O HUMANISMO EM JORGE AMADO (UM HUMANISTA NAS TERRAS DO CACAU)- Margarida Fahel

Começo esta fala, particularmente endereçada aos estudantes deste colégio, dizendo também da minha particular emoção, de alegria, de muita saudade e, até, de certo orgulho, por fazê-la neste estabelecimento de ensino que tive a honra profissional de implantar nos idos de 1983, na condição de Diretora. Lembro-me bem de sua inauguração, dos primeiros passos para organizá-lo e fazê-lo funcionar. Um esforço conjunto de um grupo de professores idealistas, vice-diretores, supervisora educacional, orientadora educacional, coordenadora pedagógica e um grupo de apoio comprometido. Àquele momento, era Superintendente Regional de Educação a profa. Edehilda Rodrigues de Oliveira, ainda hoje uma dileta amiga.

Na minha jornada como educadora, apesar da imensa gratificação pela minha carreira como Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, por algumas décadas, que me rendeu honras e alegrias, os anos em que aqui estive, dirigindo este estabelecimento, estão gravados em minha memória, em face da importância do trabalho que aqui realizamos todos.

De modo que volto aqui hoje com uma certeza: aqui vivi anos de trabalho profícuo, de alegrias, de esforço, de união, voltados para o ideal de uma vida melhor e de um mundo mais justo e mais bonito e que, não tenho dúvidas, só se realiza pela educação. Essas palavras iniciais procuro justificá-las em função do tema desta conversa, como verão.

Portanto, meus agradecimentos a Ceres, ilustre confreira, pela escolha deste local para a minha fala, demonstrando sua sensibilidade e carinho comigo. Peço-lhes registrarem meu mais profundo desejo de que esta casa de educação seja uma difusora da paz, alegria e conhecimentos ou, lembrando a nossa inesquecível poeta Valdelice Pinheiro, que aqui também seja “um campo de paz.”.

Assim dito, dirijo-me ao tema desta conversa de hoje e que despretensiosamente denominei de “O Humanismo em Jorge Amado”.

Inicio-a, pedindo licença para ler um trecho do crítico Hermes Rodrigues Nery, da apresentação da obra “Conversando com Jorge Amado”, de Alice Raillard:

“Sua literatura, fruto dessa experiência pessoal, genuína, que tudo quis recolher e contar, absorvendo com desmesurada intensidade o sabor da vida, em suas múltiplas e amplas perspectivas, é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

“Toda uma vida dedicada ao Brasil, expandindo a nossa cultura pelo mundo afora, das tradições, do ritmo, do fluir do nosso sangue mestiço, dos negros, das mulheres cativantes, da sedução da Bahia, de tudo isso escreveu (…) denunciando as insensibilidades das elites políticas em relação a tantos problemas que fazem sofrer o nosso povo, entre eles a miséria.” (Esta apresentação foi escrita em 1990).

Reputo como absolutamente verdadeiras as palavras de Rodrigues Nery e sobre os pontos levantados haverá momento de tratá-los, mas, neste prólogo, tomo como fundamento para o início de conversa a afirmação do crítico, segundo a qual a literatura de Jorge” é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Parto do expresso porque desde os meus primeiros estudos sobre a obra de Jorge Amado, e já há bastantes anos, senti-me extremamente seduzida por um sopro, assim chamo, que, para mim, perpassava tudo que dele lia: uma atitude amorosa, compassiva e humana sobre os seres que habitavam sua ficção e um latente desejo de compreensão de suas realidades. Os aspectos estritamente ligados à urdidura ficcional, especialmente os mais formais, nunca me preocuparam de maneira especial. Não que não sejam importantes e passíveis do interesse crítico, mas não era exatamente o elemento de sedução ao meu olhar. Foi o fabuloso contador de histórias, como ele próprio gostava de rotular-se, com uma presença narrativa marcante e os sentimentos dele emanados que provocaram não apenas a minha admiração, mas a necessidade de estudá-lo e conhecê-lo com maior profundidade.

