AS BENEVOLENTES – LITERATURA EM TEMPOS DE FASCISMO – Charles Nascimento de Sá

A Segunda Guerra Mundial foi o maior conflito bélico que o mundo já vivenciou. Ocorrida entre os anos de 1939 a 1945 envolveu todos os países do planeta. Na sanha militarista e expansionista da extrema direita alemã, italiana e japonesa se encontram a gênese desse conflito. Na figura de Adolf Hitler jaz o artífice e causador das ações iniciais que deflagaram a guerra.

A história já teceu inúmeros estudos sobre o nazismo e o facismo, sobre a Alemanha após I Guerra, a expansão dos regimes autoritários de extrema direita e extrema esquerda no mundo após 1918, bem como diversos outras análises e interpretações sobre a Europa e demais continentes entre a eclosão da Grande Guerra de 1914 até o término da Segunda Guerra em 1945. No dizer do historiador inglês Eric Hobsbawm foram 31 anos de celeumas envolvendo diversas partes do mundo, ou todo ele.

Mas não apenas a história se assenhorou do período entre as guerras, a literatura foi aí pródiga na produção de obras, sejam aquelas escritas no calor da hora, como A revolução do bichos de Olwen, Por quem os sinos dobram de Hemingway, ou trabalhos mais autobiográficos como O diário de Anne Frank. Esse são apenas alguns exemplos do período. A posteriori uma gama diversificada de autores, em todos os continentes, se dedicaram a escrever livros tendo como pano de fundo a Europa, ou outro continente, durante a guerra.

O alvorecer do século XXI viu o empenho em romancear e escrever sobre as Grandes Guerras crescer majoritariamente. Entre obras descartáveis, romances confusos ou piegas, boa escrita tem sido desenvolvida. Entre os textos que se destacam, devido à sua escrita e impacto sobre o leitor e a crítica especializada, o romance As benevolentes, do escritor norte-americano, mas de formação francesa, Jonathan Littell, tem lugar capital.

Seja pela profundidade da obra, pela sua escrita, pelo caráter de seu personagem principal, pela pesquisa histórica que embasa todo o romance, pelo cinismo concernente ao modo como o tema é tratado, pelo seu desenvolvimento e desfecho, em todos os lados para onde se olhe o texto de As Benevolentes é cativante, desafiador, envolvente, perturbador, profundo, esclarecedor, revoltante e apaixonante. Possui, enfim, tudo aquilo que uma grande obra literária requer para ser sempre indicativo de uma boa leitura.

O livro foi considerado pela crítica francesa o novo Guerra e Paz do século XXI. Se no majestoso romance do escritor russo Leon Tolstói as guerras napoleônicas servem de pano de fundo para o desenredo do romance entre seus personagens, com destaque para Pierre Bezukhov, Natasha Rostova, André Bolkonski, Maria Bolkonskaya e Nicolau Rostov, além do próprio Napoleão Bonaparte, no livro de Littell o enredo centra-se na figura de Maximilien Aue, alemão de ascendência francesa que, após ter sido detido pela polícia alemã por estar em um parque dedicado a encontro entre homossexuais é cooptado por Thomas, jovem oficial nazista, que após uma conversa com Aue o convida a entrar nas fileiras do partido. Cínico e egoísta Aue vê nisso a oportunidade para aproveitar a ascensão do partido Nacional-Socialista alemão e ganhar poder e prestígio para si.

A trajetória dos dois amigos será desenvolvida em paralelo a todo processo político, militar e humanitário gerado pela Segunda Guerra. Da invasão da Polônia, passando pelos guetos judeus, campos de concentração, países invadidos, conspirações, encontros entre as elites europeias que apoiaram o Reich, eventos do partido Nazista, entre os quais destaca-se aquele que definiu o conceito de solução final, surgido durante a Conferência de Wannsee e exposta depois em uma carta do general das SS Reinhard Heydrich. Os dois oficiais vão galgando a cada novo período maiores postos no interior do partido. Vale lembrar que a organização oficial do Nazismo assemelhava-se ao do exército alemão com postos, títulos, patentes e medalhas similares ao que as forças armadas germânicas faziam nessa época.

Um dos traços que distingue toda a narrativa contida no romance vem do caráter cínico do seu personagem principal. Maximilien Aue começa sua narrativa descrevendo com precisão germânica os números concernentes ao conflito: vítimas, mortes, destruição perdas financeiras são aí indicadas em um texto que pode ser utilizado em qualquer aula de história dado seu preciosismo e veracidade. No desenvolvimento do romance suas motivações e avanços junto ao partido são sempre explicadas e analisadas de forma biltre e sem nenhum tipo de remorso ou arrependimento.

