alegria. De repente, uma grande alegria! E seus planos de vida, de toda uma vida? Roberto a espera na praia. Ele deterá seus planos? A mãe a chama para o café. Ela descobre a alegria da mãe, por não ter escolhido a solidão como meta para a felicidade. É o que ela lhe diz ali, naquele instante mesmo. A dúvida. Roberto? E seus planos? Seus planos tão configurados para uma vida inteira? Fará como a mãe, como sua avó? Sua mãe e sua avó tinham razão? Os pensamentos eliminados.
Precisava decidir-se. Roberto ou sua solidão de sempre, de agora. Se não fosse medo dos anos vindouros, poderia quase afirmar que ia ser feliz., muito feliz com Roberto. Ele era bom, alegre, e tratava–a com uma ternura jovem, como se lidasse com uma criança a quem se diz tudo sobre as coisas. Regina se sentia bem, aprendendo em cada instante uma coisa nova. E aquela dependência que surgia, aquela entrega de problemas e aquele descuido, podendo viver encostada, confiando, sem cansar-se, era bom, era novo para ela (p.55).
Muitos outros contos desta obra ora citada estão também a exigir estudos e indagações. Assim como muitos, muitos outros, guardados em páginas fechadas. Assim está a bela e por vezes enigmática obra de Elvira Foeppel. Há que abrir suas páginas, folha a folha, linha a linha. Há que resgatá-la. Como dever de salvar beleza!
Margarida Fahel
Em 25 de setembro de 2021.
Observação – As reflexões sobre Elvira Foeppel se fizeram em dois momentos seguidos: Raquel Rocha, com aspectos biográficos e Margarida Fahel, observando aspectos literários, a partir dos contos selecionados.