A obra de Amado, suas histórias nascidas das realidades conhecidas e vividas pelo autor, como ele próprio sempre quis dizer, a profusão de personagens retirados da engrenagem social de um tempo, de uma época, dos lugares caminhados, esteve sempre a levantar questionamentos que desembocavam quase rotineiramente nas questões sociais, políticas e econômicas, é fato, mas que não se limitavam a expô-las e denunciá-las. Sempre me pareceu que Jorge Amado intentava algo mais, ou através disso. Sempre me pareceu que o lirismo que envolvia todo o seu fabuloso mundo ficcional não era apenas uma lufada romântica para amenizar realidades tão dramáticas, na maioria das vezes.

A obra à qual me referi no início desta fala, de Alice Raillard, revela Jorge através dele mesmo, e revelando-se ele como um incrível e lúcido conhecedor do seu tempo, de sua época, de sua terra e de sua gente. Jorge Amado tem uma clara e vívida compreensão de sua obra, de sua evolução como ficcionista e do sentido maior de sua atividade de escritor. Ele tem uma consciência clara e precisa, desculpem a redundância, do sentido e missão de sua atividade literária. Relembro aqui palavras de outro grande escritor baiano, ainda em plena atividade inventiva, o nosso João Ubaldo Ribeiro, amigo dileto de Amado, quando disse com exatidão: “… Devemos a Jorge Amado a abertura da consciência literária no Brasil. Ele foi um pioneiro cheio de esplendor e obstinação. É um homem indissociavelmente ligado não somente à história da literatura, mas também à cultura brasileira. Foi escolhido pelas fadas, ou por quem quer que seja. Jorge atravessou toda a literatura brasileira, praticamente desde a Semana de Arte Moderna, e atravessou-a com uma obcessão que, pode-se dizer, chega ao sublime, o sentimento de uma missão. De forma incrível. Ele ajudou a introduzir o Brasil na modernidade.” Coloco essas coisas porque elas me levam ao foco proposto, verão.

Jorge analisa a fase inicial de sua obra, basicamente protagonizada pelos romances “O País do Carnaval”, “Cacau” e “Suor, fase de nítido engajamento político- ideológico, em que esteve preso aos ditames da estética e ideologia marxistas. Ele diz compreendê-la, além disso, em função do momento em que as escreveu, pouco mais que adolescente. Segue interpretando o seu “progredir” enquanto ficcionista e como criador de personagens quase heroicos, agora realmente representativos de sua terra: a princípio, a Cidade de Salvador da Bahia, como era então chamada, cidade que o abrigou e o fez crescer em suas ladeiras e suas ruas estreitas de então; daí emergiram as grandes figuras de vagabundos, meninos de rua, marginalizados, trabalhadores do cais da Bahia, pescadores e prostitutas, uma plêiade de personagens que ainda oscilam entre a realidade e a magia. De sua paixão pelo povo e sua realidade, explodiram os personagens da terra grapiúna, a sua terra, a civilização do cacau, da qual também fazemos parte.Daí surgiram, na pena mágica de Jorge Amado, os quase lendários coronéis, os jagunços, as prostitutas do Bataclã, as senhoras aprisionadas, os amores impossíveis, o sangue derramado nas roças de cacau. De lá e de cá –Salvador da Bahia e Terras Grapiúnas- as obras que encantaram o mundo: Dona Flor e Seus Dois Maridos, Jubiabá, Mar Morto, Os Pastores da Noite, Capitães de Areia,Tieta do Agreste; Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Tocaia Grande e Gabriela, Cravo e Canela, citando somente algumas das obras do grande Jorge.

Na verdade, o defensor dos marginalizados, dos injustiçados, dos bêbados e vagabundos não foi plasmado, assim creio, pela ideologia comunista. Havia, sim, em Jorge, um ser profunda e humanamente tocado pelas fraquezas humanas e pelas dores sociais. Um ser capaz de entender os sentimentos humanos e, especialmente, um homem capaz de entender que um povo particularmente singular emergia desse caldo cultural baiano. Mesmo o leitor mais ingênuo percebe que o escritor, mais que apenas criador, ama seus personagens , os compreende, protege-os, além de defendê-los.

