Crônica de Cyro de Mattos
O bonde não era apenas um meio de transporte para ele, mostrava-se como uma diversão, curtição que fascinava no passeio. O uniforme cáqui do motorneiro, que usava chapéu e gravata borboleta, o barulho do condutor ao recolher o dinheiro das passagens, batendo as moedas umas contra as outras na mão, a figura marcante do vendedor de balas e bombons, com sua cesta de vime, a sensação deliciosa de viajar pendurado no estribo. Havia o desafio de subir e descer do bonde ainda em movimento. Num domingo azul de verão, chamou-lhe a atenção, entre os passageiros, dois homens bigodudos no bonde, de fraque, gravata borboleta e chapéu da última moda.
No passeio de bonde, tinha a sensação de que a cidade andava nos trilhos, avistando-se o mar por algum recorte ao largo. Sentado no banco de madeira, na medida em que bonde rolava pelos trilhos o olhar curioso dirigia-se para casarões, sobrados, igrejas e jardins. Na orla, o mar espumejava com as suas jubas brancas perto da praia, vidrilhando nos dias de verão. O mar era como uma piscina enorme na Praia do Porto da Barra.
O melhor lugar para contemplar o cenário da Baía de Todos os Santos, que a natureza ofertava de graça no cenário azulado, era de uma das balaustradas laterais ligadas à plataforma do Elevador Lacerda, dando acesso à Praça Tomé de Sousa, também conhecida como Municipal.
Sentava na cadeira de uma das mesas postas no passeio, como extensão da lanchonete A Cubana, na saída do elevador. Depois de tomar o copo de vitamina de abacate acompanhado dos deliciosos Bolinhos da Cubana, da balaustrada avistava o Forte de São Marcelo lá embaixo na baía, encravado nas águas mansas do mar. Lanchas na Marina, embaladas como berços pelo vento, barcos ancorados na tarde preguiçosa do mar, o porto no vaivém do embarque e desembarque de gente, o cais com seus guindastes gigantescos, navios de carga como casas de ferro, vindos de mares longínquos.
Não se cansava de olhar a paisagem bonita, na península de Itapagipe, longe, a colina sagrada do Bonfim no alto, onde ficava a igreja do padroeiro da cidade. A igreja ia ficando a cada ano pequena para o grande número de fiéis vindos dos lugares mais distantes. Fascinados os olhos, querendo pegar a paisagem com o seu forte brilho, contornos e desenhos, iluminada em cima com um céu azul, embaixo com um mar azul, só existentes na Bahia. Insinuada nas linhas do horizonte, lá para os longes das ilhas de Itaparica e Mar Grande.
Os olhos lavados com a paisagem esplêndida, tomava a direção do bairro dos Aflitos, pendurado no estribo do bonde.
• Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro titular das Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Doutor Honoris Causa da UESC.