Uma das característica desse personagem tem a ver com sua homossexualidade e seu amor pela irmã. Quando eram novos eles mantiveram um caso, seu afeto e desejo por ela foram o motor para desenvolvimento de sua sexualidade. Ambos mantiveram o romance até que ela teve sua menarca, a partir daí, não tiveram mais contato. Ao irem para internatos em separado durante a adolescência o amor da irmã por Aue feneceu, ele, porém, manteve o desejo sexual aberto. Ao perceber que ela não iria mais ter contato com ele, decidiu então, por amor a ela, sentir o mesmo prazer que esta sentia, buscando satisfação nos braços de outros homens. A sexualidade do personagem será um dos vetores em todo processo de sua ascensão nas fileiras do partido e na forma como ele interagia com outras personagens. Sua discussão e digressões sobre o assunto são ácidas, racionais e irônicas.

As vitórias da Alemanha nazista no início do conflito são detalhadas e explicadas durante as trezentas primeiras páginas do romance. Toda euforia, perseguição, orgulho, sede de poder, nacionalismo, fanatismo e mentiras que eram espalhadas pelo partido e que permeavam o povo alemão são descritos e explicitados. O processo de expansão da Wehrmacht, a força de defesa que substituiu a Reichsheer, exército germânico da Primeira Guerra, que ficou impossibilitado de se expandir devido a cláusulas do Tratado de Versalhes, é narrado com todo o vigor e destruição que causou nas áreas inimigas. A convicção de que o poderio alemão era inigualável, demonstrado pelas inúmeras vitórias da Blitzkrieg, são traçados nessas páginas do romance. Junto a vitória, o delírio e fanatismo da extrema-direita alemã é explicado.

A narrativa que inicia a segunda parte do ramonace, tem como pano de fundo a batalha de Stalingrado. Ela redireciona o leitor para o outro viés do conflito. A partir do momento em que a máquina de guerra alemã começou a dar seu primeiros sinais de que não conseguiria avançar em direção ao Leste, que os esforços e poderio militar da União Soviética demonstravam ser significativamente melhores e superiores ao dos nazistas, o impacto dessa incerteza e do medo se faz sentir em todo o romance.

Levados pelos embates no leste e receando não vencer a guerra contra os comunistas, os nazistas intensificam ainda mais suas loucuras e convicções políticas. Aue acompnha a batalha de Stalingrado e dali parte para as áreas dedicadas ao extermínio do povo judeu. Ele e Thomas participam da organização e desenvolvimento dos campos de concentração. Todo rigor e precisão alemã se voltam para solucionar aquele que era considerado o mal maior entre os nazistas, isto é, o extermínio dos judeus. Junto a estes, homosexuais, ciganos dentre outros adversários do regime, seriam também eliminados.

Ao longo das mais de seiscentas páginas seguintes somos engolfados em diversos horrores e tentativas desesperadas e alucinadas por parte dos nazistas, de modo particular entre sua cúpula dirigente, de tentar frear e reverter a perda de poderio militar e de espaço da Alemanha diante da União Soviética.

Quanto mais o exército recua, quanto mais a Luftwaffe demonstrava sua inferioridade frente aos caças soviéticos e a Real Força Área britânica, mais Hitler, Goebbels, Himmler, Goering e demais dirigentes do partido, bem como a alta cúpula do oficialato alemão, se dedicavam a perseguir, torturar e exterminar aqueles que era considerados inimigos do sistema. Vetor dessa espiral de loucura os personagens Aue e Thomas descem cada vez mais na perseguição aos inimigos do regime, até que as benevolentes, encontram os dois.

A força narrativa de As Benevolentes traça um impasse no leitor: de uma lado ficamos envolvidos, hipnotizados, não conseguindo desgrudar da leitura desse romance; de outro lado, sua ferocidade, crueza, maldade, racionalidade e desumanidade faz com que nos sintamos sujos, tristes, bestializados diante do que o ser humano é capaz de fazer.

Ler, ou reler, As Benevolentes em tempos de bolsonarismo e de ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo é crucial para se entender a irracionalidade, a agressividade, a loucura e a apneia intelectual que regimes fascistas provocam em seus seguidores.

Boa leitura!

 

Charles Nascimento de Sá é Historiador, Mestre em Cultura e Turismo Dr. Em História pela UNESP/Assis. Professor da UNEB, Campus XVIII, Membro da ALITA com a cadeira de número 40.

 

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