Um olhar mais arguto, portanto, percebe que Jorge sempre pretendeu mais do que contar as histórias que viu e viveu.Atualmente, novos paradigmas críticos estão aí e melhor podem explicar a obra amadeana. Na verdade, a própria Antropologia, e leia-se no Brasil Roberto Da Matta, já havia tomado em estudo a obra amadeana, vendo-a, especialmente Dona Flor e Seus Dois Maridos, como representativa de um caráter nacional. Ele alonga seus estudos a Gabriela, Cravo e Canela, e passa a mostrar a obra de Amado como bem mais significativa do que ingenuamente ou preconceituosamente se imaginava. Passa a vê-la como uma obra de caráter relacional, ou seja, que se objetiva a partir do entendimento de uma sociedade que se desenvolve pela via de estruturas sociais que se rivalizam, mas que precisam relacionar-se para subsistirem. A obra “A Casa e a Rua,” de Da Matta, atribui longas páginas à análise do romance de Amado. Diz ele: “… a sociedade brasileira é relacional. Um sistema no qual o básico, o valor fundamental, é relacionar, misturar, juntar, confundir, conciliar”. E aí, ele diz já se dirigindo à obra de Jorge: “… no caso da obra de um escritor como Jorge Amado e da tomada de um dos seus trabalhos como paradigma para os problemas da sociedade brasileira, (…) essas ideias parecem ser um belo ponto de partida”. Da Matta afirma, pois, categoricamente, sobre a narrativa de Amado: …” É impressionante, diz ele, que nenhum crítico tenha percebido essa chamada “guinada” do autor como um modo de enfrentar os temas não oficiais da sociedade brasileira”. “Em Gabriela, (Lançada em 1958) Jorge mistura a obra literária com a vida diária e com as instituições permanentes dessa sociedade”. Aparecem, então, não os temas estritamente históricos, os acontecimentos políticos, mas a presença “do outro mundo” e, particularmente, a presença da mulher, seja a prostituta ou a senhora. Surge a comida como elemento articulador das relações sociais. Os personagens assumem o papel das amizades, de um mundo marcado pelas relações afetivas. Atualmente, o campo dos Estudos Culturais permite revisar a crítica sobre essa obra, revelando-a como capaz de responder a questionamentos da Etnografia, ou seja, vê-la como reveladora de uma raça num determinado contexto geográfico. Uma pesquisa rápida revela atualmente um bom número de dissertações de mestrado e teses de doutorado que têm como foco a obra de Jorge Amado, levando-a, pois, aos estudos acadêmicos, admirando-a enquanto, basicamente, seu valor estético- literário e vendo-a em amplitudes outras, a partir de sua importância cultural, enxergando nela uma possibilidade de entender este país tão singular e esta não menos singular gente brasileira. Cito, aqui, para os mais interessados, estudos nessa linha, muito atuais:

1-O Brasil Best Seller de Jorge Amado- Literaturas e Identidade Nacional, de Ilana Seltzer Goldstein, da Editora SENAC, S.P(Tese de doutoramento em Antropologia Social).

2- Dissertação de Mestrado: Jorge Amado e a Identidade Nacional-Diálogos Políticos-Culturais, de Carolina F. Calixto.

3- Artigo: Retrato de certa Brasilidade, de Clarice Cohn.

4- Ensaios: Estudos Culturais: Propedêutica, Rivalidades e Perspectivas, de Luciano Rodrigues Lima.

Tal leitura da obra amadeana leva-me a caminhar um pouco mais na perseguição ao tema proposto e , vendo-a através do desejo do autor de entender e explicar sua gente e sua terra, pontuo a importância de grifar alguns elementos substantivos que, a meu entender, caracterizam essa singular gente baiana e mesmo brasileira e que estão expressos nos personagens magnificamente criados.

O primeiro deles, o sentimento de fraternidade. Enfatizo o termo, aqui, para vê-lo na acepção específica da mensagem do escritor: o desejo de unir um povo fruto de raças tão distintas, nascido de circunstâncias histórico-sociais tão discrepantes. Uni-lo pela dança, pela música, pela derrubada dos preconceitos religiosos e sociais. Uni-lo pela alegria e pela esperança. Falando a respeito, a escritora Alice Raillard expressa: “… Uma obra que poderíamos chamar de fraterna- o que, sem dúvida, está em parte ligado a seu brilho extraordinário – dirigido pela ideia de liberdade- noção da qual Jorge tomou consciência desde muito cedo e que orientou a sua obra e seu engajamento.”

Peço-lhes, então, que acrescentem este segundo termo, liberdade, como mais um elemento estruturador do tema aqui perseguido. Seus personagens, o escritor os quer livres e os constrói ou os retoma do contexto real da vida com essa finalidade. Ele entende que somente livres os indivíduos se apresentam genuínos, em suas grandezas e em suas fraquezas, em suas desgraças e suas alegrias. Os grandes personagens da obra amadeana, quer sejam os femininos, Gabriela à frente, Tieta, Dona Flor, Teresa Batista; quer sejam os personagens masculinos : Balduíno, Quincas Berro D’água, Pedro Arcanjo não se enquadram num modelo social estratificado, exatamente porque souberam viver aquilo que realmente eram em sua humanidade.

Veja-se, exemplificando isso, que a famosa Gabriela, talvez mesmo o seu personagem mais admirado e sedutor, não encantou os milhões de leitores apenas por ser bela, rústica e sensual. O que primordialmente a todos seduziu foi a ideia do amor sem condições, sem amarras: o amor pelo próprio amor, sem interesses medíocres ou como estratégia de segurança, de conforto ou ascensão social.Gabriela não ambicionava ser “senhora”, ter joias, vestidos, chapéus ou sapatos caros, sequer roças de cacau ou palacetes na cidade.Por isso, não precisava casar.O amor de Nacib lhe bastava e isso ela já tinha.Gabriela queria ser livre para não usar sapatos apertados, para dançar no Terno de Reis, para soltar pipa com a molecada.Ou seja, livre para ser ela mesma.Pode-se contestar isso, vendo-a como uma visão romântica de Jorge Amado, mas, se perguntarmos o que movem os desejos, a resposta óbvia será: os interesses.Interesses de domínio, de poder, de posse.Contra isso, Jorge criou Gabriela: livre, pura, íntegra.

Falando de Tocaia Grande, uma das mais significativas obras de Jorge em relação à civilização do cacau, o autor enfatiza a sua preocupação com o ideal da liberdade do homem: “… Creio que Tocaia Grande é um livro em que a ação corresponde exatamente à minha preocupação com a liberdade do homem. É um livro contra as ideologias. Contra a ideologia que é, creio – eu o disse em O Menino Grapiúna – um dos males fundamentais do nosso tempo”.

Outro aspecto encontrado na construção ora buscada revela-se na presença inequívoca do otimismo, da alegria e da esperança. Os romances de Amado, apesar das dores e sofrimentos, da violência, da crueza de determinados fatos e temas, são romances de fé na vida, numa explosão de força e de alegria de existir. Seus personagens caminham para frente, a esperança anima a luta e promove a mudança. Esse otimismo, aliás, o próprio escritor o reconhece e dele tem absoluta consciência. Falando de Gabriela, ele afirma: ”… Gabriela é um livro muito otimista sobre a vida – aliás, toda a minha obra é, eu não sou um pessimista, é uma das razões que faz com que eu seja pouco amado pela crítica, justamente porque não tenho este sentimento masoquista da vida a que eles são afeiçoados. É um livro otimista…”

O otimismo, a alegria de viver, a esperança vão contribuir com outro elemento que enxergo fundamental para o alcance do tema aqui tratado e diretamente vinculado ao sentido da obra de Jorge: “o encontro e a caracterização da identidade brasileira”. Tal identidade ele busca revelar, paulatinamente, em sua vasta obra, partindo do reconhecimento de caracteres que unem o povo brasileiro, particularmente o baiano: e ele o apresenta como um povo efusivo, generoso, jovial, de riso largo, sempre voltado para a festa, a dança, os cheiros e os sabores, capaz de transformar dores em risos. O aprofundamento dessa oposição, dores e risos, o levará, a partir de Gabriela, a inserir o humor em sua narrativa. Este aspecto acentua a ascensão ficcional do escritor e a capacidade de dar agora a sua obra um avesso, uma plurissignificação ainda não realizada de modo tão eloquente. O próprio Jorge, falando do humor, explica: …”é a capacidade de rir da besteira humana, da imbecilidade, e de condenar, por meio do riso, as injustiças, as feridas, toda a feiura, toda a ignomínia da vida numa sociedade desumana”.

Alcança-se, então, uma nova leitura da obra do escritor baiano, vendo-a essencialmente comprometida com a caracterização de um povo, de uma gente, de suas histórias, de sua história e, num conceito mais elástico, de uma civilização: a civilização do cacau, violenta e sofrida e a civilização da Salvador da Bahia. A Salvador daqueles menos favorecidos: os malandros, os marinheiros, os meninos de rua, os moradores do cais, os pescadores, as prostitutas, o “povo de santo”, a gente do povo, enfim.

Assim, mais uma vez, valho-me do próprio Jorge para comprovar o aqui revelado: ”… O Brasil é um país muito especial, muito… específico, por sua mistura de raças. Aqui se deu um fenômeno extraordinário: tudo que nos trouxeram os negros… A cultura negra nos deu um caráter diferente, um caráter quase feérico… O sentido da festa, os ritmos do nosso carnaval… O povo do Brasil é um povo extraordinário que luta, não perde a esperança, segue em frente na pior das condições.”

Ao lermos alguns manuscritos de Jorge, o Jorge crítico literário, o Jorge historiador, o Jorge misto de historiador e antropólogo, que muitos estudiosos desconhecem, percebemos claramente essa intenção do autor de Gabriela: caracterizar sua gente, o povo baiano, que ele tanto amou. A acadêmica Ilana Goldstein, em sua tese de doutoramento O Brasil Best Seller de Jorge Amado, diz:

“Ao fazer um balanço dos muitos manuscritos em que Jorge Amado faz o papel de crítico de arte ou crítico literário, percebe-se que, em geral, seu critério de julgamento ao analisar uma obra é o grau de baianidade e brasilidade das obras em questão. Ele valoriza artistas e intelectuais que se reapropriam da cultura popular, (…) por causa da “mistura de sangues.” A partir da Bahia –o “coração do Brasil”, por Jorge Amado- emergem representações da identidade nacional brasileira: seríamos uma nação mestiça na qual as contribuições mais importantes viriam dos africanos e portugueses; um país em que os artistas se aproximam do povo e onde a cultura popular “penetra pelos cinco sentidos”; nosso povo seria resistente e otimista, a alegria vencendo a tristeza”.

A preocupação e intenção de Amado com essa representação da identidade em sua obra é tal que se pode comprová-la, até mesmo, no trato dado à língua e nos temas ligados ao sincretismo religioso, este, aliás, sempre enfático em Jorge Amado. Num discurso de agradecimento, ao receber o título de doutor honoris causa, em Lyon, na França, ele proferiu: “… nós nascemos num grande leito de amor, onde as raças se cruzaram e se misturaram”. E ele não está a falar aí apenas da mistura “das três matrizes básicas da nossa nacionalidade” (o português, o africano e o indígena), mas referia-se, também, ao fato de elas terem se somado, no decorrer do tempo, “a imigrantes japoneses, semitas, eslavos, latinos, e anglo-saxões, num duro processo que prossegue e se amplia (…), uma civilização mestiça, novidade no mundo. ”A presença dos libaneses e sírios, por exemplo, na comunidade da civilização do cacau, é vista com a extrema simpatia do autor, como se vê através do personagem Nacib. Na verdade, Nacib e Gabriela são os protagonistas da obra Gabriela, Cravo e Canela. Jorge Amado sempre reiterou que esse romance era a história de amor do turco Nacib e da mulata Gabriela. Nós, pobres leitores enxergamos ali tantas e tantas coisas…

Gostaria de frisar, ainda, que Jorge Amado, em sua consciência de escritor missionário e também visionário, como dele é dito, tornou-se o antropólogo e historiador de sua gente. Apaixonado pela Bahia, em seus manuscritos ele conta a fundação da cidade de Salvador da Bahia, alternando versão de natureza factual, histórica e versão de natureza mítica. Quero demonstrar, com essa alusão, que a “verdade” da obra de Jorge, de sua ficção, é uma verdade que extrapola o nível do realismo no que comumente o enquadram, para ser o porta-voz da alma, dos costumes, das tradições e das crenças de uma gente especial, que se fez a partir de uma cultura branca, europeia (o português), da religiosidade cristã e de uma cultura negra, da riqueza de seus orixás, preferencialmente, e que depois se alargou, se enriqueceu, em função dos imigrantes aqui chegados. Dessa forma, uma base antropológica serve de assento, intencionalmente, à obra amadeana.

Assim, ouso afirmar que Amado, longe de enxergar o homem através de um estreitismo ideológico, no que estaria ligado aos postulados marxistas, presentes no início de sua obra, o vê em sua condição de ser social, por uma ótica antropológica também, como acabamos de sinalizar, entendendo-o em sua complexidade humana, existencial e racial, fugindo a um determinismo redutor. Vê-se nos personagens criados, assim como na visão do narrador, a expressão de uma certeza maior: a de que os seres humanos não precisam apenas de pão, de casa, de bens materiais que os sustentem e protejam, mas necessitam da alegria, da festa, da bondade, da amizade, da generosidade, do amor, enfim. E, acima de tudo, precisam ser livres para pensar e fazer escolhas. Pensar é transgredir e na transgressão está a força dos personagens amadeanos. E, em razão de tudo isso, a presença da poesia e da magia se instala em Jorge Amado, envolvendo a obra e os seres que a habitam. Essa poesia está impressa na beleza que Jorge confere aos seus personagens, na ternura com que os trata. E, aí, destacam-se os papéis femininos. Mesmo em romances em que os personagens são construídos a partir de um contexto de brutal violência, como é o caso de Tereza Batista, os sentimentos bons e puros continuam latentes e resgatam sua personagem. Tereza opta pela vida e pela esperança através do filho desejado.

Dessa forma, Jorge ergue sua multidão de seres, envolvendo-os num halo de fantasia, algumas vezes, magia e heroísmo, num processo que lembra o realismo fantástico. No entanto, e pode parecer paradoxal, em face da precariedade de suas vidas, na visão do criador, eles são, antes de tudo, humanos: vítimas ou algozes, oprimidos ou opressores, mas, sempre, capazes de sofrer, sentir, chorar, amar, alegrar-se e ter confiança no futuro.

Desaguamos, então, no questionamento óbvio: é Jorge Amado um humanista?O escritor que criou os cruéis e temidos coronéis do cacau- aqueles que construíram uma civilização adubada com sangue- o romancista que cantou prostitutas e vagabundos, que demonstrou o outro lado das histórias de heroísmo das tocaias grandes… É ele um humanista?

Teríamos que indagar, inicialmente: que é ser um humanista?Que é o humanismo, então?Numa acepção bem simplificada, humanismo seria a corrente filosófica que estuda a ética e a natureza humana, entretanto, várias outras acepções são comumente conhecidas: o termo tornou-se corriqueiro no campo dos estudos estéticos e literários, vez que rotulou todo o movimento literário e intelectual do Renascimento (Séculos XV e XVI). Tal movimento teve sua inspiração no mundo greco-romano, numa visão filosófica segundo a qual o homem era o centro de todas as coisas. Daí a denominação “humanismo” para essa concepção do mundo e do homem. Como decorrência, humanista é o seguidor do “humanismo”. Aprofundamentos sobre o tema nos levariam a várias correntes e classificações do humanismo (marxista, cigiloso, renascentista, positivista contiano, logosófico e universalista, para alguns), mas não me parece necessário discuti-los neste instante.

Desvinculando-se o termo dos rigores clássicos, ou mesmo de uma conotação de natureza estritamente estética, ele ganhou foros mais livres e amplos e passou a qualificar pessoas preocupadas fundamentalmente com a felicidade do ser humano, com aqueles elementos que lhe conferem humanidade, particularmente os sentimentos, as fraquezas e grandezas de sua condição. O conceito se estende, ainda, a todos aqueles que acreditam que a jornada do homem sobre a terra deve constituir-se na busca de valores que elevem essa condição humana, tornando a sociedade dos homens uma sociedade mais justa, mais feliz, mais igualitária. São aqueles que creem no bem, nos valores humanos: na generosidade, na alegria e no amor. São os que creem, trabalham e lutam por um mundo melhor.

Para mim, está vividamente clara essa intenção e esse propósito em Jorge Amado. Aliás, é o próprio Jorge que diz: “… hoje tenho a impressão de que o mais importante em minha obra é o humanismo, a relação com o homem, o criador da humanidade.” Por isso, falando de Charles Chaplin, o maravilhoso cineasta inglês, criador do imortal Carlito, o doce palhaço, Jorge afirma:…”mais do que qualquer outro artista do nosso tempo, Chaplin contribuiu para o melhoramento da humanidade.” Falando sobre um chamado humanismo brasileiro, afirmou Jorge, em um dos seus manuscritos: “… é a luta contra o preconceito, o ódio e o racismo. A apartheid é o anti-humanismo, pois que separação extrema entre as etnias; o povo brasileiro representa o verdadeiro humanismo, os sentimentos mais nobres e profundos, por se originar na fusão interétnica, portanto plena de amor e tolerância”.

Literalmente consciente, pois, de sua missão de romancista, de usar sua palavra a serviço de um mundo mais belo, Jorge ainda afirma: “(…) O romance é uma história que se conta. A história de um indivíduo, uma classe, um lugar, um grupo de pessoas, um casal, um louco, um filósofo, um guardador de porcos, não importa, mas é uma história de algo ou de alguém, de fatos, individuais ou coletivos, uma história que se conta a partir do que se sabe sobre o ser humano. É o que penso.” Indiscutível, pois, a preocupação de Amado com a natureza do ser humano, vendo-o como o grande centro de todas as coisas e de sua própria história.

Acredito estar imaculadamente clara, em todos os seus romances, a paixão de Jorge pelo ser humano. Por isso, ele quis cantá-lo em suas dores e sofrimentos, em suas lutas e superações, em suas alegrias e amores, em seus erros e em suas virtudes. Sem julgá-lo ou condená-lo. Apenas, compreendendo-o em sua humanidade. Essa paixão pelo homem, por sua liberdade, pela bondade, pela amizade e lealdade fez dele um apologista da igualdade de crenças, do respeito à individualidade, da compaixão ante o sofrimento, ante os abandonados e esquecidos.

Creio, portanto, e gostaria de enfatizar esta afirmação, que mais importante do que estudar a obra de Jorge Amado pela urdidura ficcional apenas, ou pelo pitoresco e dramático de suas histórias, será obrigatório desvelá-lo, ainda mais, naquilo que ele tem de mais grandioso, a meu ver: a sua mensagem de um novo tempo, de um tempo de respeito a cada pessoa, independente de suas crenças, de seus papéis sociais.

Vivemos num pais, infelizmente, ainda indiscutivelmente violento, no qual, inclusive, a violência parece banalizar-se. Vivemos num estado violento, a Bahia. Vivem todos aqui, em Itabuna, numa das cidades mais violentas do Brasil, em sua faixa populacional. Imprescindível, pois, ler Jorge e acreditar, como ele, num tempo melhor, a partir do que cada um pode fazer. Então, fecho esta conversa, voltando à minha citação inicial, retomando as palavras do crítico citado, Rodrigues Nery- lembram-se?- falando da obra de Jorge e que me parecem tão atuais em sua sabedoria:

“Sua literatura é o painel de um país que quer se encontrar, de um povo com quase tudo por fazer.”

Otimistas e esperançosos à moda de Amado, poderemos, talvez, dizer agora, parodiando o próprio Nery: Um povo que não desiste de se encontrar, mas com muito, muito, muito ainda por fazer!

Obrigada a todos!

Margarida Cordeiro Fahel

Professora Titular de Literatura Brasileira (Aposentada) da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC.

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